Telia Negrão: Governo Dilma ainda sem rumo na saúde das mulheres

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Telia Negrão: “Misoprostol salva a vida de mulheres”

por Conceição Lemes

Quarta-feira, 28 de setembro, é o Dia da Despenalização do Aborto na América Latina e Caribe.

Na quinta, sexta e sábado, acontece, em Porto Alegre, o XI Encontro Nacional da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. O tema central será a implementação da política nacional de atenção integral à saúde das mulheres e a retomada da agenda dos direitos sexuais e reprodutivos.

“O governo da presidenta Dilma ainda não encontrou o seu rumo em relação à saúde das mulheres, pois não há uma estratégia nítida, definida”, avalia Telia Negrão, em entrevista exclusiva a esta repórter. “Até o momento o que se apresentou é uma política com ênfase na saúde materna e mais duas prioridades, o câncer de mama e do colo uterino.”

“A política de saúde integral das mulheres foi deslocada do centro, hoje ocupado pela Rede Cegonha, que, por sua vez, deixa de fora importantes elementos para enfrentar o seu principal objetivo, que é a redução da mortalidade materna”, observa Telia.  “Por exemplo, o aborto inseguro, que poderia ser reduzido não apenas com planejamento familiar, já que a gravidez indesejada pode ocorrer inclusive devido à violência, mas também com o melhor acesso ao misoprostol, junto com muita informação, orientação e apoio para situações inesperadas. Uma medida sanitária indispensável.”

“Até hoje a Anvisa não explicou bem porque tanto rigor com a proibição da venda do misoprostol em farmácias, sendo que a Flasog [Federação Latinoamericana de Sociedades de Obstetrícia e Ginecologia], a Figo [Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia] e própria OMS [Organização Mundial da Saúde] reconhecem que o misoprostol salva vida de mulheres”,  avança Telia. “Na minha avaliação, trata-se de moralismo absurdo, completamente submisso à força da fé e da religião.”

Essas preocupações não são apenas de Telia Negrão. Cientista social, ela é secretária-executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e diretora da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC).  Eis a íntegra da nossa entrevista.

Viomundo – No texto que recebi sobre o XI Encontro, a Rede Feminista de Saúde fala em “retomada da agenda dos direitos sexuais e reprodutivos para que se constituam debate contínuo e de ampla relevância no país”. Fala também que “houve uma retração na atenção integral à saúde da mulher”. O que está acontecendo?

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Telia Negrão – Na década passada, particularmente após 2002, tivemos um ciclo de políticas públicas voltadas à saúde integral das mulheres. Houve atualização do antigo Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, o Paism. De um programa verticalizante evoluiu para uma política estratégica e transversal. Nasceu aí a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, ou Pnaism.

A adequação dessa política ao enfoque de relações de gênero e diversidade implicou também na identificação de novos sujeitos sociais das políticas de saúde, entre os quais as mulheres negras, com deficiências, lésbicas, mulheres privadas de liberdade, entre outras.

Outro elemento importante: a elaboração da política nacional de direitos sexuais e direitos reprodutivos, que levou a um patamar superior o tratamento dado às questões da reprodução e da sexualidade. Em vez de olhá-los apenas sob o enfoque da saúde e da moral passaram a vistos também no campo dos direitos, o que foi decisivo para dialogar com a sociedade.

Tudo isso ocorreu com a participação dos movimentos de mulheres em toda a sua diversidade. Foi também um momento de grande visibilidade para a questão do aborto.  O governo honrou o compromisso assumido na primeira conferência de políticas para as mulheres, levando ao Congresso Nacional uma proposta de descriminalização do aborto. Esse cenário mudou um bocado nos últimos anos e mais nos últimos meses. Atualmente, não há interlocutores bem definidos para tratar desse tema no Ministério da Saúde e no próprio governo. Não é prioridade.

Viomundo — Em que termos o Ministério da Saúde mudou?

