Flávio Arruda e Gustavo Guerreiro: Lista abjeta de traidores da Pátria atualizada
Tempo de leitura: 8 min
Por Flávio Arruda e Gustavo Guerreiro*, especial para o Viomundo
A maior ameaça à soberania do Brasil nunca esteve de fato em suas fronteiras. Ela não fala outra língua, não veste um uniforme estrangeiro, nem trama abertamente em chancelarias distantes.
A ameaça, a mais corrosiva e persistente, está aqui. É tão brasileira quanto o saci e o curupira. Ela toma cafezinho no Congresso, janta nos Jardins, veraneia em Angra, farfalha em Noronha e, com desoladora frequência, salta dos pecados desabonadores para a cadeira presidencial.
A história do Brasil é a crônica da traição endógena, uma sucessão de atos perpetrados por figuras que, vestindo o manto do patriotismo, operaram com a frieza de executores e carrascos.
Entregaram, a preço vil, os interesses do povo, as riquezas da nação e a dignidade do futuro. Essa “lista abjeta”, como a chamamos, é um índice remissivo da infâmia nacional.
E ela precisa, com urgência, ser lembrada, atualizada e, sobretudo, enfrentada. São infindáveis anti-heróis, cujo nome tatua o grande livro da hades tupiniquim (veja PS do Viomundo).
O berço da traição, como não poderia deixar de ser, foi a própria Colônia. Formou-se aqui uma escola de subserviência. A elite nascente, composta por senhores de engenho, matadores de povos, traficantes de gente e seus burocratas, aprendeu desde cedo que sua prosperidade dependia de pactuar com o opressor externo e esmagar o oprimido interno.
Os capitães do mato, figuras fundacionais da nossa violência estrutural, não eram meros capatazes; eram os primeiros agentes de um Estado embrionário cujo projeto era garantir a extração de riquezas para a metrópole, custe o que custasse. Sua impostura jogava água no moinho dos grandes espólios desta terra de riquezas, donatários e degredos.
A independência, que poderia ter sido nossa epopeia de ruptura, foi, como sabemos, um arranjo comercial negociado por Pedro e João, que recolheu as garras para encher as burras com a benção da Inglaterra, a grande credora. O povo, mais uma vez, foi um espectador atraiçoado.
A República, então, nem se fala: um golpe a fio de espada para garantir que as oligarquias cafeeiras continuassem no poder, trocando o selo imperial pelo timbre positivista – sem o amor, anote-se. A traição, portanto, não é um desvio de percurso; ela é o próprio alicerce sobre o qual se ergueu a política de Estado no Brasil.
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Tal sanha predatória encontrou sua expressão mais vil e brutal no genocídio contínuo dos povos originários. Desde a chegada dos invasores, a terra não foi “descoberta”, foi tomada; seus habitantes não foram “catequizados”, mas tiveram seu sangue a tingir as vestes canônicas dos que os acusavam de desalmados. Quantas vezes Tupã os despiu das vergonhas.
Essa violência foi elevada a política de Estado informal pelo bandeirantismo de assassinos como Borba Gato e seus congêneres.

A mesma lógica percorreu os séculos e encontrou campo fértil na Ditadura cívico-empresarial-militar, que, sob o pretexto de “integrar para não entregar”, promoveu massacres e remoções forçadas para a construção de estradas como a Transamazônica, que teve o traçado alterado para empoeirar a região onde a ‘Forga’ ousou resistir (veja PS do Viomundo). Foram vetores de extermínio documentados no Relatório Figueiredo e pela Comissão da Verdade.
A tocha da infâmia foi passada adiante, chegando aos governos de Michel Temer e, com fúria apocalíptica, de Jair Bolsonaro, reencarnando fantasmas do passado, promovendo o desmonte sistemático da política indigenista e a liberação de garimpo ilegal em terras protegidas.
Práticas que configuraram uma política tão explícita de agressão que o levaram a ser denunciado por genocídio contra os povos indígenas no Tribunal Penal Internacional de Haia. O extermínio do indígena, portanto, não foi um acidente de percurso, mas a condição de possibilidade para a acumulação de riqueza dessa elite traidora desde sempre. Era e é, pois, parte do projeto.
Com a República Velha, essa prática foi institucionalizada. Enquanto o discurso oficial, estampado em jornais como O Estado de São Paulo da época, falava em “ordem e progresso”, a realidade era a de uma democracia cenográfica.
