Antonio de Azevedo: Protestos, aplausos e bombas em um planeta em tensão

Tempo de leitura: 5 min
Ilustração: Renato Aroeira (@arocartum)

No Kings: aplausos, protestos e bombas em um planeta em tensão

Por Antonio Sérgio Neves de Azevedo*

Crises domésticas e geopolíticas expõem o esgarçamento das democracias, a desigualdade estrutural e a urgência de políticas que unam justiça social e responsabilidade global.

Nesse contexto, o noticiário de um só dia, quando se observa com atenção, costuma funcionar como um espelho do momento histórico, refletindo esperanças e medos, gestos de inclusão e sinais de ruptura.

Em poucas linhas, jovens ovacionam o presidente em um aulão para cursinhos populares; um ministro do Supremo Tribunal Federal propõe decisão histórica sobre a descriminalização do aborto; milhões saem às ruas nos Estados Unidos para protestar contra o presidente; denúncias surgem sobre um ataque que matou pescadores colombianos no Caribe; e, no tabuleiro global, menções a mísseis Tomahawk reacendem o temor de uma escalada entre potências. Esses fatos, ainda que desconexos, quando costurados, desenham um mundo em que política, soberania e direitos atravessam tensões profundas e interligadas.

No plano interno, há o que celebrar. O governo federal anunciou aportes para cursinhos populares e realizou um aulão com estudantes do Enem, gesto que simbolicamente reaproxima o Estado de camadas jovens e vulneráveis, reacendendo a promessa de igualdade de oportunidades. É um movimento que inspira, mas também exige compromisso duradouro.

Contudo, a mesma cena que gera aplausos revela uma contradição estrutural. O entusiasmo estudantil convive com interrupções rotineiras de abastecimento de água que atingem milhares de pessoas em São Paulo.

A crise hídrica não é apenas climática; é resultado de décadas de negligência infraestrutural e ficou pior com a privatização da Sabesp. A inclusão educacional, por mais nobre, é ilusória se não repousar sobre direitos elementares: saneamento, moradia, transporte coletivo e água potável.

A esse vácuo institucional soma-se um fenômeno que revela a natureza real do esgarçamento social, o avanço sistemático do crime organizado sobre funções estatais em São Paulo.

Facções como o PCC expandiram, nos últimos anos, seu controle não apenas sobre territórios, mas sobre economias locais inteiras, cobrando taxas sobre comércio, impondo regras de circulação, resolvendo conflitos de propriedade e, em casos extremos, substituindo polícia e judiciário na “mediação” de disputas.

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Não se trata de criminalidade comum; trata-se de governança paralela, exercida onde o Estado se retirou.

Quando organizações criminosas assumem funções públicas, o pacto civilizatório se inverte: deixa de ser contrato entre cidadãos mediados pelo Estado para se tornar submissão a um poder privado e clandestino. A população de comunidades sob controle de facções não experimenta liberdade; experimenta segurança coercitiva, que é seu oposto.

Essa captura do espaço público não se reverte com operações pontuais ou campanhas de “lei e ordem”.

Reverte-se apenas com políticas integradas que combinem justiça social, que reduza a rentabilidade do crime, inteligência policial baseada em dados e comunidade, presença estatal permanente através de equipamentos de saúde, educação e mediação social, e accountability clara, com pessoas responsabilizadas, recursos auditados e resultados mensurados. Slogans vendem esperança; políticas integradas constroem realidade.

Enquanto o Brasil luta para equilibrar inclusão e segurança, o mundo nos devolve outra imagem, milhões nas ruas dos Estados Unidos numa jornada de protestos autodenominada “No Kings”, expressão crua contra tendências autoritárias no poder central.

As praças norte-americanas lembram que a democracia não é apenas formal; quando instituições perdem credibilidade, a rua volta a ser o foro político decisivo. Esses protestos revelam que legitimidade não é conferida, é conquistada diariamente, através de responsividade institucional, transparência e resultados que efetivamente melhorem vidas. Governos que se fecham ao diálogo transformam cidadãos em opositores sistemáticos.

