Entidades de direitos humanos repudiam chacina no Rio; leia a carta
Tempo de leitura: 4 min
Redação Viomundo
Uma carta pública assinada por 27 entidades ligadas à defesa dos direitos humanos foi divulgada nessa terça-feira, 28 de outubro. O texto critica a carnificína provocada pelas forças de repressão cariocas.
Naquele momento, o texto falava em 64 mortes.
Os números atualizados, após moradores encontrarem pelo menos mais 74 corpos na mata da Vacaria, no Complexo da Penha, nesta quarta, 29, eleva o saldo macabro para 132 vítimas, após o governador Cláudio Castro revisar para baixo (de 60 para 58) o total de mortos divulgados no balanço oficial anterior.
O que torna essa carnificina o maior massacre do país, superando o do Carandiru, quando a Polícia Militar do Estado de São Paulo matou 111 presos na Casa de Detenção, em 1992.
Leia a seguir a íntegra da carta.
Segurança pública não se faz com sangue
”A operação mais letal da história do Rio de Janeiro, a Operação Contenção, nesta terça
(28), expõe o fracasso e a violência estrutural da política de segurança no estado e coloca a
cidade em estado de terror.
A chacina que se desenrola desde as primeiras horas desta terça-feira (28), nos complexos
de favelas do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, inscreve-se em um
longo e trágico histórico de matanças cometidas por forças policiais no estado —
apresentadas, equivocadamente, como política pública. Até o momento, já são 64
pessoas mortas em uma única operação — a mais letal da história do Rio de Janeiro.
A perda massiva de vidas reitera o padrão de letalidade que caracteriza a gestão de Cláudio
Castro, governador que detém o título de responsável por quatro das cinco operações mais
letais da história do Rio de Janeiro, superando seus próprios recordes anteriores registrados
no Jacarezinho (2021) e na Vila Cruzeiro (2022). O que o governador Cláudio Castro
classificou hoje como a maior operação da história do Rio de Janeiro é, na verdade, uma
matança produzida pelo Estado brasileiro.
Ao longo dos quase 40 anos de vigência da Constituição Federal, o que se viu nas favelas
fluminenses foi a consolidação de uma política de segurança baseada no uso da força e da
morte, travestida de “guerra” ou “resistência à criminalidade”. Trata-se de uma atuação
seletiva, dirigida contra populações negras e empobrecidas, que tem no sangue seu
instrumento de controle e dominação.
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Não há nela elementos que efetivamente reduzam o poderio das facções criminosas nos
territórios. Pelo contrário: essas ações aprofundam a insegurança e o medo, instalam o
pânico, interrompem o cotidiano de milhares de famílias, impedem crianças de ir à escola e
impõem o terror como expressão de poder estatal. A morte não pode ser tratada como
política pública.
Esse ciclo de violência não é acidental: ele decorre de uma estratégia deliberada que
privilegia o confronto armado em detrimento de qualquer compromisso com a vida e com a
legalidade. Durante seu pronunciamento, o governador ainda tentou responsabilizar a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 635 — a ADPF das Favelas — e
as organizações da sociedade civil que atuaram por sua implementação, pela letalidade da
operação. Ao fazer isso, ataca o controle das polícias, papel constitucionalmente atribuído
ao Ministério Público, e busca deslegitimar o trabalho das entidades que lutam pelo direito à
vida nas favelas.
Castro ainda atuou politicamente para esvaziar a ADPF 976 no Supremo Tribunal Federal,
com o objetivo de liberar as forças de segurança de obrigações legais como planejamento
prévio e preservação de vidas. Paralelamente, manteve a lógica de premiação pela
letalidade ao sancionar, na nova Lei Orgânica da Polícia Civil, a gratificação por “bravura” —
dispositivo que substitui a antiga “gratificação faroeste”, vetada após ampla reprovação
social. Ao premiar o confronto e a morte, o governo estimula a mentalidade de guerra e
transforma as comunidades em campos de batalha, onde moradores são tratados como
“inimigos internos”.
O Manual sobre o Uso da Força e Armas de Fogo por Agentes da Segurança Pública,
publicado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), estabelece
princípios fundamentais que devem orientar toda ação policial: legalidade, necessidade,
proporcionalidade, precaução e responsabilidade. As operações conduzidas pelo Estado do
Rio de Janeiro violam frontalmente todos esses parâmetros, configurando uma prática
sistemática de uso ilegítimo da força letal.
O Brasil e o Estado do Rio de Janeiro já foram reiteradamente advertidos pela Organização
das Nações Unidas e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o caráter
racista e discriminatório da política de “guerra às drogas”, que define quem morre e quem
vive nas favelas e periferias. O Estado fluminense acumula duas condenações na Corte
Interamericana de Direitos Humanos — pelas chacinas de Acari (1990) e Nova Brasília
(1994 e 1995) — e segue reproduzindo o mesmo padrão de violência. Nos últimos dez anos
(2014–2024), 5.421 jovens de até 29 anos foram mortos em intervenções policiais, segundo
o Instituto de Segurança Pública.
