Florival Scheroki: Os subterrâneos da liberdade

Tempo de leitura: 2 min

por Florival Scheroki, psicólogo

“A cerimônia de posse de Dilma Rousseff foi emocionante. Eu, particularmente, acho muito simbólico ver uma ex-presa política sendo empossada presidente da República. Talvez pelo fato de que minha casa foi invadida algumas vezes, nos anos 60 e 70, por policiais sem mandado, para apreender “perigosos” livros (Jorge Amado, por exemplo)”.

[O autor se refere a frase que escrevi neste texto do Viomundo]

Suas palavras me recobram lembranças paralelas e talvez alguns sentimentos comuns. Principalmente pela sua alusão a Jorge Amado como literatura proibida, uma forma de expressão do pensamento interditada inclusive nas escolas. Olhando para trás, nas cenas que o retrovisor destas tuas palavras me mostram, vejo-me num final de manhã de aula no segundo grau, em uma escola pública em Rio Claro/SP, surpreso porque só a minha redação não havia sido entregue pela professora de português, senhora A.

Terminada a aula procurei por ela no pátio para saber o que tinha acontecido com minha redação. Ela me pediu para sentar-me e perguntou-me o que eu andava lendo. Não entendi nada. Como assim? Você está lendo algum livro? Quase sempre era um dos piores alunos de português nos anos escolares. É bem verdade que melhorei entre a graduação é o doutorado. Não sabia se era porque entrei no primário (fundamental –I) em 1964, clima difícil que autorizava o desnecessariamente mau por parte de alguns professores. Imagino que entenda do que falo. Mas voltemos ao Jorge Amado.

Como se não bastassem as reguadas na cabeça por pequenos erros de escrita em meados da década de 60, estava, novamente, de frente com a tortura sutil. Interessante que esta professora de português a que me refiro, do início da década de 70, havia nos indicado “Jubiabá” de Jorge Amado. Foi tão fascinante a viagem na leitura que fui em busca de outros livros, entre os quais os trilogia de “Subterrâneos da Liberdade”. E eu disse a ela que estava lendo Jorge Amado e quais livros.

Ainda sentados no banco de cimento, no pátio da escola, ouvi, aterrorizado, as palavras da professora A. “Sabia que eu poderia mandar te prender por isto!?!” – com minha redação em suas mãos.

Conto isto para confirmar que Jorge Amado e suas ideias eram perigosos mesmo, e que não apenas moradias físicas – como a tua – eram invadidas. Mentes – como a minha e de outros tantos – querendo se acostumar com a criação de textos pensados, falados e/ou escritos, necessários ao caminho da liberdade, eram vasculhadas por uma polícia ideológica ubiquitária, que em quase tudo via uma ameaça à “liberdade imposta”.

Nesta ocasião eu tinha 15 anos e a redação era sobre a percepção que os jovens tinham sobre o mundo de então. Optei por discorrer sobre como via a necessidade de mais liberdade e informação sobre comportamento sexual – âmbito moral. Como percebi, e parece que persiste, a intolerância – à humana sensação de desconforto que diferentes formas de expressão nos evocam – pode levar a ações de brutalidade aniquiladora, de pessoas e ideias políticas, religiosas, científicas e de outras manifestações culturais, em nome da liberdade que alguns rogam ser verdade e expressão única do bem comum.

Seu texto introdutório, assim como a posse de Dilma, me fizeram lembrar do jaleco branco da Professora A., nos subterrâneos de minha liberdade. Há muito não temo Jalecos brancos.


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Comentários

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maria

Parabéns Florival pelo texto pelas suas idéias, muito bom !
Tenho "orgulho" de ser sua amiga (distante..) e de ter sido sua colega de trabalho (CEF).
Uma dica : voce deveria por tudo isto num livro sua forma poética de escrever é muito linda, aproveite !
Recomendações a sua família, abraços !
Maria

    Florival Scheroki

    Obrigado. São tantas as coisas sobre as quais gosto e quero escrever que as palavras ficam brigando, umas com as outras, diante de de cenas maravilhosas. Gosto de escrever textos pequenos. Recém abri um Blog sobre comportamento e falta tempo para escrever. Quero privilegiar as formas de manifestação culturais que respeitam a vida e não mais do que 30 segundos da, ainda inexorável, "maldade" humana.

