Advogada do MST na mira de policial: “Frente a frente, ele depois falou: ‘Hoje, é dia de matar ou morrer'”

Tempo de leitura: 10 min

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 por Conceição Lemes

Manhã de sexta-feira retrasada, 4 de novembro de 2016, Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), Guararema, interior de São Paulo.

Subitamente, ao mesmo tempo, dez viaturas do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra), da Polícia Civil paulista, aparecem na frente da escola, que é símbolo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Os policiais não têm mandado judicial nem a identificação dos respectivos nomes no uniforme de combate.

Estudantes de 35 países – Estados Unidos, Canadá, Zimbabwe, Moçambique, Congo e Angola são alguns – estão na ENFF, em aula, quando os agentes, com fuzis, escopetas, metralhadoras e pistolas em punho, tomam o pátio.

A câmera de segurança da escola registra o início da invasão: 9h23m.

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“Os policiais estavam descontrolados, xingavam muito”, ressalta Alessandra da Silva Carvalho, advogada do MST, em entrevista exclusiva ao Viomundo.

Alessandra é a mulher para quem o policial aponta a arma.

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“Ele gritava ‘Sai da frente! Sai da frente!’”, conta.

A cena deplorável aconteceu logo após os policiais invadirem o pátio da Florestan Fernandes e darem voz de prisão a vários presentes.

Alessandra denuncia: “Depois, frente a frente comigo, o policial falou: ‘Hoje é dia de matar ou morrer, eu não estou aqui pra morrer’”.

A frase ameaçadora foi dita no final da operação, quando a advogada questiona-o: “Por que essa violência desnecessária?”

“Uma possível tragédia foi prenunciada antes”, prossegue. “Vídeo no portão do fundo mostra isso.”

O vídeo é este, abaixo. Aos 2min40s, o mesmo policial que apontou a arma para Alessandra comenta: “Acho que vocês vão perder. Alguém vai sair morto daqui. Pode ser nós, pode ser vocês”.


Terrorismo, para intimidar os militantes do MST? Ou falta de oportunidade para um ato extremo, já que o pessoal do MST não foi para o confronto, apesar da violência policial e de a grande mídia divulgar o contrário?

Alessandra acusa: “Os policiais agrediram com socos e pontapés os presentes, deram tiros [estilhaços feriram uma mulher no peito] e prenderam absurdamente dois militantes”.

O professor aposentado Ronaldo Valença, 64 anos, que trabalha como voluntário na biblioteca e sofre do Mal de Parkinson; ele teve uma costela fraturada.

E a cantora Guê Oliveira [nome de batismo Gladys], que naquele dia estava na Florestan Fernandes para uma apresentação.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), em nota à imprensa (na íntegra, ao final), incrimina o pessoal da escola:

Ao chegarem ao local, policiais do GARRA foram recebidos com violência. Cerca de duzentas pessoas que estavam presentes tentaram desarmar os agentes e quatro deles ficaram feridos.

Por “pessoas” subentenda-se: militantes e simpatizantes do movimento dos sem terra e da luta pela reforma agrária.

A imagem desta bala, intacta, recolhida pelo pessoal da escola após a invasão, foi divulgada pelo MST e nós reproduzimos.

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O leitor Yeshua logo esclarece:

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Aproveitando-se da foto, outros internatutas engrossam o coro da desqualificação das denúncias de abusos e ilegalidades praticados por policiais na ENFF.

Um deles, que se diz se chamar Guerra Nadir, vai além. Destila ódio, intolerância, fascismo.

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SSP NÃO RESPONDE AO VIOMUNDO: POR QUE CÁPSULA NÃO DEFLAGRADA FICOU NO CHÃO?

Diante do questionamento dos internautas e da divergência entre o que assistimos e soubemos e a versão da Polícia Civil, o Viomundo, por e-mail, perguntou à SSP-SP:

1. Por que os policiais entraram pela janela e foram logo atirando?

2. Em nota, a SSP diz que houve reação das pessoas lá estavam. Mas as imagens não mostram isso. Qual a explicação para essa divergência entre a nota e as imagens?

