Gustavo Guerreiro: Kirk, a direita e a santificação do ódio

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Kirk, a direita e a santificação do ódio

Por Gustavo Guerreiro*, especial para o Viomundo

A primeira coisa que me assaltou a mente ao ver as imagens da cerimônia fúnebre de Charlie Kirk não foi a dor, a perda ou qualquer sentimento remotamente associado a um réquiem. Pelo contrário, foi uma sensação fria de que a história estaria se repetindo, como algo que nos acomete quando identificamos símbolos, comportamentos e discursos já vistos em outros palcos, com outros tiranos.

Ali, sob o peso de bandeiras dos EUA desfraldadas com uma solenidade quase marcial, com crucifixos que pareciam mais adereços de campanha que símbolos de fé e uma plateia pontuada pelos onipresentes bonés vermelhos do MAGA, não se enterrava um homem. Beatificava-se um fantasma.

Durante o evento, Donald Trump apresentou Kirk como “um grande e lendário patriota”. A frase, exagerada e previsível, mas calculada, encontrou amparo imediato entre os fiéis do evento e nas bolhas digitais.

A elite política, sempre ávida por cerimônias que legitimem sua autoridade, tratou o elogio como um maravilhoso epitáfio. Afinal, diante da morte, a civilidade manda calar as críticas, depor as armas, unir a nação em luto. Mas que nação? E que luto?

A cerimônia, meticulosamente montada para as câmeras, funcionava como um gigantesco ato de expurgação biográfica. Um ritual de lavagem de alma, não a do morto, mas a da ideologia que ele representava em sua forma mais virulenta e desinibida.

Era preciso fabricar um mártir para que o movimento pudesse ter seu primeiro santo; um santo cujo evangelho, era o do ressentimento, do racismo que pregava que a escravidão dos negros ajudava a diminuir a criminalidade e da teoria conspiratória da “Grande Substituição” (Great Replacement), segundo a qual a população branca dos EUA em declínio populacional estaria sendo substituída por imigrantes e seus filhos, colocando em risco o “espírito” da sociedade estadunidense.

Para quem se dispõe a um mínimo de arqueologia recente — e por recente, refiro-me a consultar jornais da semana passada —, a figura de Charlie Kirk se destaca não como um patriota, mas como um vendedor de mentiras, um empreendedor do pânico moral financiado por bilionários que viram no caos uma excelente oportunidade de negócios.

Lembremos, pois a memória é um campo de batalha, que foi a organização de Kirk, a Turning Point USA, que se gabou de fretar ônibus para levar “patriotas” a Washington em janeiro de 2021. Patriotas que, logo em seguida, invadiriam o Capitólio num dos dias mais sombrios da história estadunidense.

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Este “pequeno” detalhe, contudo, foi convenientemente varrido para debaixo do tapete sobre o qual repousava o caixão.

O homem que por anos envenenou o debate público com diatribes racistas e xenófobas contra imigrantes, que demonizou adversários políticos e que ajudou a semear a desconfiança nas urnas era, agora, apenas um “jovem que amava seu país”.

A transformação do incendiário em bombeiro honorário é uma das mais cínicas e eficazes ferramentas do autoritarismo.

E aqui entramos no segundo ato desta ópera bufa e trágica: a cumplicidade de quem deveria ser a linha de frente da resistência.

Um artigo de opinião publicado no New York Times era de uma neutralidade acovardada: “America Mourns Charlie Kirk” (A América lamenta por Charlie Kirk).

Que América, cara pálida? A América que ele ajudou a fraturar? A América Latina? A que ele ensinou a odiar seus próprios cidadãos?

As declarações de Bernie Sanders (suposto líder de inspiração socialista do Partido Democrata), falando em “respeito à família” e “divergências políticas”, pareceu menos um gesto de grandeza e mais o grunhido de uma oposição que perdeu a capacidade de nomear o inominável. Essa recusa em chamar o fascismo pelo seu nome, essa adesão a um decoro que o adversário jamais respeitou, não é sinal de civilidade. É uma forma de rendição. É a covardia travestida de equilíbrio.

Vem-me à mente, inevitavelmente, a reflexão de Hannah Arendt sobre a “banalidade do mal”.

Costumamos associar o conceito à figura do burocrata obediente, do seguidor que não reflete sobre seus atos. Mas talvez a banalidade mais perigosa hoje resida na elite política e midiática que, por medo de parecer “radical” ou “polarizadora”, se recusa a pensar.

Pensar, no sentido arendtiano, é fazer distinções, é julgar, é traçar uma linha moral no chão e dizer: “daqui não passa”.

Ao tratar Charlie Kirk como um ator político convencional, cujas “opiniões” eram apenas parte de um pluralismo saudável, o establishment participa ativamente de sua canonização. Normaliza-se o operador para, em seguida, normalizar a operação.

E o roteiro, como se vê, é uma franquia global. Aqui mesmo, em nosso “quintal” tropical, a morte de Kirk foi o gatilho para uma ação mimética e instantânea.