O voto de cabresto e a política dos governadores garantiam o poder aos mesmos barões que, sem o menor pudor, mandavam queimar toneladas de sacas de café para sustentar preços internacionais, enquanto o povo passava fome.
Movimentos como Canudos e a Guerra do Contestado não foram meros conflitos regionais; foram massacres deliberados, projetos de extermínio contra brasileiros que ousaram sonhar com um pedaço de terra e um pingo de dignidade.
O Caldeirão (veja PS do Viomundo), mesmo sob as bênçãos do Padre Cícero, sofreu toda sorte de bombardeios. A traição aqui se camuflava no balanço contábil, no superávit da exportação de commodities, na repressão sistemática ao povo e às greves operárias em São Paulo e no Rio. Era o progresso para poucos, à custa da nação inteira.
Mas a expressão máxima, quase uma apoteose da traição, veio com o golpe de 1964. Sua preparação é um combo de traidores. Ali, o projeto de submissão se despiu de qualquer eufemismo. Interrompeu-se à força um projeto nacional-popular, ainda que tímido e cheio de contradições, encarnado por João Goulart e suas reformas de base.
Em seu lugar, instaurou-se um regime que não apenas se alinhava aos Estados Unidos na Guerra Fria, mas que lhes entregava a chave de casa. Os acordos MEC-USAID, que redesenharam nosso sistema educacional para formar técnicos dóceis em vez de cidadãos críticos, e a entrega da Amazônia à cartografia da geopolítica estadunidense são apenas dois exemplos.
Os traidores daquele período têm nome e sobrenome: os generais que conspiraram, os empresários da FIESP que financiaram a quartelada, membros do legislativo e do judiciário, a mídia que preparou o terreno — basta reler os editoriais da Folha ou do Globo daquele período — e os torturadores que, nos porões do DOI-CODI, se tornaram a face mais hedionda de um Estado voltado contra seu próprio povo.

O “inimigo interno” que eles diziam combater éramos nós: o estudante, o operário, o camponês, o artista, o intelectual. O povo. Foram mais de duas décadas de traições em grande escala.
Depois do brevíssimo e esperançoso interlúdio da redemocratização, a traição voltou a dar as caras, desta vez com um verniz de modernidade. Fernando Collor, o caçador de marajás que se revelou o maior deles, foi o garoto-propaganda dessa nova cepa de traição entreguista: o neoliberalismo.
O traidor, que foi sem nunca ter ido, agora envergava paletó bem ajustado e com vistosas ombreiras, falava em “abertura econômica” e dormia no museu das grandes novidades. O que se seguiu foi uma desindustrialização acelerada, um ataque sistemático ao Estado como indutor do desenvolvimento e, no gesto mais vil, o confisco da poupança, uma agressão direta ao coração da classe média e dos trabalhadores que acreditaram em seu discurso.
Sua queda, cobrada e celebrada nas ruas pelos caras-pintadas, foi um momento de catarse cívica, sem dúvida. Mas o modelo que representava, infelizmente, não caiu com ele. Apenas mudou de mãos, tornando-se consenso nos anos seguintes.
E assim, chegamos ao nosso presente trágico, a Jair Bolsonaro, a boleia do Trem Fantasma, a culminância, a síntese de toda a linhagem de traidores que assacou Pindorama desde a carta de Pero Vaz de Caminha.
O messias do fascio encarnou com perfeição a lógica do capitão do mato: violento e implacável com os de dentro, servil e abjeto com o império. Sua gestão não foi um desastre; foi um projeto.
A economia ajoelhada no altar perverso do ultraliberalismo, o desmonte das políticas ambientais, a sabotagem deliberada no combate à pandemia (documentada à exaustão pela CPI da Covid), a destruição de agências de cultura e ciência, a continência a uma bandeira estrangeira e a tentativa patética de golpe em 8 de janeiro de 2023, gran finale de uma série brancaleônica de ações, não foram atos de um tolo.
Foram crimes de um sabotador-chefe, fadado às grades extradomiciliares pelo conjunto da traiçoeira obra. E ao seu lado, uma nova geração de traidores fardados, generais de pijama e de gabinete cujo silêncio cúmplice ou participação ativa emulou a mesma traição de 1964. Quis a história tombar seu destino com uma delação “cerejando” o pavoroso bolo.
Nessa atualização da lista, novos nomes ganham destaque na ala civil. Eduardo Bolsonaro, por exemplo, não é apenas o filho do ex-presidente; é o articulador-mor da extrema-direita transnacional no Brasil, um discípulo de Steve Bannon que opera a diplomacia paralela para sabotar os interesses do país em favor de uma agenda reacionária global.
