por Conceição Lemes
Nas últimas duas semanas, em artigos publicados no Viomundo, a farmacêutica Clair Castilhos (aqui), a cientista social Telia Negrão (aqui ) e a médica Fátima Oliveira (aqui, aqui e aqui) afirmaram: o conceito da Rede Cegonha é um retrocesso nas políticas de gênero, saúde integral da mulher e direitos reprodutivos e sexuais.
Alguns leitores criticaram, outros não entenderam a preocupação das três, todas (é bom que se diga!) eleitoras de primeira hora da presidenta Dilma Rousseff.
A Beattrice, nossa leitora assídua de longa data, sugeriu então uma matéria que esclarecesse e, ao mesmo tempo, historiasse a batalha de mais de 30 anos pela atenção integral à saúde de todas brasileiras.
Daí esta entrevista com a médica e escritora Fátima Oliveira, 57 anos, do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e do Conselho Consultivo da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC).
A avó de Maria Clara, Luana e Lucas e mãe de Maria, Débora, Lívia, Gabriel e Arthur, nasceu com cabelinhos nas ventas. Aos 16 anos, começou a batalhar pelos direitos das mulheres e um mundo mais solidário. Não parou mais.
Guerreira que dá gosto. No pronto-socorro do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, onde dá duros plantões. No movimento de mulheres por esse Brasil afora. Na campanha eleitoral…
Por isso, depois de avaliar o Programa Rede Cegonha, resolveu botar a boca no trombone. “Como cidadã, mulher, médica, batalhei pela eleição de Dilma. Desejo ardentemente que o seu governo dê certíssimo”, salienta. “Por isso, eticamente, me sinto na obrigação de apontar os equívocos, para que as coisas tomem o rumo certo.”
A entrevista com a doutora Fátima é longa. Mas vale a pena lê-la até o final e guardar. É um resgaste histórico da memória da luta das mulheres brasileiras pela saúde.
Viomundo – Muitos leitores não entenderam por que a senhora, Clair Castilhos e Telia Negrão insistiram tanto na questão da atenção integral à saúde da mulher. O que significa exatamente?
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Fátima Oliveira – Me chame de você, combinado? Bem, o documento-base do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher – o PAISM – chama-se Assistência Integral à Saúde da Mulher: bases de ação programática. Foi elaborado pelo Ministério da Saúde (MS) em 1983, publicado em 1985.
Constitui um marco histórico, pois é o primeiro programa de saúde no Brasil a registrar a integralidade como rumo a ser buscado para uma prática de saúde de respeito à dignidade humana.
Tenho dito e reafirmo que esse documento “é um ícone para o feminismo brasileiro por ser o mito fundador das políticas públicas em saúde da mulher com vistas a atendê-la ‘de modo integral em todas as fases de sua vida: infância, adolescência, idade adulta e terceira idade’.”
Viomundo — Doutora, você participou da elaboração?
Fátima Oliveira — Não. Exceto Ana Maria Costa, que é feminista e funcionária de carreira do Ministério da Saúde, nenhuma outra feminista integrou a comissão que elaborou o PAISM. Eu era uma médica lá do interiorzão do Maranhão, em Imperatriz. Com participação no movimento estudantil desde “secundarista”, em meados dos anos 1980, estava apalermada com as laqueaduras em massa das mulheres de Estreito, coladinha em Imperatriz. Era tão gritante que correu mundo. E eu fui muito tocada por tais fatos.
Só comecei a participar de forma efetiva da luta feminista pela saúde da mulher em âmbito mais coletivo e nacional nas preparatórias I Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher, 10 a 16 de outubro de 1986 — até hoje 1ª. e única! Mas antes mesmo de passar no vestibular de Medicina (1973), com 16 anos, no bairro de Fátima, em São Luís, integrei um trabalho denominado Ninho (atual Pastoral da Mulher Marginalizada, da Igreja Católica), desenvolvido pelas freiras da paróquia. Consistia numa aproximação com prostitutas para conversar , cuidar dos problemas de saúde delas e de seus filhos e encaminhá-las para consultas, providenciar remédios, alimentação, roupas, etc.