3. Quantos policiais integraram a operação?

4. Que armas os policiais usaram na operação?

5. Que arma é aquela que o policial deixou cair no chão antes de pular a janela da escola? Seria um fuzil?

6. Que tipo de munição foi utilizado?

7. Quantas cápsulas foram deflagradas?

8. Por que uma cápsula não deflagrada ficou no chão?

A assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo não respondeu as questões 1, 3, 4, 5, 6 , 7 e 8.

Sobre a discrepância entre a nota que distribuiu à imprensa no dia da invasão (na íntegra, ao final) e as imagens da câmera de segurança da escola (mostram a rua e os policiais pulando pela janela) e de celulares de pessoas do MST, a SSP-SP deu a seguinte explicação ao Viomundo (na íntegra, ao final; negrito é nosso):

A Polícia Civil esclarece que as imagens divulgadas mostram apenas o momento em que agentes foram socorrer colegas que estavam sendo agredidos dentro da escola. Cerca de duzentas pessoas que estavam presentes tentaram desarmar os agentes. Quatro policiais ficaram feridos. Durante a ação, duas pessoas foram encaminhadas à Delegacia de Guararema para registro de Termo Circunstanciado de Desobediência, Resistência e Desacato.

“De forma alguma, não foi isso o que aconteceu”, contesta veementemente a advogada Alessandra Carvalho.

Ela vai direto aos pontos cruciais da explicação da Secretaria de Segurança:

“Duzentas pessoas presentes tentando desarmar os agentes?! Cadê elas?!”

“Entre estudantes e professores, nós tínhamos cerca de 200 pessoas, sim, mas em sala de aula. Ninguém se deu conta do que acontecia lá fora”.

“No pátio, havia umas 25 pessoas, que foram chegando à medida que o tumulto foi crescendo. Nenhuma tentou desarmar os policiais! Com todo aquele armamento pesado seria suicídio”.

“Um policial, que teve escoriações no cotovelo, está dizendo que foi agredido por nós. Não é verdade. Ele sabe que se machucou sozinho, quando pulou o muro lateral da escola”.

Alessandra desafia:

“Por via das dúvidas, reveja os vídeos. Se não os viu, veja-os agora e responda: Quem está falando a verdade?”

Alessandra repassa os instantes em que ficou na mira do policial:

“O senhor Ronaldo já estava algemado, no chão.

“Os policiais foram para cima principalmente de quem estava filmando ou fotografando a ação deles, para tomar o celular”.

“Nem uma moça grávida escapou. De forma violenta, um policial tentou arrancar o aparelho da mão dela, ela não deixou”.

“Havia idosos e crianças no local. Bem ao lado fica a ciranda [“Ciranda Infantil Saci Pererê”, espaço de recreação para as crianças, cujo pai ou mãe está em curso]”.

mst idoso e criança

“Muita gente gritava, eu inclusive, pedindo “calma, calma!” 

“Foi, aí, que um policial, com a arma apontada na minha direção, passou a gritar: “Sai da frente! Sai da frente!”

“Eu estava muito próxima do senhor Ronaldo e da companheira de blusa vermelha [cantora Guê Oliveira, nome de batismo Gladys], que tentou socorrê-lo. Eu vi tudo!”

“Devido ao Mal de Parkinson, o senhor Ronaldo tem dificuldade para se locomover, anda devagar… No meio do tumulto, quando recebeu voz de prisão, ele tentou se apoiar no policial para não cair. O policial achou que estivesse reagindo, jogou o Ronaldo no chão, lhe deu pontapés, socos, quando ele já estava imobilizado, algemado, caído…”

“Foi nessa hora que os policiais começaram a atirar, para afastar quem tentava socorrer o Ronaldo”.