No Brasil, por outro lado, um gesto jurídico simboliza outro tipo de tensão democrática, o voto do ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, a favor da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.

A decisão, que reacendeu debates morais, religiosos e de saúde pública, ilustra o quanto os tribunais, em tempos de impasse político, tornam-se palco de disputas éticas fundamentais.

Barroso sustentou que a criminalização atinge sobretudo mulheres pobres, sem acesso a serviços seguros de saúde, e perpetua desigualdades sociais e de gênero. O debate não é apenas jurídico, é civilizatório, porque traduz o embate entre o Estado que pune e o Estado que protege, entre o moralismo punitivo e a autonomia reprodutiva como direito humano.

Esses dois polos, as demandas por inclusão e justiça social no Brasil e a rejeição massiva ao autoritarismo no exterior, revelam que a política é mais do que gestão, é disputa simbólica por legitimidade. E legitimidade se constrói com coerência e eficácia. Quem promete oportunidade deve mostrar resultados; quem governa com poder concentrado deve prestar contas e proteger direitos.

Dito isso, no campo internacional, a denúncia de que um ataque no Caribe matou pescadores colombianos evidencia o risco do uso irresponsável da força. Quando operações militares erram o alvo e ceifam vidas civis, o resultado é menos segurança e mais desconfiança entre Estados.

Em paralelo, a discussão sobre o envio de mísseis Tomahawk à Ucrânia revela um dilema real numa ordem internacional onde a diplomacia fracassa e as armas tornam-se linguagem. Mas linguagem de quem?

Potências médias como o Brasil enfrentam pressão crescente para escolher blocos e lados. A tentação do retorno à bipolaridade mascara uma realidade mais sombria: fragmentação sem regras comuns, onde o armamento substitui a razão. Nesse vácuo, pescadores morrem, conflitos se multiplicam e democracias respiram ar rarefeito.

O entrelaçamento desses fatos, falta de água e avanço do crime nas metrópoles brasileiras, protestos massivos no exterior, decisões judiciais sobre direitos reprodutivos e tensões geopolíticas, revela um padrão, as democracias contemporâneas enfrentam uma crise simultânea de capacidade estatal e legitimidade institucional.

Impõe-se, portanto, não apenas indignação, mas reposicionamentos estruturais em três frentes:

Primeiro, coerência institucional mensurada. Políticas públicas precisam ser contínuas, auditadas e com metas claras. É fácil aplaudir um aulão; é difícil garantir o básico, água, transporte, segurança, que sustenta toda educação.

Segundo, responsabilidade democrática como prática. Governos que não escutam a sociedade transformam ruas em tribunais. É preciso responder com políticas que reduzam fraturas sociais, não com campanhas retóricas ou repressão. Inclusão é ação permanente, não gesto episódico.

Terceiro, limites claros à militarização da política externa. A diplomacia multilateral e o direito internacional devem prevalecer sobre o impulso bélico, sob pena de a humanidade retroceder não apenas em capacidade de paz, mas em confiança compartilhada.

O noticiário de um só dia expõe o mapa de nossas contradições, aplausos e protestos, carências básicas e discursos grandiosos, promessas de paz e reposicionamentos militares.

A escolha não é simples, mas é clara, ou reforçamos instituições capazes de proteger a vida e a dignidade em todas as suas dimensões, ou assistiremos à erosão simultânea da democracia, da natureza e da confiança pública.

Antes que as ruas, os mares e os céus se tornem testemunhas definitivas de nossa falha coletiva, ainda é tempo de transformar indignação e esperança em políticas concretas, não de emergência, mas estruturantes, capazes de gerar futuro e bem-estar para todos num mundo cada vez mais hostil com baixa solidariedade e desumano.

*Antonio Sérgio Neves de Azevedo é engenheiro, mestre e doutorando em Direito, em Curitiba, no Paraná.

Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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