Messias

O que não se pode aceitar, é que nos dias de hoje em nossos quartéis ainda existam militares que insistem em defender a quartelada de 1964. A pregação ideológica defendendo aquele período como temos visto ( turma Emílio Garrastazu Médici) é inaceitável. Para dar cabo disto, somente realizando o justo julgamento dos participantes daquele período assim como fizeram Uruguai e a Argentina.

@LilianeMaturana

Que delícia o jeito que vc escreve, Florival…adorei o texto!

    Florival Scheroki

    Gostoso este sentimento que me acompanha com teu comentário!!!

Marcia Costa

Hoje, essa geração de almas e cabeças "lavadas" produzem filhos que matam professores e desrespeitam a presidenta.

Wilma

Era criança, mas pude acompanhar na década de 70, quando minha irmã entrou na Universidade Federal do Pará no curso de ciências sociais, o desespero de minha mãe, pedindo a ela que se mantivesse afastada de qualquer movimento contra a ditadura. Naquela época havia muitos agentes infiltrados na universidade vigiando os alunos. Ela foi a minha maior referência, infelizmente não está mais entre nós. Se viva estivesse, teria feito a maior festa para eleição da Dilma.

Fernando Dantas

… nos matagais perto de casa, eu mesmo nunca os vi, mas uma de nossas vizinhas teve o filho fuzilado por metralhadora. Eu era pequeno e estas coisas soavam bem distantes. Lembro dos refletores vindos do Quartel de Quitaúna vasculhando os céus e a presença de meu pai, não lembro a data nem o que acontecia. Quando me tornei adolescente participei de comunidades de base e comecei a me politizar, senti na pele as carteiradas de policiais fazendo bico de segurança, senti na pele ameaças de bofetadas. Gostaria de poder ler esta história como realmente aconteceu. Gostaria que pudessemos colocar um obelisco negro ao lado de cada placa de rua, rodovia ou praça com um nome de um ditador dizendo o que aconteceu quando ele foi governante para que todos os que olhassem aquele nome vissem o obelisco e soubessem que aquela pessoa colaborou com um regime que privou a liberdade da nação e permitiu o assassinato de seus opositores. Só isso. Abraço a todos.

Fernando Dantas

Florival, este texto também me lembrou meus momentos de infância, naquela época eu era criança e não entendia bem as coisas. Meu pai me falava que vivíamos em uma ditadura disfarçada, mas eu não entendia o que era ditadura, meu mundo era a rua e as brincadeiras de menino. Minha mãe me orientou a nunca expressar meus pontos de vista sobre política em público, pois poderis "desaparecer", eu ainda não entendia bem o que ela queria dizer. Meu pai foi um operário aposentado por invalidez e minha mãe uma costureira na periferia de Osasco. O Esquadrão da Morte passeava por lá e desovava cadáveres…

Marcos C. Campos

O paradoxo atual da nossa civilização reside no fato de que uma das instituição que mais deveria trabalhar, lutar e agir pela liberdade de opiniões e visões desta sociedade é a que atualmente mais está ficando "encabrestada" e auto-limitada … Falo da grande imprensa e da midia televisiva.
Logicamente isto não é por acaso. Quanto estes meios de comunicação não poderial fazer pelo avanço evolutivo da humanidade se não fossem tão mesquinhos seus controladores .

Antonia Vic

Sim, é uma história dura, sofrida. Desde meus tempos de secundarista, atual ensino médio, vi a repressão invadir a minha casa em busca de irmãos. Um deles, barbaramente torturado para dar conta de outra quanto esse outra já estava morto… Nas selvas do Araguaia. Nem do mesmo "partido" de esquerda eram e eles sabiam disso. Como esquecer?
Chorei quando a presidente Dilma beijou a bandeira brasileira. Assim como ela não tenho mágoas, não quero revanchismo. Só queria que resgatassem a memória e os corpos dos meus entes queridos. É pedir muito? Mas, como esquecer?
Sou uma pessoa razoavelmente realizada. Sou professora universitária, aprendi a silenciar as cicatrizes. Como eles, militei no movimento estudantil. E como foi bom… Foi outra escola da vida. Hoje, com toda a sabedoria diria a todos: não, não há como esquecer. Sem nenhum ressentimento.