Desde os anos 1990, sucessivos governos ignoram propostas de segurança pública
orientadas pela prevenção, pela redução da violência e pelo fortalecimento de direitos. O
investimento segue voltado ao confronto, com resultados trágicos e repetidos: mais mortes,
mais dor e nenhuma segurança.
O que se testemunha hoje é o colapso de qualquer compromisso com a legalidade e os
direitos humanos: o Estado substitui a segurança pública baseada em direitos por ações
militares de grande escala. Sob o pretexto da “guerra às drogas”, instala-se um estado de
insegurança permanente, voltado contra a população negra e pobre das favelas.
Não há justificativa para que uma política estatal, supostamente voltada à proteção da
sociedade, continue a ser conduzida a partir do derramamento de sangue. A segurança
pública deve garantir direitos, não violá-los. As moradoras e os moradores das favelas têm
direito à vida, à integridade física e à paz — e isso não é negociável.
Rio de Janeiro (RJ), 28 de outubro de 2025.
Anistia Internacional Brasil
Justiça Global
Centro de Estudos de Segurança e Cidadania — CESeC
Conectas Direitos Humanos
Centro pela Justiça e o Direito Internacional — CEJIL
Instituto Papo Reto do Complexo do Alemão
Redes da Maré
Instituto de Estudos da Religião — ISER
Observatório de Favelas
Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP) Luiza Mahin
Movimento Unidos dos Camelôs
Grupo Tortura Nunca Mais — RJ
Fórum Popular de Segurança Pública do Rio de Janeiro
CIDADES – Núcleo de Pesquisa Urbana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Defensores de Direitos Humanos — DDH
Iniciativa Direito Memória e Justiça Racial
Frente Estadual pelo Desencarceramento — RJ
Instituto Terra Trabalho e Cidadania — ITTC
Associação de Amigos/as e Familiares de Pessoas Presas e Internos/as da Fundação Casa
— Amparar
Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares — GAJOP
Instituto Sou da Paz
Rede Justiça Criminal
Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional — FASE RJ
Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares — RENAP RJ
Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência
Casa Fluminense
Plataforma Justa
Núcleo de Estudos e Pesquisa Guerreiro Ramos – Negra-UFF”
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Comentários
Zé Maria
.
.
“Essa lógica de medir força armada bélica com estruturas
do tráfico sempre resultaram em mortes cada vez maiores,
em sofrimento cada vez mais intenso, perda de acesso
a serviços públicos, perda de mobilidade urbana, os mais
frágeis sempre vão sofrer muito mais.
A economia é afetada diretamente e o problema nunca
foi sequer arranhado”, diz o professor do Departamento
de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ), José Cláudio Souza Alves à Agência
Brasil.
[…]
Para o diretor da Iniciativa Direto à Memória e Justiça Racial e militante do movimento de favelas, Fransérgio Goulart, o que se vê é uma guerra dentro de territórios negros e pobres.
[…]
Em entrevista ao programa Revista Rio, da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz, classificou a operação como amadora e uma “lambança político-operacional”.
Segundo ela, foram cometidos erros táticos que vão ao encontro do que está previsto nas próprias instruções normativas de segurança pública.
“Para colocar 2,5 mil policiais, tem que fazer uma previsão de 7,5 mil a 10 mil policiais, porque tem três turnos de trabalho e escala. Isso quer dizer que para fazer esta operação, que eu chamei de uma lambança político-operacional do governador Castro, teve que se retirar o policiamento de 3 milhões a 5 milhões de pessoas na região metropolitana”, diz. “De um lado, esquentou-se a chapa numa área crítica, não reduziu a capacidade operacional do crime, por outro, viabilizou a morte de policiais, o ferimento de policiais, de cidadãos sem que isso significasse um avanço sobre o crime organizado”.
Ela acrescenta:
“Isso é muito sério porque põe em risco a vida dos policiais, põe em risco a vida da população, inviabiliza a circulação de pessoas, de mercadorias. Nós estamos produzindo fechamento da Linha Amarela, da Linha Vermelha, da Avenida Brasil, dando um nó em toda a região metropolitana. Ou seja, esquentando a chapa e multiplicando a insegurança”, diz.
Ela explicou que a operação tinha razão para existir, mas foi mal concebida.
“A finalidade dela foi politiqueira, pondo em risco a vida dos agentes da lei, da população, com resultados que não se sustentam diante da doutrina de operações policiais, que fique claro, porque há critérios técnicos sim, polícia não é amadorismo, a polícia é profissão”.