Depois, já médica, em Imperatriz, embora diretora de um hospital privado, de médio porte, credenciado pelo INAMPS e FUNAI, participei, desde a fundação, de uma ação política chamada Barco da Saúde, idealizada pela oftalmologista Lindalva Amorim, uma feminista e brizolista das mais radiantes (rsrsrsrs), que nem sei por onde anda hoje. Percorria as regiões ribeirinhas (do rio Tocantins) aos sábados e domingos, uma vez por mês, fazendo atendimento médico, odontológico, exames laboratoriais, gratuitamente… Era algo do tipo amenizar miséria. Mas era necessária. Beneficiou muita gente.
Viomundo — O PAISM é da era pré-SUS…
Fátima Oliveira – O SUS é de 1988… Pra você vê (risos), a luta feminista pela saúde integral está na estrada há muito tempo. Era Pré-SUS! Bem antes da 8ª. Conferência Nacional de Saúde, que aconteceu em março de 1986. Posso dizer como na música Frete, de Renato Teixeira: “Eu conheço cada palmo desse chão…/Quantas idas e vindas meu deus quantas voltas”, porque eu percorri “cada palmo desse chão” junto com muita gente para desbravá-lo…
Viomundo –Compararia a saúde integral da mulher ao o quê?
Fátima Oliveira – Há uma comparação genial, perfeita, da médica Ana Reis que diz que saúde integral é como o arroz com casca e tudo. Bem, quem nunca viu um pé de arroz e nem arroz com casca dificilmente entenderá… rsrsrsrsrs. Eu espero que todo mundo no Ministério da Saúde já tenha visto arroz com casca… A conversa ficará mais fácil.
Viomundo – A saúde integral contempla o quê?
Fátima Oliveira — O conceito de integralidade em saúde é um conceito que não é estanque. Evolui. Não é apenas atenção médica integral em todas as fases da vida, mas um conjunto de variáveis que asseguram bem-estar e cidadania, a partir da compreensão que é dever do Estado e da Sociedade a concretização da expectativa de vida das pessoas com qualidade.
Viomundo – Quando e como o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, o famoso PAISM, começou a ser construído?
Fátima Oliveira – Acredite! Em plena ditadura militar, o que nos mostra que é possível ter conquistas pontuais em conjunturas adversas.
Respondendo à convocatória de uma CPI do Senado sobre crescimento populacional, o ministro da Saúde da época, Waldir Arcoverde, que foi ministro de 1964 a 1985, assegurou que o ministério sob seu comando apresentaria uma proposta sobre saúde da mulher.
Foi assim que, em 21 de junho de 1983, quando foi depor, Waldir Arcoverde apresentou a proposta do PAISM. Sobre a sua “escrita” há pelo menos duas versões, que no momento não vem ao caso.
No artigo Paism: um marco na abordagem da saúde reprodutiva no Brasil, Maria José Martins Duarte Osis pontua:
…A proposta levada pelo ministro à CPI fora preparada por uma comissão especialmente convocada pelo Ministério da Saúde (MS) para a redação do Programa, em abril de 1983, e constituída por três médicos e uma socióloga: Ana Maria Costa, da equipe do MS e fortemente identificada com o movimento de mulheres; Maria da Graça Ohana, socióloga da Divisão Nacional de Saúde Materno-Infantil (DINSAMI); Anibal Faúndes e Osvaldo Grassioto, ginecologistas e professores do Departamento de Tocoginecologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), indicados pelo Dr. José Aristodemo Pinotti, chefe daquele departamento.
…A sua missão incluía a necessidade de apresentar um programa que se justificasse também filosoficamente perante a sociedade em geral, atendendo os anseios que estavam se evidenciando, e que fosse considerado tecnicamente correto, dispensando grandes reformulações. Tudo indicava que o ministério desejava que o programa causasse um impacto positivo e pudesse ter sua implantação iniciada imediatamente e de forma satisfatória.
…O Ministério da Saúde divulgou oficialmente o PAISM em 1984, através do documento preparado pela referida comissão: “Assistência Integral à Saúde da Mulher: bases de ação programática.
Viomundo — O que havia sobre saúde da mulher antes do PAISM?
