Pedro Carvalhaes: Para Lennon e Lô

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Por Pedro Carvalhaes*

Como morador de Belo Horizonte, esbarrei diversas vezes com Lô Borges, do antológico “Clube da Esquina”, ao longo da vida.

Nunca me apresentei a ele, nunca pedi uma foto, e nem sequer um autógrafo.

Nunca disse a ele — embora sempre tivesse tido vontade — o quão geniais eram suas composições, e o quanto todas elas conectavam-me com as minhas subjetividade e emotividade mais recônditas.

Em todas as minhas incursões diletantes pela música, fosse arranhando violão e piano, fosse brincando de compor e cantar, sempre incluía sua arte, fosse no repertório, fosse na inspiração.

Beagá, costumamos brincar por aqui, é um ovo.

Minas Gerais, embora vasto, tem um quê de ovo também.

Temos, de maneira geral, uma ligação muito íntima com os artistas e as personalidades da nossa terra, mesmo que nunca tenhamos cruzado com nenhum deles.

Todo mineiro que se destaca, em geral, causa-nos orgulho, como se fosse alguém “de casa” .

(Conquanto, naturalmente, haja exceções. Vide nosso governador, Romeu Zema, que afirmou, numa rádio, desconhecer quem seria a mineira Adélia Prado, uma das maiores poetisas vivas do País.)

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Talvez por essa tradição de orgulho bairrista, por eu sempre cruzar seu caminho, e por ele ter me marcado tanto com sua arte, Lô Borges era como se fosse um conhecido íntimo, mesmo sem nunca termos trocado palavra.

Sempre que eu o via, com seu andar e seu visual despojados, que faziam jus ao espírito da capa do seu famoso “disco do tênis“, perguntava-me se aquele cara, no fundo, tinha dimensão da envergadura de sua obra, e da influência dela, não só no Brasil, como no mundo.

O que me causa certo pesar é que, mesmo sendo eu useiro e vezeiro em prestigiar, celebrar e tietar artistas dos quais sou fã, tendo inclusive me tornado próximo de alguns, nunca expressei essa admiração pessoalmente a nenhum dos meus ídolos locais, com uma ou duas exceções —como a cantora Fernanda Takai, que compusera o tema do meu primeiro filme, e o diretor Helvécio Ratton, que conheci ainda criança, num set, e com quem voltei a trabalhar, depois de adulto.

Suspeito que meu recato com os artistas mineiros tenha alguma coisa a ver com a sensação de que Minas e suas cidades sejam todas uma só aldeia, onde eventual tietagem, em relação a um vizinho, poderia soar vexatória.

Talvez tenha também a ver com a máxima de que “santo de casa não faz milagre”, ou com aquela outra, de origem bíblica, que diz que “ninguém é profeta na própria terra.”

De todo modo, há pouquíssimo tempo, esbarrei como de praxe com Lô Borges, com seu jeito informal de sempre, na Rua Sergipe, onde suspeito que morava.

Não sei explicar o motivo, mas senti uma súbita vontade não de elogiá-lo ou tietá-lo, ao menos diretamente, mas de cantarolar, para ele, “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo” — uma das minhas composições favoritas do seu cancioneiro.

Contive o impulso, pois meu recato provinciano de mineiro jamais me permitiria cometer tal devaneio.

Aquele, não sabia, seria o último dos meus encontros fortuitos com um dos meus maiores ídolos na música brasileira.

Logo depois, Lô foi internado, e veio a falecer, no último dia 2.

Sua morte, aos 73 anos, com muito ainda a fazer, mesmo já tendo feito tanto, na vida e na arte, encheu-me de pesar.

Foi quando me lembrei de alguns dos mais belos versos da canção que eu quis cantar, para ele, na derradeira vez em que nos cruzamos: “Se eu morrer não chore não, é só a Lua/ É seu vestido cor de maravilha nua/ Ainda moro nesta mesma rua/ Como vai você?”

A lembrança e o significado daquelas palavras foram como um consolo vindo do próprio Lô.

De todo modo, arrependi-me, por um momento, de não ter mandado o senso do ridículo às favas, quando do nosso encontro final, e cantorolado, para ele, aquela sua canção que me é tão especial.

A enorme repercussão de sua morte, porém, fez-me perceber que minha cantoria tresloucada para exaltá-lo, além de ridícula, teria sido absolutamente desnecessária, pois Lô, apesar do jeitão jovial, certamente tinha perfeita noção do “senhor artista” que era.

Reforçam minha percepção os versos de outra canção marcante dele, que , mais ou menos como este texto, é uma carta de fã para os seus ídolos (no caso, John Lennon e Paul McCartney): “Mas agora eu sou cowboy/ Sou do ouro, eu sou vocês/ Sou do mundo, sou Minas Gerais.”

Sim, Lô Borges sabia da relevância e da universalidade de sua música, que rompeu as fronteiras das Gerais, revolucionando a música popular brasileira e, em certa medida, a do mundo, um pouco como seus ídolos de Liverpool fizeram, em escala naturalmente maior (não por serem necessariamente melhores, acredito, mas por terem nascido no capitalismo central, longe do “lixo ocidental”, compondo sua obra em inglês, ao contrário do mineiro.)

Como escreveu Liev Tolstói, quem quer que almeje ser universal, deve cantar a própria aldeia.

Foi exatamente o que Salomão Borges Filho, vulgo Lô, conseguiu com sua obra (ao mesmo tempo: rara e familiar, clássica e moderna, mineira e do mundo), e é isso que irá mantê-lo vivo e relevante, aqui e alhures, por muito tempo ainda.

Que seu ídolo John Lennon, ao recebê-lo lá em cima, agradeça-o pelos serviços prestados à boa música, e tiete-o como eu, mero fã e conterrâneo, nunca tive coragem de fazer — a não ser nestas linhas.

Nosso Lô merece.

*Pedro Carvalhaes é graduado em Direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e roteirista.

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Comentários

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Bispo Mendes

Olá, senhor Pedro Carvalhaes.
Li emocionado o seu texto. Eu, provavelmente, teria “tietado” o Lô. Mas não sou mineiro, né?
Parabéns pela belíssima homenagem.
Meu irmão Prof. Vaduca Marinho trabalhou muitos anos com um médico num hospital público. O médico aposentou e saiu. Quase não se encontravam. Depois de algum tempo, o médico bem velhinho, não se viram mais.
Meu irmão passava frequentemente na porta do prédio dele e pensava encostar para vê-lo, conversar… mas nunca tinha tempo, estava sempre atrasado, correndo…
Um dia passou e forçou-se a encostar – mesmo sabendo que chegaria atrasado no hospital.
Tocou a campainha e o porteiro atendeu.
– Por favor, amigo, eu gostaria de falar com o médio doutor…
– Ô, meu amigo – falou o porteiro. – Infelizmente ele faleceu no final de semana passado.
Meu irmão ficou triste e com remorso porque não arranjou tempo antes.

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