[…]
“Chama a atenção os corpos negros algemados.
Os corpos jogados pelo chão da favela, fora os desaparecidos no entorno da mata.
A polícia não age da mesma forma na Zona Sul.
Agora mesmo, passei de ônibus pela região, e a praia estava cheia.
Nos territórios pretos, a polícia age historicamente
de outra forma”, diz Fransérgio à Agencia Brasil.
“O que eu mais estranho é a própria grande mídia entrar
nesse discurso de dar muito peso ao fato de os mortos
serem bandidos ou não, nessa dualidade simplista.
A gente teve, pelo menos, 64 pessoas mortas por causa
de uma operação policial.
Isso no mundo inteiro iria causar um impacto, uma comoção, uma sensibilização.
E o governador está passando ileso.
A política de segurança pública dele executou 64 pessoas”, complementa.
[…]
Para o Instituto Fogo Cruzado, instituição que produz dados e informações sobre violência armada e que compilou informações sobre a Operação Contenção, ações como esta não combatem de fato o crime organizado.
“Combater o crime organizado exige outra lógica.
É preciso atacar fluxos financeiros, investigar lavagem
de dinheiro, fortalecer corregedorias independentes
e combater a corrupção dentro do Estado.
Tudo que o Rio de Janeiro não faz há décadas”,
afirmou, em nota.
(https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2025-10/operacao-no-rio-e-cortina-de-fumaca-e-expoe-populacao-linha-de-tiro-dizem-especialistas)
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Zé Maria
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“Essa lógica de medir força armada bélica com estruturas
do tráfico sempre resultaram em mortes cada vez maiores,
em sofrimento cada vez mais intenso, perda de acesso
a serviços públicos, perda de mobilidade urbana, os mais
frágeis sempre vão sofrer muito mais.
A economia é afetada diretamente e o problema nunca
foi sequer arranhado”, diz o professor do Departamento
de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ), José Cláudio Souza Alves à Agência
Brasil.
[…]
Para o diretor da Iniciativa Direto à Memória e Justiça Racial e militante do movimento de favelas, Fransérgio Goulart, o que se vê é uma guerra dentro de territórios negros e pobres.
[…]
Em entrevista ao programa Revista Rio, da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz, classificou a operação como amadora e uma “lambança político-operacional”.
Segundo ela, foram cometidos erros táticos que vão ao encontro do que está previsto nas próprias instruções normativas de segurança pública.
“Para colocar 2,5 mil policiais, tem que fazer uma previsão de 7,5 mil a 10 mil policiais, porque tem três turnos de trabalho e escala. Isso quer dizer que para fazer esta operação, que eu chamei de uma lambança político-operacional do governador Castro, teve que se retirar o policiamento de 3 milhões a 5 milhões de pessoas na região metropolitana”, diz. “De um lado, esquentou-se a chapa numa área crítica, não reduziu a capacidade operacional do crime, por outro, viabilizou a morte de policiais, o ferimento de policiais, de cidadãos sem que isso significasse um avanço sobre o crime organizado”.
Ela acrescenta:
“Isso é muito sério porque põe em risco a vida dos policiais, põe em risco a vida da população, inviabiliza a circulação de pessoas, de mercadorias. Nós estamos produzindo fechamento da Linha Amarela, da Linha Vermelha, da Avenida Brasil, dando um nó em toda a região metropolitana. Ou seja, esquentando a chapa e multiplicando a insegurança”, diz.
Ela explicou que a operação tinha razão para existir, mas foi mal concebida. “A finalidade dela foi politiqueira, pondo em risco a vida dos agentes da lei, da população, com resultados que não se sustentam diante da doutrina de operações policiais, que fique claro, porque há critérios técnicos sim, polícia não é amadorismo, a polícia é profissão”.
[…]
“Chama a atenção os corpos negros algemados.
Os corpos jogados pelo chão da favela, fora os desaparecidos no entorno da mata.
A polícia não age da mesma forma na Zona Sul.
Agora mesmo, passei de ônibus pela região, e a praia estava cheia.
Nos territórios pretos, a polícia age historicamente
de outra forma”, diz Fransérgio à Agencia Brasil.
“O que eu mais estranho é a própria grande mídia entrar
nesse discurso de dar muito peso ao fato de os mortos
serem bandidos ou não, nessa dualidade simplista.
A gente teve, pelo menos, 64 pessoas mortas por causa
de uma operação policial.
Isso no mundo inteiro iria causar um impacto, uma comoção, uma sensibilização.
E o governador está passando ileso.
A política de segurança pública dele executou 64 pessoas”, complementa.
(https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2025-10/operacao-no-rio-e-cortina-de-fumaca-e-expoe-populacao-linha-de-tiro-dizem-especialistas)
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