“A companheira de blusa vermelha ouviu o tiro, se desesperou. Como não tinha visto o Ronaldo algemado, foi na direção dele, achando que tivesse sido baleado. Um dos policiais agarrou-a, jogou no chão, gritando: “Você está me desacatando”. Veio outro e a algemou. Ela foi presa também”.

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“LOUCADEMIA DE POLÍCIA PAULISTA” PODERIA TER ACABADO EM TRAGÉGIA

Ronaldo Valença (com uma costela fraturada) e Guê Oliveira foram liberados no mesmo dia após serem ouvidos na Delegacia de Guararema.

Em seu depoimento (na íntegra, ao final), o aposentado Ronaldo [ele é o declarante] confirmou:

“Os tiros foram disparados pela Polícia, para impedir que os demais presentes se aproximassem em socorro ao declarante”.

Disse ainda:

“Que foram recolhidas pelo pessoal, cerca de seis cápsulas deflagradas próximas ao declarante, o que fez com as pessoas achassem que o declarante havia alvejado”.

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Alessandra faz um reparo no depoimento de Ronaldo: “Não foram seis tiros, mas três. Um para o alto, outros dois para o chão; estilhaços atingiram uma mulher no peito”.

Estas imagens são das munições recolhidas próximas a ele.

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Projétil é a parte que pode ser lançada. A bala, propriamente dita.

Projétil disparado é o que foi arremessado.

Cápsula, também chamada de estojo, é parte que contém o composto químico cuja combustão produz os gases que lançam o projétil.

Projétil não disparado é aquele que não foi lançado. Ele permanece ligado à cápsula, exatamente como na primeira foto que o MST divulgou.

Alessandra acrescenta:

“Quanto à bala não deflagrada, um policial derrubou algumas no chão. Não vi quando caíram. Vi apenas policiais procurando; um deles devolveu ao outro uma, dizendo que ele tinha deixado cair”.

“Você viu o vídeo da câmera de segurança da escola, mostrando que, na hora da invasão, um dos policiais deixou o fuzil cair no chão e outra pessoa da equipe, talvez um motorista, pegou?”

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Seria a própria “Loucademia de Polícia Paulista” não fosse o risco de que poderia ter terminado em tragédia.

O Garra é principalmente para enfrentar assaltantes de bancos.

Mas, como o grupo não vai atrás de ladrões comuns, seus agentes às vezes ficam sem o que fazer e prestam apoio a “operações especiais”.

Teoricamente, estão preparados para enfrentar situações difíceis, mas o que se viu na prática, no caso da Florestan Fernandes,  foram despreparo e truculência à moda Alexandre de Moraes, ministro da Justiça do usurpador Michel Temer e ex-secretário de Segurança Pública do governo Alckmin (PSDB-SP).

“O TEMPO INTEIRO OS POLICIAIS DIZIAM: ‘OU VOCÊS TRAZEM ELA OU VAMOS INVADIR’”

“Na verdade, foi violência desnecessária do começo ao fim”, lamenta Alessandra Carvalho.

A advogada acompanhou a operação, desde o momento os policiais chegaram na portaria, perguntando por Margareth Barbosa de Souza, contra quem, afirmaram, havia um mandado de prisão preventiva:

“O porteiro informou que não havia nenhuma pessoa com esse nome trabalhando lá nem fazendo curso”.

“Eles não se deram por satisfeitos e passaram a dizer que iriam invadir a escola”.

“O funcionário me chamou na portaria. Chamou também outros três advogados que estavam na casa”.

“Em tom arrogante, um dos policiais nos mostrou o mandado de prisão preventiva contra Margareth Barbosa de Souza, que estava numa imagem no WhatsApp”.

“ Nós solicitamos o mandado impresso então. Eles saíram. Pelo pouco tempo que demoraram suponho que devem ter ido em algum local próximo da escola. Eles imprimiram a imagem que estava no WhatsApp”.