    Florival

    Li seu comentário mais de umas 5 vezes. Quero dizer alguma coisa. Aos poucos vai se mostrando. Sou um homem sensível e que chora quando já está chorando. Mas, em geral me sinto cheio de um estado de emoçao em alguns momentos, como este da posse da Dilma. Chorei poucas vezes na vida adulta, não por ser duro, mas talvez pelos anos em que aprendi a conter lágrimas, como você aprendeu a se calar.

    Sou identificado com o lado fraco, torturado, perseguido, sofrido e morto e todas estas formas de calar que nos faz criar doidíces, dar volta em ansiedades; formas de continuar vivo, ainda que doentes de falta. Falta é falta do que e de quem tem valor para nós: uma pessoa amiga, um irmão, a justiça, a oportunidade, o amparo, algo que nos mantém em pé.

    É lindo ler que você não quer revanchismo. Não consigo viver sem sentir perdão e compreensão pela opressão que nos foi infligida. O perdão não é propriedade de deuses. É graça da condição humana, prefiro e sinto assim. Não ter mágoas é uma graça para poucos de nós. Revanchismo reproduz a brutalidade e nos desvia de nossa missão humana de manter a espécie viva e humanamente feliz.

    Entendo cada palavra tua, talvez até as que não estão explícitas. Sou psicólogo e não passei incólume às formas de opressão que se reproduziam de alto a baixo na sociedade escura. Entendo teu sentimento, não por ser psicólogo, mas sou psicólogo por ser capaz de entendê-lo em mim.

    Que bom que tenha escrito, amiga. Acho que tuas palavras dão sentido e vida aos teus queridos, tudo de que precisam para ter a memória resgatada. A palavra é mágica, mas não sai por si, apenas pede passagem quando nossos sentimentos e memórias abrem caminhos. Em mim, para mim, a palavra tem que rasgar caminhos e trazer junto a memória, com ou sem dor, para que minhas perdas revivam e morram de morte natural.

    Não me firmei como prof universitário, mesmo tendo me preparado, duramente para isto. Ainda procuro muitas coisas perdidas e como você, só quero o resgate de memórias, do que me roubaram. Gosto da lembrança daquilo que procuro ou pelo menos da sensação de falta, desde que tenha voz para dizer e ouvidos testemunhando a busca que não se confunde com sofrimento. Não posso dizer que sofro e talvez esta seja minha maior realização.

    Vitória, foram e são, ainda, tantos os espaços de exclusão. Mudaram de nome, te matam vivo sem precisar esconder o corpo. A luta maior, hoje, é para manter abertas as janelas de nossas almas. Se fechadas, são, de fato, mais difíceis de serem abertas do que as barras de ferro (acho que R. Laing escreveu algo assim em algum livro e ficou a idéia e a emoção).

    Eu queria ter chorado com você na posse de Dilma. Abraço e boas aulas.

Antonia Vic

Pensei tanto antes de escrever… Porque? Lembranças, doídas, muito mesmo. Mas, acho que cada um de nós que dê seu testamento é uma contribuição. E gosto tanto desse blog, que me senti motivada a falar. Falar, depois de anos de terapia para saber conter, calar, sei lá… Voto em Lula, fiz campanha para ele desde 89, chorei como muitos e muitas brasileiras na posse da Presidenta Dilma. Emocionei até aos soluços quando a vi prestar uma homenagem àqueles que tombaram e não puderam ver esse momento maravilhoso. Entre eles meu irmão e minha cunhada…

Gerson Carneiro

– O senhor é um moço inteligente. Até é difícil acreditar que o senhor seja mesmo um operário. Se o senhor abandonasse essas idéias ainda poderia vir a ser um homem útil ao país, quem sabe não poderia ainda…

O juiz ao inquirir o João, vulgo Aguinaldo Penha.
Isto em um romance escrito no início da última década de 50.
Parece que se referia a um outro operário que está há três dias em férias.
Isto é Jorge Amado.