Telia Negrão — Bem, eu não acredito que a política se repita, ela pode se assemelhar num ciclo político e outro, mas com novos elementos e novos atores. Assim, a política se apresenta de outra forma.

Hoje há menos ênfase à saúde integral das mulheres. Privilegia-se o enfoque de saúde materna, mais em consonância com discurso internacional dos Objetivos do Milênio.

Em outras palavras. A política de atenção integral foi deslocada do centro, hoje ocupado pela  Rede Cegonha, que, por sua vez, deixa de incorporar importantes elementos para enfrentar justamente o seu principal objetivo, que é a redução da mortalidade materna.

Explico. A Rede Cegonha não envolve todas as determinantes importantes de doenças e óbitos — a morbimortalidade — entre as mulheres grávidas. Ela deixa de fora, por exemplo, a questão do aborto inseguro, que poderia ser reduzido não apenas com planejamento familiar, já que a gravidez indesejada pode ocorrer  inclusive devido à violência, mas também com o melhor acesso das mulheres ao misoprostol,  junto muita informação, orientação e apoio para situações inesperadas. Uma medida sanitária indispensável.

Viomundo – Por que a questão do misoprostol é tão complicada?

Telia Negrão — Aí temos uma caixa fechada nas mãos da superpoderosa Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]. Até hoje ela não explicou bem porque tanto rigor com a proibição da venda do misoprostol em farmácias, sendo que a Flasog [Federação Latinoamericana de Sociedades de Obstetrícia e Ginecologia], a Figo [Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia] e própria OMS [Organização Mundial da Saúde] reconhecem que o misoprostol salva vida de mulheres. Na minha avaliação, trata-se de moralismo absurdo, completamente submisso à força da fé e da religião.

Viomundo – Por quê?

Telia Negrão — O misoprostol coloca nas mãos das mulheres o poder de decidir se querem ou não manter uma gravidez, ou seja, delega autonomia às mulheres. Porém, aí entra um componente ideológico e cultural muito sério, pois as mulheres têm de ser vistas como pessoas capazes de tomar as próprias decisões sobre suas vidas e não seres tutelados e mantidos submissos, submetendo seus corpos para que outros deliberem.

Há coisas que me intrigam profundamente, e eu gostaria muito que a Anvisa explicasse  motivo de ser tão rigorosa para controlar o medicamento que salva a vida das mulheres e tão liberal em relação a outros produtos. Basta entrar na maioria das farmácias no Brasil, leva-se de tudo.

O mesmo ocorre em relação aos agrotóxicos, que matam e adoecem pessoas e continuam à venda depois que se liberam as fórmulas. Não sou eu que estou falando. Eu vi isso na televisão, como milhões de brasileiros.

Mas prefere-se adotar a postura omissa, mantendo o mercado paralelo, clandestino, como única alternativa às mulheres, que pagam caro. Às vezes gastam o salário de um mês e levam farinha para casa. Mantém-se, assim, um comércio ilegal, cujo acesso coloca todas as mulheres em posição de criminosas. Ou seja, larga-se o problema nas mãos das mulheres. Em 2010, trabalhamos intensamente com a Anvisa, mas os resultados foram muito pequenos perto do esforço e do necessário.

Viomundo – Mas há também problemas no sistema de saúde, inclusive com a recusa de profissionais em fornecer a anticoncepção de emergência nos casos de violência sexual.

Telia Negrão — Parte dos profissionais de saúde, por razões de ordem religiosa ou outra, se nega a fornecer desde informações às adolescentes e jovens sobre seus direitos nos casos de violência sexual até a recusa da anticoncepção de emergência. Há também problemas de dispensação do medicamento em todos os serviços. Isso foi detectado em pesquisa realizada na Unicamp, com recursos do próprio Ministério. É importante lembrar que nos casos de estupro a mulher tem o direito a uma série de procedimentos, inclusive o aborto.

Atualmente, apenas 10% dos 700 serviços cadastrados no Ministério da Saúde realizam todos os procedimentos da Norma Técnica dos Agravos à Violência Sexual e Abortamento Previsto em Lei no Brasil.