“O documento não tinha nenhuma assinatura de juiz, daí eu ter sérias dúvidas de que o mandado de prisão preventiva tivesse validade. De qualquer forma, ninguém da escola conhece a Margareth, dissemos isso a eles”.

“Nessa hora, umas poucas pessoas — talvez umas 25 — foram se aglomerando perto da portaria, como mostram os vídeos, desmentindo a versão da Secretaria de Segurança Pública do “ataque” das 200 pessoas”.

“Os policiais estavam descontrolados, gritando, ameaçando invadir”…

“O tempo inteiro, nos diziam: “Ou vocês trazem ela ou nós vamos invadir”.

“Um funcionário que trabalha na portaria começou a filmar o que estava acontecendo. No ato, os que aguardavam os que tinham ido imprimir a mandado judicial, passaram a gritar ‘entrega’, ‘entrega’, o que levou outras pessoas a filmar também”.

“Como o funcionário se negou a entregar o celular, os policiais, num tom mais violento, ordenaram: ‘Me dá os seus documentos!’”

“O funcionário apresentou o crachá, com nome, foto e número de RG. O policial rechaçou: ‘Isso não é documento! Quero a RG’”.

“Outra pessoa próxima à guarita questionou a exigência da identidade. O policial foi para cima dela, exigindo igualmente o seu RG”.

“O senhor Ronaldo relata também isso no seu depoimento na Delegacia de Guararema.Inicialmente a pessoa se recusou a dar o RG, mas depois gesticulou no sentido de que iria buscar o documento dentro da escola”.
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“Foi nessa hora que um dos policiais pulou pela janela da portaria, indo na direção da pessoa a quem tinha pedido o RG”.

“Imediatamente, de arma em punho, outros o seguiram, invadindo o pátio da escola e querendo prender quem estava filmando ou fotografando”. 

“De forma violenta, um policial tentou tomar o celular de uma moça grávida, enquanto outro apontou a arma na minha direção, mandando eu sair da frente. Ação absurda, desproporcional, que poderia ter virado tragédia”.

Lamentavelmente, sinal de que o Estado de exceção chegou no guarda da esquina. É o ameganhamento do Estado.

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No dia seguinte à invasão, cerca de mil pessoas reuniram-se na Escola Nacional Florestan Fernandes. Foi um ato de solidariedade à ENFF e ao MST e repúdio à violência policial e à criminalização dos movimentos sociais. O ex-presidente Lula participou. O senhor abraçado por ele e ao lado do vereador eleito Eduardo Suplicy (PT-SP) é o aposentado Ronaldo Valença. O braço na tipoia é por conta das agressões sofridas na invasão da escola

Íntegra resposta da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) ao Viomundo:

A Polícia Civil de Mogi das Cruzes informa que recebeu solicitação de ajuda para cumprir um mandado de prisão da Polícia Civil do Paraná, que indicou o local como paradeiro de Margareth Barbosa de Souza. Ela é procurada pela prática de furto e dano qualificado, roubo, invasão de propriedade, incêndio criminoso, cárcere privado, lesão corporal, porte ilegal de arma de fogo e constrangimento ilegal. 

A Polícia Civil esclarece que as imagens divulgadas mostram apenas o momento em que agentes foram socorrer colegas que estavam sendo agredidos dentro da escola. Cerca de duzentas pessoas que estavam presentes tentaram desarmar os agentes. Quatro policiais ficaram feridos. Durante a ação, duas pessoas foram encaminhadas à Delegacia de Guararema para registro de Termo Circunstanciado de Desobediência, Resistência e Desacato.

Os fatos foram comunicados à Corregedoria para apurar se houve qualquer excesso por parte dos policiais.

Nota da SSP-SP distribuída à imprensa em 4/11/2016, no dia da invasão 

Nota da secretaria de segurança

Íntegra do depoimento do senhor Ronaldo Valença na Delegacia de Guararema (SP)

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