Como já se observa em postagens de parlamentares e influenciadores do campo bolsonarista, repercutidas em veículos como a Folha, Globo e Estadão, a estratégia é a mesma da matriz estadunidense: apropria-se do cadáver para construir uma narrativa de perseguição.

O operador do caos ianque é prontamente convertido em um “guerreiro”, um “mártir da liberdade de expressão” cuja morte serve de alerta contra a “violência política”, uma inversão cínica que convenientemente apaga o fato de que a própria vítima era um notório fomentador de um ambiente político violento.

É o cinismo transnacional em sua forma mais pura: importa-se o luto como tática, espelha-se a hagiografia para energizar a própria base e, mais uma vez, a figura do agressor é reposicionada no altar das vítimas.

Essa recusa em nomear o mal é que permite que a estética totalitária floresça em plena luz do dia.

A fusão de símbolos nacionais, religiosos e partidários no funeral não era um acaso; era o projeto. O objetivo é criar uma imagem de unidade indissolúvel entre a nação, a fé e o movimento.

A cruz não está ali para redimir a alma de Kirk, mas para sacralizar a agenda do MAGA. A bandeira não representa a república, mas o território conquistado pelo partido. Quem está fora dessa tríade não é um opositor; é um herege, um traidor.

Como escrevi em outro artigo, citando o historiador Carlton Hayes, nação e religião compartilham traços e funções comuns, como mitos de origem, santos e mártires, objetos, lugares e cerimônias sagradas, além de um sentido do sacrifício e mecanismos de legitimação e também de mobilização.

O espetáculo fúnebre serve, assim, para apagar a violência real da pregação de Kirk e substituí-la por uma violência simbólica ainda maior: a de que a sua visão de mundo é a visão da nação.

O luto torna-se obrigatório, e quem se recusa a participar é imediatamente marcado como inimigo do povo. É uma tática antiga, que remonta aos funerais de Estado dos regimes do século XX, onde a dor coletiva era fabricada para consolidar o poder.

Diante disso, qual deveria ser a nossa postura? A responsabilidade do jornalismo, da academia e de qualquer cidadão comprometido com a democracia não é “unir o país” em torno da morte de um fascista. Pelo contrário. É aproveitar o momento em que os holofotes estão sobre o caixão para dissecar a biografia, para recontar a história, para educar o público sobre o perigo exato que aquela ideologia representa.

A recusa em participar do ritual de beatificação não é desrespeito ao morto; é respeito aos vivos e às futuras vítimas de sua pregação. É um ato cívico de primeira ordem.

Significa dizer, com todas as letras, que não há dois lados quando um deles prega abertamente o fim da democracia, a perseguição de minorias e a violência como método político. Significa entender que a neutralidade, em situações como esta, é apenas um outro nome para a cumplicidade.

O corpo de Charlie Kirk baixa à terra, mas seu espectro, agora santificado e paramentado como mártir, continuará a assombrar a arena pública com força redobrada.

O verdadeiro perigo não é o que ele fez em vida, mas o que sua morte foi transformada em símbolo. E enquanto a imprensa liberal continuar a oferecer obituários “equilibrados” e a oposição democrática continuar a emitir notas de pesar protocolares, estaremos todos participando, de joelhos, da mesma missa.

A questão que fica, assustadora e urgente, é: quem será o próximo santo deste panteão macabro e até quando nos permitiremos acender uma vela em sua homenagem?

*Gustavo Guerreiro é doutor em políticas públicas e pesquisador do Observatório das Nacionalidades.

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Zé Maria

Notícias STF

Flávio Dino é Eleito Presidente da 1ª Turma do STF

O Colegiado Escolheu o Ministro, por Unanimidade.

Ele sucede o Ministro Cristiano Zanin e,
tal qual os anteriores, ocupará o cargo
pelo período de um ano.

O sistema de rodízio de presidentes está previsto
no Regimento Interno do STF.
O artigo 4º estabelece que a Turma é presidida
pelo ministro mais antigo dentre seus membros,
por um período de um ano, e a recondução é vedada
até que todos os seus integrantes tenham exercido
a presidência, observando-se a ordem decrescente
de antiguidade.

Ao agradecer aos integrantes da Primeira Turma
pela eleição, o ministro ressaltou a importância
da colegialidade na atuação da Corte e se
comprometeu a dar continuidade ao trabalho
do ministro Cristiano Zanin, que presidiu com
“serenidade e tranquilidade” os trabalhos
da equipe no último ano.

https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/ministro-flavio-dino-e-eleito-presidente-da-1a-turma-do-stf/

José Espare

Se a pergunta feita pelo autor ao final for transpassada ao Brasil, a extrema direita nazifascista-bolsonarista tem dois alvos em potencial para a sacralização: o xupetinha e o filho do patriarca do bolsonarismo que atua em terras gringas. Que eles se preparem, pois a causa bolsonarista pode cobrar sua imolação.

Zé Maria

Tudo o que foi dito sobre a Ideologia Política do Atirador
é Fake News Produzida pelo Governador de Utah, que é
Republicano, Trumpista, Racista e Fascista de Direita.

Zé Maria

Um Trumpista Racista Fascista Extremista de Direita morto por Psicopata Extremista do Partido do Trump.

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