Fátima Oliveira – Segundo a médica Ana Maria Costa, coordenadora da equipe técnica que elaborou o PAISM e sua ex-coordenadora, as propostas do Ministério da Saúde para a saúde da mulher, a partir de 1970 até à elaboração do PAISM, foram:
1) Programa de Saúde Materno-infantil (PSMI, 1975): orientação técnico-normativa-programática para as instituições executoras, as Secretarias Estaduais de Saúde, assim como o repasse de recursos financeiros específicos para a execução das ações propostas”. Consistia no acompanhamento pré-natal, controle dos partos domiciliares e o controle do puerpério, visando a população de 15 a 49 anos.
2) Proposta do Programa de Prevenção de Gravidez de Alto Risco (PPGAR): um Manual Normativo, que traduzia uma concepção efetiva de planejamento familiar, ainda que restrita aos ‘grupos de risco’. O Ministério cedeu às pressões de grupos de mulheres e profissionais de saúde e não implementou o PPGAR.
Viomundo — E o contexto de surgimento do PAISM?
Fátima Oliveira – É importante que fique explícito: embora a primeira versão do PAISM tenha sido aprimorada pelo feminismo, num processo dialogado, porém de lutas titânicas, o movimento feminista não o idealizou.
O PAISM não é uma construção do movimento feminista em si, mas uma resposta do governo, do ministro da Saúde daquela época, que definiu uma equipe técnica de alto nível, notório saber e ideias avançadas para elaborar um programa de saúde da mulher!
A rigor, o PAISM é uma ideia de perspectiva feminista, cuja origem é o debate sobre controle de fecundidade versus controle de natalidade.
O contexto político era o da ditadura militar de 1964, da consolidação da atuação de entidades privadas de planejamento familiar – tipo BEMFAM (Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar, 1965) e CPAIMC (Centro de Pesquisas de Assistência Integrada à Mulher e à Criança, 1974). Tinha forte apoio da cooperação internacional, no vazio do Estado no apoio às demandas por contracepção.
Na mesma época, adensava-se a luta pela redemocratização do país e cresciam as mobilizações feministas e de parlamentares pela implantação do aborto previsto em lei (estupro e risco de vida da gestante), a exemplo da aprovação da Lei Nº. 832/85 da então deputada Lúcia Arruda (PT-RJ).
Viomundo — Que momentos dessa trajetória destacaria?
Fátima Oliveira — Luta, luta, muita luta…
É uma história que precisa ser escrita. A muitas mãos, incorporando muitos olhares…
Mas eu destacaria, pós-publicação do documento-base do PAISM, a 8ª. Conferência Nacional de Saúde e a Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher, em Brasília, em 1986.
Ainda em 1986 a instalação, no Ministério da Saúde, da Comissão de Estudos sobre os Direitos Reprodutivos, composta por profissionais da saúde e feministas, sob a responsabilidade da médica Ana Regina Reis, que foi da maior importância para firmar o conceito de direitos reprodutivos no Brasil. Depois ela foi esvaziada, se não estou esquecida, no governo Collor.
Nos governos Collor e depois no de Itamar, o feminismo não mereceu nem pão e nem água. Itamar, sincero como de costume, sinalizou explicitamente que não queria papo: levou a doutora Zilda Arns (mais conhecida como Dona Zilda), inimiga histórica do feminismo até morrer, para ser coordenadora da Área Materno-Infantil do MS, onde estava alocado o PAISM. Sem chances de diálogo.
Em torno da defesa da concepção filosófica e política do PAISM foi criada, em 1991, a Rede Feminista de Saúde, da qual fui secretária-executiva de 2003-2006, cargo que Telia Negrão ocupa atualmente. A Rede evidenciou pra todas nós que os méritos e o poder de ganhar consciências, embutidos na ideia de assistência integral à saúde da mulher, são incomensuráveis.
Também em 1991 foi fundada a CCR (Comissão de Cidadania e Reprodução), da qual integro o Conselho Diretor. Até hoje são duas instituições de destaque na luta pela saúde da mulher, direitos sexuais e direitos reprodutivos no Brasil, ao lado de muitas outras organizações locais. Praticamente todos os grupos e organizações feministas brasileiros atuam no campo da saúde da mulher. Saúde da mulher é um tema muito caro ao feminismo brasileiro.
