Vitor Araújo Filgueiras: Terceirização gera trabalho análogo à escravidão

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Terceirização, PL 4330 e o golpe cínico

Não há nenhuma coincidência no fato de que, em 2014, dos 10 maiores flagrantes de submissão de trabalhadores a condições análogas à de escravos no Brasil, apurados pelo Ministério do Trabalho, havia trabalhadores terceirizados em 8 casos, totalizando 384 trabalhadores

16/04/2015

Por Vitor Araújo Filgueiras*, no Brasil de Fato

Com toda a razão, muito tem sido escrito e falado acerca dos colossais estragos que o Projeto de Lei (PL) 4330, que libera a terceirização para todas as atividades de uma empresa, promoverá contra qualquer espécie de proposta civilizatória para a sociedade brasileira. Contudo, talvez o elemento mais grotesco desse PL aprovado na Câmara dos Deputados no dia 8 de abril, seja a incoerência gritante do discurso sobre terceirização dos empresários e dos seus representantes, em relação à lei que pretendem implementar.

Empresários e seus representantes construíram uma retórica sistematicamente repetida, durante as últimas décadas, de que as empresas precisam focar suas energias nas suas atividades principais, que eles mesmos chamam de atividades fim, e terceirizar para outras empresas as atividades menos importantes, secundárias, acessórias. Foi com esse discurso que as próprias empresas conseguiram que a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho fosse editada na década de 1990, liberando a terceirização das atividades meio (acessórias) dos empreendimentos. Esse discurso continua sendo repetido e é ele que justifica a terceirização: focar no essencial para terceirizar o secundário.

Todavia, o cerne do PL 4330 é liberar que as empresas terceirizem qualquer atividade, inclusive as atividades fim, o core business (ou qualquer que seja o termo atualmente preferido pelos empresários). Como defender a terceirização de qualquer atividade, se a própria terceirização é conceituada e justificada pela concentração das empresas em sua atividade fim? Existe uma contradição lógica no PL 4330.

As empresas definem a terceirização e a defendem para se focar nas suas atividades principais, mas querem terceirizar as suas atividades principais. Essa contradição revela o cinismo da estratégia patronal, pois, na verdade, a divisão de atividades entre empresas independentes nunca definiu, nem foi objetivo, da terceirização. A terceirização é método de acumulação do capital via precarização do trabalho (precarização demonstrada por vasta produção científica) e toda a retórica empresarial sobre essa forma de gestão do trabalho sempre foi empiricamente inconsistente. De modo trágico, esse PL 4330 contribui para que as pessoas se deem conta disso.

É presumível que as empresas adotem esse tipo de postura na defesa dos seus interesses, em especial com as características que predominam no empresariado brasileiro. Não surpreende que omitam fatos, dados, pesquisas, distorçam ou mesmo contradigam frontalmente a realidade empírica para afirmar que seus interesses particulares (no caso, a liberação da terceirização) representam interesses do conjunto da população.

A questão é: como nós, principais destinatários do cinismo, reagiremos?

Terceirização não é transferência de atividade entre empresas. A empresa contratante continua dirigindo o processo de produção e de trabalho, mesmo que use artifícios para disfarça-lo. Terceirizar é uma forma de contratar força de trabalho, que tem dentre seus principiais objetivos externalizar riscos (aos trabalhadores) e responsabilidades.

Neste caso sim, busca-se a transferência, na qual a pessoa física ou jurídica (que frequentemente é o próprio trabalhador escondido por alguma modalidade de “PJ”) serve como escudo à empresa contratante, que com sucesso tem sido alcançada, e vai piorar com a generalização da terceirização para os trabalhadores que ainda não tinham sido atingidos.

Não por acaso, o PL 4330 aprovado não contém requisitos humanitários mínimos, como a previsão de completa responsabilidade solidária pelos direitos trabalhistas entre empresas contratantes e contratadas, isonomia integral de direitos entre os trabalhadores, inclusive de normas coletivas mais favoráveis. Esses requisitos, que não foram adotados, seriam atenuantes para as consequências nefastas provocadas pela terceirização sobre as condições dos trabalhadores e sobre a própria vida de milhões de pessoas.