Ao seu lado, figuras como o punguista Paulo Figueiredo, neto do último ditador-presidente, brucutu patético acavalado em bombas, que da segurança de seu microfone em Miami, atua como um propagandista da submissão. Herdeiro biológico e ideológico do arbítrio, ele é operador da desinformação, um revisionista do passado que, como seus antecessores, trabalha para confundir, dividir e minar a confiança do povo em suas próprias instituições. A nova mídia digital, com seus canais de aparência jornalística, em parte tornou-se o principal instrumento dessa velha traição.
A conspiração contra o Brasil ganhou mais uma dimensão religiosa. O uso cínico da fé para legitimar a desigualdade, o ódio ao diferente e a entrega da pátria é talvez uma das mais perversas facetas da traição contemporânea, herdeira nefasta de antigas catacumbas.
Pastores-empresários, sepulcros caiados e vendilhões de templos televisivos, transformaram púlpitos em palanques, vendendo a ideia de que a miséria é um fracasso espiritual e que a obediência a um projeto de poder autoritário é vontade divina, passaporte para a prosperidade em vida. São os “lobos em pele de cordeiro” de que fala a Escritura, que usam o nome de Deus para pregar contra os interesses mais básicos do povo brasileiro, abençoando o capital financeiro e o império, condicionando o rebanho a ser seu próprio algoz.
O neopentecostalismo político, com raras e honrosas exceções, tornou-se uma força auxiliar do entreguismo. A justa e muitas vezes necessária manifestação da fé, ganhou sopros de manifesto do atraso, do preconceito, do divino bélico e vingativo.
O mais triste é constatar como essa cultura da traição, essa ideologia da subserviência, capilarizou-se em nosso cotidiano.
O “guarda da esquina” das antigas ditaduras, que vigiava e delatava, reencarnou no tio do zap, no entregador de fake news, no microinfluenciador de extrema-direita que vomita seu ressentimento em podcasts de quinta que vociferam orgulhosa ignorância.
A figura do “fantoche” traidor se atualizou no economista de mercado que celebra a venda de estatais estratégicas, no militar que troca a defesa das fronteiras pela segurança de um gabinete com ar-condicionado, no juiz que, em conluio com o procurador, rasga a Constituição que jurou defender, sabota uma eleição e destrói os setores mais dinâmicos da nossa economia. Todos, a seu modo, repetem o mesmo mantra: o Brasil é o problema, a solução vem de fora.
Diante desta lista longa e deprimente, o que nos resta?
Apenas a constatação de que a luta contra os traidores da pátria é, em essência, a luta pela construção de um Brasil que nunca existiu plenamente. Um Brasil soberano, dono de seu destino e de suas riquezas. Um Brasil justo, que encare de frente suas feridas históricas. Um Brasil democrático, onde a vontade popular, expressa nas urnas, seja sagrada.
A resposta a tantas traições só pode ser a afirmação de um projeto nacional-popular, que tenha na base a justiça social, a proteção radical de nossos biomas, a soberania econômica e, acima de tudo, a dignidade inegociável de seu povo.
A lista de traidores é longa, mas a história também nos mostra que, em cada um desses momentos, houve um povo que resistiu. E que fique claro: traição não é opinião. É crime contra a pátria. E o Brasil não será reconstruído com criminosos, covardes e entreguistas no comando.
*Flávio Arruda é publicitário.
*Gustavo Guerreiro é doutor em políticas públicas e pesquisador do Observatório das Nacionalidades.
PS do Viomundo
Hades, na mitologia grega, é o deus do submundo e dos mortos. Hades tupiniquim seria o inferno simbólico brasileiro.
‘’Forga’’ era como os camponeses chamavam a ‘’força’’, a resistência da Guerrilha do Araguaia
Caldeirão era uma comunidade fundada pelo Beato José Lourenço, no Ceará, que tinha as bênçãos do Padre Cícero. Uma espécie de Comuna, como foi Canudos.
*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.




Comentários
Zé Maria
Excerto (2)
“A maior ameaça à soberania do Brasil, a mais corrosiva
e persistente, está aqui…
Ela toma cafezinho no Congresso, janta nos Jardins,
veraneia em Angra, farfalha em Noronha e, com desoladora
frequência, salta dos pecados desabonadores para
a cadeira presidencial [os Mais Recentes Exemplos
(Pós-CF/1988) são os ‘Fernandos’ (Collor de Mello e
Henrique Cardoso) e Michel Temer e Jair Bolsonaro].