Em 1994, governo FHC, aconteceu a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD, Cairo 1994), da qual resultaram a Declaração e a Plataforma de Ação do Cairo. Ambas significaram para o feminismo mundial um símbolo de mudanças, alocando os direitos reprodutivos como parte integrante e indissociável dos direitos humanos, marco de uma nova era que relega as velhas políticas de população de teor antinatalista ou natalistas a um lugar secundário.
Viomundo — Fale mais sobre a Conferência do Cairo, de 1994, e suas repercussões no Brasil.
Fátima Oliveira — Cairo 1994 supera a visão hegemônica das Conferências anteriores de que a população era um estorvo e um entrave ao desenvolvimento.
Para o feminismo brasileiro foi uma vitória de alta relevância no embate político vigoroso com as ideias “controlistas”, dissociando dos interesses demográficos o desejo, a necessidade das mulheres por contracepção e a oferta dos insumos pelo Estado.
Aliás, muitas das propostas da Plataforma do Cairo já constavam das linhas de trabalho do PAISM, de 1984, portanto integravam a agenda política do feminismo brasileiro. Estávamos adiante do nosso tempo…
No pós-Cairo, surge o que chamo de “desejos de revisitar o PAISM”. Foi uma luta política das boas e pesadas…
Ativistas e intelectuais do movimento feminista começaram uma fase importante de proposições relativas à saúde da mulher no tocante aos direitos reprodutivos. Alguns setores acreditavam que cabia ao Brasil criar um Programa de Saúde Reprodutiva, outros argumentavam que isso seria um retrocesso diante da diretriz de atenção integral à saúde da mulher (PAISM), que contemplava as questões pertinentes à saúde reprodutiva, embora se reconhecesse que ela não estava sendo implementada.
Constatou-se, também, que o PAISM não era uma diretriz do SUS, embora fosse normatizado pelo Ministério da Saúde. O setor privado conveniado com o SUS não se interessava em implementar o PAISM, a não ser a atenção ao pré-natal e ao parto; em geral só atendia partos e cirurgias ginecológicas.
Mulheres negras passaram a reivindicar uma radicalização na compreensão de integralidade, incluindo questões concernentes ao recorte racial/étnico, enfatizando doenças cujas interfaces com a saúde reprodutiva da mulher negra já estão bem definidas, tais como diabetes tipo II, miomas, hipertensão arterial e anemia falciforme.
Críticas contundentes foram feitas também ao aparelho formador, sobretudo escolas de medicina e de enfermagem, diante da ausência de enfoques curriculares sobre a saúde da mulher, do desconhecimento (ou descaso?) de conceitos básicos como direitos sexuais e direitos reprodutivos e da incompreensão do conceito de integralidade, resultando no desnorteamento e distanciamento entre as práticas profissionais e as necessidades das mulheres, inclusive no tocante à questão ética.
Viomundo – O PAISM é implementado na íntegra?
Fátima Oliveira – Desde sempre, o PAISM é parcialmente implementado. Era o sonho que perseguíamos em cada Estado, em cada cidade.
Na gestão Serra como ministro da Saúde de FHC (1998-2002), a médica Tânia Lago coordenou a Área Técnica de Saúde da Mulher (ATMS). Embora com largo trânsito no feminismo brasileiro, ela recebeu só uma vez a Rede Feminista de Saúde (RFS). Eu estava presente. Da tal visita, resultou uma parceria da RFS com o MS. Elaboramos a cartilha Gravidez saudável e parto seguro são direitos da mulher, amplamente distribuída pelo MS.
Era uma relação cordial, porém tensa… Registramos como ganhos inegáveis na gestão de Tânia Lago três coisas :
1ª) A Área Técnica de Saúde da Mulher teve visibilidade e poder.
2ª) A elaboração da “Norma Técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Meninas” (1998), que assegurava o aborto previsto em lei nos casos de gravidez resultante de violência sexual, além do apoio financeiro à implantação de Serviços de Aborto Previsto em Lei.