Nesse aspecto, persiste um cenário conservador, que estava em mudança nos últimos anos, mas foi interrompido devido ao abandono e à redução de processos de capacitação contínua indispensável para tratar da saúde das mulheres. Manteve-se, assim, a tendência de não se reconhecer as mulheres como sujeitas de direito. Isso também ocorre com mulheres lésbicas, que acabam invisíveis dentro do sistema de saúde, quando não maltratadas.

Viomundo — Quais as implicações dessa estratégia sobre a atenção integral à saúde à mulher?

Telia Negrão — Como cientista política, acho que as políticas públicas devem corresponder à combinação de evidências e fatores sociais.  E, na minha avaliação, as estratégias atuais de enfocar câncer de mama e colo de útero e saúde materno-infantil, além de darem conta das razões de adoecimento e morte das mulheres, não estão considerando as questões de gênero. Assim como não levam em consideração o direito das mulheres a uma vida sem violência e em condições de realizar suas escolhas sexuais e reprodutivas.

Infelizmente, a rede de atendimento às mulheres em situação de violência ainda é muito frágil, há resistências de toda ordem. Isso tem como consequência um sofrimento psíquico imenso, uso exagerado de medicações psiquiátricas, sem falar das sequelas por violências físicas.

Lembro a você que de 2003 a 2007 cerca de 40 mil mulheres foram assassinadas no Brasil, segundo estudo da Confederação Nacional dos Municípios. Isso só se resolve com políticas preventivas sérias, profundas, consequentes, que mudem o comportamento dos brasileiros, nem que seja mostrando que violência contra as mulheres tem um preço para quem as comete.

Viomundo – No seu entender essa mudança de visão, que acaba tendo repercussões na vida das mulheres, teria o dedo da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] e de setores evangélicos mais conservadores?

Telia Negrão — As igrejas em geral estão disputando a definição das políticas públicas em todo o mundo, inclusive no Brasil. Trabalham para operar alterações nas leis para reduzir direitos, impedir união civil entre pessoas do mesmo sexo, numa ação fundamentalista que lembra as Cruzadas da Idade Média. Afinal, a Igreja Católica se considera a guardiã da moral e da verdade, e tenta impor essa visão.

Viomundo — Quem perde com essa nova política?

Telia Negrão – Nada é definitivo e nós, quando criticamos e propomos, estamos querendo mudanças. Então quando você fala em nova política pode eventualmente parecer que ela já está determinada, cristalizada.  Eu não acho isso.

No meu entender, o governo da presidenta Dilma ainda não encontrou o seu rumo em relação à saúde das mulheres, pois, não há uma estratégia nítida, definida. O que se apresentou até o momento é uma política com ênfase na saúde materna e mais duas prioridades. E, aí, acho que estamos mal, pois descentralizou a ênfase numa política mais transversal e estratégica.

Uma política nacional de saúde das mulheres tem duas possibilidades. Uma é desconsiderar a existência de uma política nacional de atenção integral. Aí, o governo tem de assumir que não a aceita. Portanto, rejeita o documento reelaborado pelo próprio PT nos governos passados a partir de uma base já existente. A outra possibilidade é cumprir essa política de atenção integral à saúde das mulheres.

Não podemos conviver com o mais ou menos quando o país está sendo constantemente condenado por organismos internacionais por não cumprir recomendações e documentos firmados. Isso é particularmente vergonhoso para nós, que temos uma mulher como presidenta. Ou será que não teve nenhuma relação entre a eleição de Dilma e uma nova perspectiva para as mulheres?

Viomundo — O que a Rede Feminista pretende fazer para levar essa discussão para a sociedade?

Telia Negrão — Após o nosso XI encontro, a Rede terá uma nova agenda prioritária para os próximos anos.  E até o final do ano estaremos atuando nas conferências de saúde e de políticas para as mulheres para tentar ganhar corações e mentes em defesa da vida das mulheres brasileiras.

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