Flávio Arruda & Gustavo Guerreiro
https://t.co/BB4p9K0V0D
https://x.com/VIOMUNDO/status/1952782862412890175
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Zé Maria
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A Elite Econômica do braZil – e, portanto, a Político-Social –
tem suas Bases Estruturadas na Grande Propriedade Patriarcal,
o Latifúndio, sob os Auspícios e Bênçãos da ‘Santa’ Inquisição Ibérica.
Os Primeiros Latifundiários eram “Gajos” da Matriz Colonial
Européia que foram se apropriando das Extensas Terras Nativas,
transmitindo-as consecutivamente por Herança, ao passo que os Herdeiros, por sua vez, aumentavam
cada vez mais a Área das Propriedades, Sub-Utilizadas
na Produção Agropecuária Extensiva Predatória, às Custas
do Trabalho Escravo de ‘Pretos’ e ‘Vermelhos’ dos quais
se originou a Classe Trabalhadora BraSileira.
Por conseguinte, a Burguesia Industrial braZileira e,
posteriormente, a Elite Financeira Atual são Sucessoras
dos Racistas Brancos Europeus Concentradores de Riqueza
num Sistema Pré-Capitalista em Regime quase Feudal.
Esses nem sequer podem ser Denominados Traidores Impatrióticos,
porque são Apátridas, isto é, a ‘Pátria’ deles é Qualquer Lugar
onde podem obter Lucro Fácil e Desmedido, Explorando
abusivamente o Trabalho Produtivo Alheio e predando e depredando
a Natureza, em Última Instância, o Planeta Terra, do(a) qual se acham Donos.
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Excertos do Brilhante Artigo (no Viomundo)
de Flávio Arruda & Gustavo Guerreiro:
“O berço da traição, como não poderia deixar de ser,
foi a própria Colônia.
Formou-se aqui uma escola de subserviência.
A elite nascente, composta por senhores de engenho,
matadores de povos, traficantes de gente e seus
burocratas, aprendeu desde cedo que sua
prosperidade dependia de pactuar com o opressor
externo e esmagar o oprimido interno.”
“Os capitães do mato, figuras fundacionais da violência
estrutural, não eram meros capatazes;
eram os primeiros agentes de um Estado embrionário
cujo projeto era garantir a extração de riquezas para
a metrópole, custe o que custasse.
Sua impostura jogava água no moinho dos grandes
espólios desta terra de riquezas, donatários e degredos.”
[…]
“Tal sanha predatória encontrou sua expressão mais vil
e brutal no genocídio contínuo dos povos originários.
Desde a chegada dos invasores, a terra não foi ‘descoberta’,
foi tomada;
seus habitantes não foram “catequizados”, mas tiveram
seu sangue a tingir as vestes canônicas dos que os
acusavam de desalmados.
Quantas vezes Tupã os despiu das vergonhas.”
[…]
“A maior ameaça à soberania do Brasil … não fala outra língua,
não veste um uniforme estrangeiro, nem trama abertamente
em chancelarias distantes.
A ameaça, a mais corrosiva e persistente, está aqui…
Ela toma cafezinho no Congresso, janta nos Jardins,
veraneia em Angra, farfalha em Noronha e, com desoladora
frequência, salta dos pecados desabonadores para
a cadeira presidencial.
A história do Brasil é a crônica da traição endógena,
uma sucessão de atos perpetrados por figuras que,
vestindo o manto do ‘patriotismo’ [‘o último refúgio
dos canalhas’ (Samuel Johnson)], operaram com a
frieza de executores e carrascos.
Entregaram, a preço vil, os interesses do povo, as riquezas da nação e a dignidade do futuro.
Essa ‘lista abjeta’ … é um índice remissivo da infâmia nacional.”
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marcio gaúcho
Aos autores dessa aula magna, Flávio Arruda e Gustavo Guerreiro, sinceros sentimentos de pertencimento e agradecimento a tudo o que contém e expressa esse primor de texto! Congratulações!
solange da cruz chaves
Nossa! Quanta retórica para justificar um movimento comunista em 1964 e quanta narrativa para prender o principal opositor do ladrão, é só isso que importa, prender o opositor, mas não se enganem mesmo que ele morra a ideia bolsonarista permanecerá viva e 2026 se aproxima.