3ª) A elaboração e publicação do manual técnico sobre “Gestação de Alto Risco” (1999), no qual estava contemplado o aborto em casos de risco de vida para a mulher, outra situação em que o aborto é permitido legalmente no Brasil.
Viomundo – Então a gestão de Tânia Lago foi importante para a saúde da mulher?
Fátima Oliveira — Usando da mais absoluta honestidade intelectual, tenho de admitir que foi uma gestão vitoriosa e inestimável, sob a perspectiva feminista, pois normatizou em âmbito nacional um direito previsto em lei desde 1940 (Código Penal), que só havia sido implantado em pouquíssimas cidades. São Paulo, na administração da prefeita Luiza Erundina (1989), foi a primeira do país. Na época, quem respondia pela Assessoria de Saúde da Mulher da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo era a médica Maria José de Oliveira Araújo, a Mazé.
Viomundo – Afinal, quando o PAISM deixou de ser uma carta de intenções e foi alçado à condição de política de governo?
Fátima Duarte – No governo Lula, em 2003. O ministro Humberto Costa, médico, hoje senador do PT por Pernambuco, levou para a Área Técnica de Saúde da Mulher a feminista e médica Maria José de Oliveira Araújo, a Mazé, como todas nós a chamamos, com uma história de vida de dedicação ao feminismo, à saúde da mulher…
Humberto Costa foi um ministro afinadíssimo com as causas feministas na área de saúde, com certeza o mais afinado que já tivemos. Em sua gestão, a Área Técnica de Saúde da Mulher foi muito prestigiada e empoderada, tanto no Ministério da Saúde quanto na sociedade.
Em 2003, a Área Técnica de Saúde da Mulher, em processo dialogado com o movimento feminista, de trabalhadoras rurais, mulheres negras, lésbicas e de portadoras de deficiências, elaborou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM). Uma tradução de linhas de ação, sob a perspectiva da integralidade, da visão filosófica e política preconizada pelo PAISM. Havia duas áreas de maior visibilidade: o Pacto Nacional pela Redução da Morte Materna e Neonatal e a Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos.
Viomundo – Lendo uma porção de documentos nas duas últimas semanas, tive a impressão que a área de saúde da mulher teve um grande salto na gestão do ministro Humberto Costa. É achismo meu ou fato? O que aconteceu de especial aí?
Fátima Oliveira — Ele era especial enquanto ministro, sobretudo pela sensibilidade para nossas questões. Nilcéa Freire, ministra da Mulher nos dois governos Lula, disse em um evento que era um luxo a gente ter um ministro da saúde feminista. E era!
A Área Técnica de Saúde da Mulher teve muita autonomia e poder. E a gente percebia que ele tinha compromisso e bancava politicamente aquilo tudo. Foi na gestão dele que foram elaborados documentos que transformaram um mito fundador, o PAISM [Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher], em política, o PNAISM [Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher], duas décadas depois.
Viomundo – Por exemplo.
Fátima Oliveira – Por exemplo:
1) Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (2003).
2) Pacto Nacional pela Redução da Morte Materna e Neonatal (2004).
3) Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento (2004).
Quando Humberto Costa saiu, assumiu o Ministério da Saúde o José Saraiva Felipe, médico e deputado federal mineiro (PMDB-MG), com uma história de participação nas lutas pela Reforma Sanitária e de construção do SUS.
Saraiva Felipe manteve Maria José de Oliveira Araújo, dando continuidade à implementação das políticas elaboradas na época de Humberto Costa. Mazé só saiu do Ministério da Saúde no início da gestão do ministro Temporão, que considero a pior gestão para a saúde da mulher no governo Lula. Embora não verbalizasse ideias conservadoras, não abriu brechas para a Área Técnica de Saúde da Mulher voar no campo já instalado. Não deu marcha-à-ré, mas não tirou o pé do freio.
Ou seja, embora tenha dado seguimento à maioria das ações referentes à saúde da mulher, Temporão não deu espaço para que a Área Técnica de Saúde da Mulher mantivesse o protagonismo dos tempos Humberto Costa e de Saraiva Felipe. Lamentavelmente.