Paulo Roberto

Não tem nada a ver com o texto, mas vale a pena ler:

"Daniele Ganser, professor de História Contemporânea, presidente da ASPO-Suiça e autor do livro “Exércitos Secretos da Otan”, revela, nesta entrevista à jornalista suíça Silvia Cattori, a existência, na Otan, de uma rede clandestina ligada ao terrorismo, (…)".
http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=9

Vera Silva

Tive a felicidade de ter uma professora A no ensino médio que me ensinou a não cutucar onça com vara curta, quando escrevi um artigo bravo, mas muito ingênuo no jornal mural da sala.
Aprendi a construir varas longas e a cutucar com mais esperteza.
Sábia professora A.

dukrai

Os Subterrâneos da Liberdade não resistiu ao crivo do cânone literário, mas era a emoção que despertava na dura repressão da ditadura, qualquer que fosse.

edv

O "temor ao jaleco branco" me recordou o cuidado que tínhamos que ter ao falarmos sobre política e até mesmo sobre outros assuntos mais "mundanos", quando um deles (jalecos "recheados") se aproximava de nós na escola.
Mas era assim também na praia… no boteco… andando na rua… Até mesmo em casa, baixávamos a voz sobre assuntos, digamos, mais "sensíveis", ainda que só entre amigos e parentes.
A garotada de hoje, ao contrário, já acha que pode incitar publicamente ao afogamento e assassinato.
Ainda assim, melhor o hoje, onde têm esta "liberdade", desde que se responsabilizem por ela…

Urbano

No meu caso, durante o ginásio, levei muita sorte, pois foi exatamente o momento em que me politizei; e basicamente através dos próprios professores, pelo menos em sua maioria, que além de serem excepcionais no ensino das matérias básicas, mas sempre naqueles dez, quinze minutos do final da aula, nos alertavam, dentre outras coisas da vida e sempre nas entrelinhas, do que se sucedia em nosso País. Inclusive, uns seis ou sete anos depois comecei a montar a minha biblioteca, sendo os primeiros livros uma coleção de Júlio Verne e, também nesse período, comprei nas bancas de revistas a coleção completa de Jorge Amado. Viciado, ao longo do tempo enchi cinco estantes de aço. Foi a minha salvação, pois em caso contrário, e como não possuo nenhuma largueza de inteligência, não teria fugido da mediocridade.

Marat

Caramba, Azenha… Você precisa criar um espaço aqui no Viomundo, um espaço Papo-cabeça. O texto do Florival foi sensacional (com o perdão do trocadilho pra lá de infame).
Esses textos são verdadeiros disparadores de catarses… D+

    Florival

    Que bom!!!

    Este Blog deu voz e imagem às minhas lembranças – às tuas também, pelo jeito – contrapondo-se à experiência que narrei. Não imagina a felicidade que me provocou ver meu testemunho público, neste espaço. No mínimo, catártico, como bem apontou você.

    Senti-me num momento reparador – que para reparar a dor, precisa de, antes, algo que restaure a dor. Foi isto que o texto do Azenha e a posse de Dilma me trouxeram.

    Reconfigurou o que – por felicidade – não se apaga; o que aguarda, na agonia de ásperos tempos e encontra luz (vida) no compartilhar solidário com tantos outros – como você – cada um à sua maneira.

    Talvez seja um pouco disto que as vítimas (mortos, torturados, amigos e familiares) do duro período do “jaleco” verde precisam. Penso que há vidas ocultas à espera de suas verdades – não de revanche – que as indenizações materiais, em si, se mostram insuficientes para reparar.

    Marat

    Caro Florival, creio, pelo seu texto que eu seja um pouco mais novo que você e o Azenha, mas eu me recordo, em minha infância, num colégio estadual de SP-Capital que, embora minhas professoras fossem competentes, elas estavam completamente nas mãos dos milicos. Nunca me esqueço de uma delas, Dona D., uma senhora negra, estupenda professora, carinhosa, alegre, dedicaca, sempre que falava: "Nosso presidente é um GENERAL" e carregava a patente dele em sua fala… todos pensávamos que era importante ser um general (tínhamos nove anos no início da década de 1970)… Certa vez, a odiosa diretora reuniu todos os alunos (nem lembro a data, mas creio que fosse um 31 de março). e ficou fazendo lavagem cerebral… num dado momento a megera perguntou: "E por que houve a 'REVOLUÇÃO de 1964", no que uma aluna prontamente respondeu: "Porque nosso país estava uma bagunça"… ah, meu caro, quanta torpeza na mente de crianças… mas o seu relato foi fantástico. Parabéns!!!

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