Também não há nenhuma coincidência no fato de que, em 2014, dos 10 maiores flagrantes de submissão de trabalhadores a condições análogas à de escravos no Brasil, apurados pelo Ministério do Trabalho, havia trabalhadores terceirizados em 8 casos, totalizando 384 trabalhadores contratados dessa forma. Em 7 desses flagrantes todos os trabalhadores eram terceirizados.

Nos últimos 5 anos (2010 a 2014), somados os 10 maiores flagrantes de trabalho análogo ao escravo detectados pelo Ministério do Trabalho em cada ano, 44 envolviam terceirizados. Ou seja, quase 90% desses 50 flagrantes. Nessas ações apurou-se que, dos 4183 trabalhadores submetidos a exploração criminosa, 3382 eram terceirizados, o que equivale a 81% do total de trabalhadores vitimados.

Do mesmo modo, não é obra do imponderável o fato de que as pesquisas apontam maior mortalidade entre os trabalhadores que não são diretamente contratados pelas empresas. Para ilustrar, o Setor da construção civil constante na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), analisado a partir das Divisões que o compõe, teve maior crescimento das mortes registradas, entre 2006 e 2012, justamente na Divisão mais propensa à terceirização. Enquanto, nesse período, a Divisão Construção de Edifícios teve incremento de 17,4% nos acidentes fatais e a Divisão Obras de Infraestrutura 39,1%, a Divisão de Serviços Especializados para Construção, que é um segmento do CNAE tipicamente terceirizado, teve crescimento de óbitos de 166,6%.

Nenhum desses dados é contingencial porque terceirização potencializa o despotismo patronal, seja tornando os trabalhadores individualmente ainda mais vulneráveis, seja dificultando a imposição de limites aos ditames empresariais por ações coletivas ou por meio das instituições de regulação do direito do trabalho.

O PL 4330, ao permitir a terceirização de todas as atividades de uma empresa, deixa explícito que terceirização não é divisão do trabalho. Até o momento, entretanto, confundir terceirização e divisão social do trabalho no capitalismo tem sido o grande golpe que as forças empresariais conseguiram tornar sendo comum.

O PL procura legalizar e legitimar a exploração de parcela relevante da população que já é terceirizada (talvez 25% do mercado de trabalho). Não fosse suficiente, poderá ampliar esse quadro para o restante da população empregada.

Mas ainda há tempo para resistir.

Em 2001, o PL 5483 (conhecido como projeto do “negociado sobre o legislado”), também amplamente desastroso para a classe trabalhadora, pois permitiria que negociações reduzissem as garantias mínimas previstas nas normas de proteção ao trabalho, foi aprovado na Câmara dos Deputados.

Porém, nunca teve seu trâmite legislativo finalizado por conta das reações contrárias.

Em 2007, após ser aprovada na Câmara e no Senado no bojo da Lei da Super Receita, a Chamada Emenda 3, que proibiria que Auditores Fiscais multassem empresas flagradas mantendo vínculos de emprego disfarçados, foi vetada pela Presidência.

Um importante movimento de resistência coletiva contra o PL 4330 já existe há alguns anos, capitaneado pelas diversas entidades que compõem um Fórum nacional sobre o tema. Essa luta coletiva precisa ser fortalecida.

Contudo, sem prejuízo da ação coletiva, pequenos engajamentos individuais difusos podem produzir um grande resultado coletivo contra esse golpe que está sendo aplicado sobre aqueles que vivem do trabalho no Brasil. São muitas as formas que qualquer um pode contribuir. Apenas para citar um simplório e indolor exemplo, a lista dos e-mails de Deputados e Senadores consta nos sites do Congresso, e os fatos têm demonstrado que o acúmulo de mensagens não passa despercebido.

Depois de tantas desagradáveis surpresas (ou não surpresas), o veto da presidente Dilma Rousseff ao PL 4330, caso o Senado também o aprove, é o mínimo que ela pode fazer para iniciar uma sinalização de coerência com o norte da sua campanha eleitoral. Se o Congresso vai ou não derrubar seu veto, não cabe ao Executivo usar como subterfúgio. Primeiro, porque tendo o Congresso pautado esse PL retrógrado, cabe a ele assumir as consequências políticas dessa opção. Segundo, e mais importante, não foi o Congresso que elegeu a Presidente da República.