Eu, que não me calo diante das derrotas, esperneio sempre, na época escrevi um artigo: Saudações a quem tem coragem! (O TEMPO, 29 de maio de 2007), que vou ler para você e acho interessante para que leitores do Viomundo nos conheçam um pouco melhor:
Mazé inscreveu um feito histórico inesquecível com a ousadia que só as pessoas visionárias, comprometidas com os direitos humanos, são detentoras, que foi transformar as ideias filosóficas e políticas do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), que hibernavam há quase duas décadas, na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher – um conjunto de ações enfocando os pontos nevrálgicos da desatenção, capazes de, se devidamente coordenadas e implementadas, mudar a face cruel do descaso da saúde pública em nosso país.
Mazé ousou, num cargo público, diminuir o fosso entre a vida e os direitos humanos em que vivem as brasileiras no campo da atenção à saúde, dando visibilidade como governo à taxa de mortalidade materna no Brasil é imoral e inaceitável porque 96% das mortes não deveriam ocorrer, pois há meios seguros de evitá-las e que as mulheres morrem quase à míngua por falta de cuidados adequados por parte de profissionais e serviços de saúde despreparados e negligentes.
Mazé enfrentou inimigos poderosos, mantendo coerência entre o discurso e a prática profissional e política, na busca de superar o que a Red de Salud de las Mujeres Latino-americanas y del Caribe (RSMLAC) destaca com absoluta propriedade em sua declaração: a “ausência de políticas públicas sensíveis à equidade de gênero em saúde, e em outros casos a obstaculização das mesmas por parte de setores fundamentalistas, em especial da Igreja Católica – que insiste em erigir-se como autoridade moral sobre a intimidade das pessoas, inclusive de quem professa outros credos ou nenhum. Tudo isso coloca em pauta a vigência do Estado laico como condição essencial para a democracia.
Para nós, as mulheres da luta real, a gestão de Mazé, alicerçada na filosofia e na moralidade feministas, deixa a marca da sua competência técnica e política. Obrigada!
Viomundo – Realmente, doutora, você é uma militante de quatro costados, já deve ter aguentado poucas e boas. Já foi processada ou ameaçada de processo devido à luta pelas causas feministas?
Fátima Oliveira – Perseguição política, declarada, já sofri. Até no feminismo, que não é um bloco monolítico; nele há diferentes facções. Os inimigos são incansáveis. Tanto de governos de direita quanto de esquerda. E posso dizer que os de esquerda perseguem com mais gana, sobretudo porque estão imbuídos da crença da verdade única e que eles, os partidos deles, detêm o monopólio do saber e da verdade, portanto eles, e só eles, sabem o que é bom e melhor pro povo! Parece maluquice, mas funciona em geral assim…
No momento, respondo a um processo de um ex-governador de Minas Gerais. Mas ser perseguida faz parte da luta contra o machismo, não é?
Viomundo – E já que estamos falando em luta política, vamos à Rede Cegonha. Seria uma tentativa de reinventar a roda?
Fátima Oliveira – Não é bem assim. Qual o grande foco da Rede Cegonha? Redução da mortalidade materna, que no Brasil ainda é alta. Pois bem, a parte de combate à mortalidade materna que está no programa Rede Cegonha é a que está no Pacto Nacional, de 2004. Não disseram, mas é! Foi uma apropriação do que já existia e estava indo relativamente bem…
A parte nova do Rede Cegonha é a de assistência social, por sinal, muito boa enquanto ação puramente de assistência social. Será bom para as mulheres, não tenho dúvida. Mas a concepção onde tais ações estão embutidas é equivocada.
Saúde materno-infantil, um conceito antigo, conservador e do agrado absoluto da Santa Sé! Sim do todo poderoso Vaticano, que se apresenta segundo as conveniências, ora como Estado, ora como religião! O Ministério da Saúde ao retomar o conceito de saúde materno-infantil adoça a boca do Vaticano!
Ai meus sais, e como adoça! Ontem, 14 de abril, o Vaticano jogou toda a sua força política na 44ª Reunião da Comissão de População e Desenvolvimento das Nações Unidas (Nova York, 11 a 15 de abril de 2011) para que a “linguagem do Cairo”, seja revisada e retroceda no sentido de que os direitos da “família” se sobreponham aos direitos das mulheres! Espero que diplomacia brasileira, que nos palcos da ONU nunca regateou sobre os direitos da mulher, segure a onda… Porque as notícias de ontem, vindas de Nova York evidenciam que o jogo é bruto.
