Lelê Teles e as sandálias da humildade

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Por Lelê Teles

Por Lelê Teles*

“ele é aquele que vem depois de mim, e não sou digno de desamarrar as correias de suas sandálias”. joão 1:26-34

desde mil novecentos e sessenta e dois, os brasileiros estamos de havaianas nos pés.

e não só nos pés.

sou de um tempo em que as mães tinham uma havaiana na mão sempre que precisavam.

ainda trago, viva, na parte interna da epiderme, a tatuagem havaiânica das surras que levei de minha coroa.

sim, as senhorinhas usavam a sandália brazuca como um instrumento de tortura pedagógica.

era um tempo em que mães furiosas arremessavam sandálias, com precisão cirúrgica, pelos corredores de casa.

o chinelo, lançado como um flecha, atravessava cortinas, janelas, basculantes, alpendres, cruzava quintais e alcançava o lombo do erê onde quer que ele estivesse.

as havaianas substituíram a vara de marmelo, o cipó de amoreira e o cinto de couro nas sevícias familiares domésticas.

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isso, sim, seria razão suficiente pra muita gente querer distância dessas sandálias, porque elas remetem a um passado marcado por surras torturantes.

no entanto, elas estão aí nos pés de todo mundo.

as havaianas, como a coca-cola, são um dos raríssimos produtos no mercado que são consumidos tanto por um mendigo quanto por um bilionário.

o mesmo produto, a mesma marca.

um marco!

são mais de duzentos e cinquenta milhões de pares de sandálias vendidos em mais de cem países.

e mais, lá fora a sandália é vendida com a bandeirinha do brasil e, por isso mesmo, se tornou um símbolo da brasilidade, como o samba, a capoeira, o açaí e o baile funk.

a marca é um case de sucesso comercial tão poderoso que marca presença até em desfiles de moda luxuosos.

antes, ser um fudido, era ser um pé de chinelo.

hoje, um pé de chinelo é coisa chique.

porém, esse império está com os dias contados.

é que os bolsonaristas decidiram boicotar as alpercatas, acusando a marca de conluio com a esquerdalha.

veja você!

a confusão se deu por conta de uma propaganda.

é que a nossa bela fernandinha torres, com aquele sorridente sorriso de oscar, gravou uma propaganda pedindo aos brasileiros que não comecem o ano novo com o pé direito – superstição que herdamos da roma antiga -, mas com os dois pés.

a mensagem é positiva e fala em meter os pés na estrada, meter o pé na jaca, cair pra dentro.

observe que não se trata de um pedido pra começarmos o ano com o pé esquerdo.

a orientação é fincar os dois pés no solo.

pronto!

a dissonância cognitiva se encarregou de fazer o resto.

eduardo bolsonaro, o patriota apátrida, gravou um vídeo indignado e…

jogou um par de sandálias no lixo.

torceu o nariz para a propaganda e, como um legítimo curupira, torceu os pés para a sandália: “havaianas nervermó”, mugiu, “arru, arru, arru.”

em pouco tempo, senadores e senadoras do pl (papuda lotada) entraram na trend anti havaianas: “quem lacra, não lucra”.

deputados e deputadas do campo obscuro fizeram o mesmo.

e o rebanho todo reagiu.

a intenção é quebrar a empresa e provocar desemprego.

veja você.

o bolsonarista, como sabemos, é um arquiteto de ruínas.

agora veja que interessante:

em dois mil e catorze, a mesmíssima havaianas, soltou um comercial em que o craque romário usava só o pé direito do chinelo.

o esquerdo, o baixinho, malandro, havia mandado pro maradona, pra dar azar.

a mensagem final era: “havaianas, o pé direito é nosso. “

ninguém de esquerda viu ali uma mensagem subliminar, era só uma brincadeira com o nosso jeito supersticioso de encarar a vida.

mas o bolsonarismo, que não tem um projeto de nação, vive de usar esses espantalhos na internet: é a galinha pintadinha, as havaianas, o sabão omo…

é certo que contrapropaganda bolsonarista só vai dar mais visibilidade pra marca, tornando-a um hit do nosso verão natalino.

sim, pela primeira vez em nossa história poderemos ter papais noéis de chinelo.

e um minotauro calçando uma tornozeleira eletrônica.

palavra da salvação.

*Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Lelê Teles

Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).


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