*Vitor Araújo Filgueiras é pesquisador do CESIT (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho) e pós-doutorando em Economia na UNICAMP. Auditor Fiscal do Trabalho. Integrante do grupo de pesquisa “Indicadores de Regulação do Emprego no Brasil”

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Comentários

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Francisco Fraga

Conversando sobre terceirização no setor de concessões.

Uma das perguntas que temos feito e não encontramos resposta em nenhum artigo, seja a favor ou contra a terceirização das atividades fins ocorre nos serviços públicos da prestação de serviço, no nosso caso a distribuição da energia elétrica, onde para nós, já ocorre uma terceirização. Isto é, é um serviço essencial que o governo federal, repassa a um terceiro para a execução do mesmo.
Sem saber, ainda, o que vai ocorre com a aprovação de todas as atividades fins, de certa maneira a principal atividade fim dessas concessionárias já está sendo terceirizada, a qualidade do serviço prestado a população a cada ano que passa está em queda, pertinente são as perguntas:
1 – De quem será a responsabilidade pela prestação desse serviço essencial?
2 – Poderá a detentora da concessão, terceirizar para diversas empresas, de forma parcial, cada uma dessas atividades, por exemplo, a manutenção, a operação, a emergência, a construção e etc.? Como será a fiscalização? Terá fiscalização?
Afinal de contas isso foi avaliado?

FrancoAtirador

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“Os trabalhadores ainda não entenderam a gravidade da situação,
se entendessem, as mobilizações de rua seriam maiores”
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Patrícia Almeida Ramos
Juíza do Trabalho
Presidente da AMATRA-SP
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Juíza do Trabalho afirma que terceirização cria “carcaças de empresas”
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A presidente da Associação dos Magistrados de Justiça do Trabalho de São Paulo (AMATRA-SP),
Patrícia Almeida Ramos, afirma que o projeto de lei 4330/04, que autoriza a terceirização de funcionários
em qualquer atividade de uma empresa, simboliza um “retrocesso muito grande
em toda a discussão sobre direitos trabalhistas das últimas décadas”.
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A Juíza discorda que terceirização ilimitada reduza o desemprego e traga segurança jurídica.
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Ela avalia que a terceirização cria “carcaças de empresas”,
que acabam com um referencial claro sobre quem é responsável pelos funcionários,
o que “interessa apenas aos empresários”.
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“A Anamatra e as Amatras têm se manifestado publicamente contra o PL 4330.
Temos feito cartas abertas à sociedade e reuniões com deputados para disputar a opinião pública.
Acho que os trabalhadores ainda não entenderam a gravidade da situação,
se entendessem, as mobilizações de rua seriam maiores”, afirma ela.
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Patrícia Ramos diz que é “muito comum” que as terceirizadas não paguem os encargos
devidos aos trabalhadores, não recolham fundo de garantia e atrasem salários.
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“Nós não queremos criar subterfúgios, criar um problema e daí vir com um remendo de solução,
nós queremos manter um direito historicamente constituído.
Não tenho dúvidas de que a aprovação do PL 4330 aumentará o índice de desemprego,
pois os empregados terceirizados terão de aumentar sua carga de trabalho
para receber um salário significativo, o que reduzirá o número de vagas no mercado de trabalho.
E os empregos oferecidos terão condições precárias.
O empregado continuará com as mesmas obrigações;
em contrapartida, seus direitos serão reduzidos”, diz.
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(http://www.vermelho.org.br/noticia/262612-1)
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50 milhões de brasileiros e brasileiras que têm carteira assinada
serão as principais vítimas do desmonte das garantias trabalhistas
implícito no Projeto de Terceirização Indiscriminada 4330/2004.
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O PL 4330 volta à pauta da Câmara nesta 4ª feira ou na 5ª feira
pelas mãos dos aliados patronais Aécio Neves e Eduardo Cunha.
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(Hora a Hora – Carta Maior)
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FrancoAtirador

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Se os trabalhadores não forem imediatamente à Brasília
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para fazer uma vigília permanente no Congresso Nacional,
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pode ser que no 1º de Maio não haja mais nada a fazer.
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