Viomundo – Essa parte assistencial fez uma leitora do Viomundo, Leila Maria, se lembrar da Legião Brasileira de Assistência, a extinta LBA. A Rede Cegonha seria uma LBA com roupa nova?
Fátima Oliveira – Não! Na aparência, é do mesmo naipe, mas é diferente. Ambos trafegam no veio da assistência social. Todavia na extinta LBA, onde a primeira dama do país do momento fazia proselitismo político em nome da caridade, o sentido de suas ações era de esmola mesmo.
Na Rede Cegonha, eu vejo como direitos e não como uma concessão de “Mãe dos Pobres”. Não é o estilo da presidenta. Assim vejo. Mas causa confusão, sim.
Viomundo – Vários leitores disseram que o importante é ter o programa Rede Cegonha. Já você e Telia Negrão disseram que é reducionista. E, aí, doutora?
Fátima Oliveira – Por desconhecimento das políticas públicas de saúde e do conceito de atenção integral à saúde – e, aí, não há como não debitar na conta do ex-ministro Temporão — ou mesmo por má-fé, para dizer que no Governo Lula as mulheres não tiveram ganhos na área de saúde, muita gente está adotando uma postura distorcida, achando que o Rede Cegonha é um maná que caiu dos céus…
O que nós estamos dizendo é que, ao juntar num mesmo pacote, saúde da mulher com saúde da criança, há um retrocesso, um equívoco teórico, uma volta ao tempo em que se chamava “saúde materno-infantil”, uma visão em bloco de saúde da mãe e da criança, tudo no mesmo cesto.
Viomundo – Uma volta à visão materno-infantil das gestões Collor e Itamar?
Fátima Oliveira – Exatamente. E também de antes deles. Bem, sabemos que não é assim. Saúde da Mulher e Saúde da Criança são campos próprios, com suas especificidades, logo devem ser vistos separadamente. Tanto que, no Ministério da Saúde, há a Área Técnica de Saúde da Mulher, a Área Técnica de Saúde da Criança e Área Técnica de Saúde do Adolescente, cada uma com suas coordenações próprias. Cada uma, atuando em suas políticas específicas.
Separar a saúde da criança da saúde materna foi uma vitória política e conceitual imensa e profunda!
Viomundo — Num artigo publicado no ano passado você foi profeta ao falar de mulher-mala, esse conceito de mãe e bebê no mesmo pacote. O que te fez antever isso? Foi só o discurso de campanha? Ou havia alguma coisa mais acontecendo?
Fátima Oliveira — Não é profecia, é quilometragem na estrada. Desde que eu ouvi, pela primeira vez, a candidata Dilma Rousseff falando em Rede Cegonha, eu senti que o comando da campanha dela estava boiando na área. Logo, um possível retrocesso estaria em curso se ela ganhasse as eleições, como ganhou, sobretudo porque não havia na coordenação da campanha dela nenhuma feminista militante da saúde da mulher.
Aliás, eu nem sei se havia feminista alguma. As petistas feministas tiveram muitas dificuldades na aproximação com a candidata. Os homens não deixavam… Logo depois das eleições escrevi um artigo alertando que as disputas do governo Dilma estavam na mesa… Ou a gente, as feministas, chegaria cedo ou perderia muito.
Não chegamos. E perdemos. O Rede Cegonha reflete exatamente a disputa ideológica que não fizemos no seio do governo Dilma! Agora é chorar as pitangas.
Viomundo — Já ouvi várias ativistas dizerem que a Área Técnica de Saúde da Mulher foi sendo esvaziada ao longo da gestão do ex-ministro Temporão. Isso aconteceu realmente? Por quê?
Fátima Oliveira — O por que deve ter muitas respostas. Eu não sei todas. Nem as hipotéticas. E nem mesmo sei se as que ouvi falar são as reais.
Só o ex-ministro Temporão pode falar realmente os seus motivos de desprestigiar, ao esvaziar, a Área Técnica de Saúde da Mulher. Mas há de tudo um pouco, desde vaidade pessoal a disputa ideológica e por verbas. E, como sabemos, o Ministério da Saúde é um ministério bem forrado de recursos, embora digam que o dinheiro pra saúde é pouco. Não é pouco, pode não dar pra tudo o que precisamos na atenção à saúde, mas que a grana é muita, é!
Mas é muito estranho que o ministro Temporão tenha, no último minuto do segundo tempo, de sua gestão, via portaria nº 4.159, de 21 de dezembro de 2010, definido o Instituto Fernandes Figueira da Fiocruz, como Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, para atuar como órgão auxiliar do Ministério da Saúde no desenvolvimento, na coordenação e na avaliação das ações integradas para a saúde da mulher, da criança e do adolescente no Brasil. O teor é, no mínimo, ambíguo.
Ora, o Temporão, duma canetada JUNTA saúde da mulher, da criança e do adolescente numa cestinha só, sob coordenação única, ainda que seja auxiliar, sediada no Rio de Janeiro! Entendo que a Fiocruz é uma instituição do Ministério da Saúde, porém na prática, mesmo que a Área Técnica de Saúde da Mulher mantenha a sua coordenação no Ministério da Saúde, em Brasília, está formatada, sacramentada uma divisão de poder. Intuo que é uma complicação. Ou uma estratégia… Maquiavélica.
Se como ministro ele tinha a prerrogativa de realizar tal ato, eu não sei! Mas que fez, fez! A pergunta é por quê?
Mais estranho ainda é o ministro Padilha não ter revogado tal ato sem sentido.
Mas também não tenho dúvida de que a portaria de Temporão dá a legalidade necessária para que o Rede Cegonha possa ser uma ação única para a mulher e a criança! Juntou a fome com a vontade de comer e está instalado realmente um retrocesso teórico, ideológico. Mas como não viemos ao mundo a passeio, a gente chora as pitangas, mas vai à luta, claro, ao mesmo tempo.
Viomundo – Você acha possível o movimento feminista e o Ministério da Saúde negociar e chegarem a um acordo?
Fátima Oliveira – Negociação é possível e o MS vai negociar. Não é bem negociar. O MS precisa usar de pragmatismo e sensatez para admitir que houve problemas na montagem do Rede Cegonha, que o programa pode ser bem melhor, mais correto e enxuto, sem querer englobar ações de outras áreas que estão funcionando relativamente bem, embora precisem de reforço.
Ou seja, o ministro precisa avaliar, de cabeça fria e pés no chão, todas as questões que o movimento de mulheres e estudiosos da saúde da mulher estão elencando. Eu, particularmente, acho que a sensatez indica a manutenção do PNAISM com todas as suas ações, incluindo o Pacto Nacional pela Redução da Morte Materna e Neonatal, com seus nomes originais para evitar confusões desnecessárias.
E o Rede Cegonha seria uma ação social necessária e relevante para grávidas, parturientes e puérperas e seus filhos até dois anos, com interface com a saúde da mulher e a saúde da criança. Não apenas mais sensato, como coerente.
Viomundo — Há leitores que dizem as feministas deveriam deixar a presidenta trabalhar, que estariam enchendo a paciência dela, que essas feministas… O que você diria para eles?
Fátima Oliveira – Eu votei em Dilma nos dois turnos apenas e tão-somente porque acreditava que ela apresentava a melhor proposta para o Brasil, em todos os sentidos. Estou empenhada e desejo ardentemente que ela faça o melhor governo da história da República, em especial pelo simbolismo de ela ser a primeira presidenta do Brasil porque tal fato tem um significado especial na autoestima das meninas.
Mas sou uma cidadã consciente, uma livre-pensadora e tenho o dever moral, político e ético de apontar e refletir sobre o que eu considerar erros e dificuldades do governo. Jamais ficarei calada diante de fatos que entenda que são perdas para a cidadania. Além do que a crítica, fazer e receber, é parte da vida democrática, da construção da democracia, coisa que nem todo mundo aprecia na prática.
Leia aqui o que a doutora Fátima Oliveira escreveu sobre Dilma, a Rede Cegonha e os dilemas de Dona Lô.




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