Leandro Fortes: Jornalismo para quem precisa

Tempo de leitura: 6 min

por Leandro Fortes, no Brasília, eu vi

Há alguns dias, lancei na minha página do Facebook uma idéia que venho acalentando há tempos, desde que encerrei um curso de extensão para uma faculdade privada de jornalismo, aqui em Brasília. O curso, de Técnica Geral de Jornalismo, reuniu pouco mais de 10 alunos, basicamente, porque era muito caro.

Embora tenha sido uma turma de bons estudantes, gente verdadeiramente animada e interessada no ofício, me senti desconectado da real intenção do curso, que era de fazer um contraponto de método, opinião e visão ideológica a esse jornalismo que aí vemos, montado em teses absurdas, em matérias incompletas e mentirosas, omissas em tudo e contra todos, a serviço de um pensamento conservador, reacionário e golpista disseminado, para infelicidade geral, como coisa normal. Não é. E é sobre isso que eu queria falar enquanto ensinava, dia a após dias, os fundamentos práticos da pauta, da entrevista, da redação jornalística, da nobre função do jornalista na sociedade, no Brasil, na História.

Perguntei, então, no Facebook, o que estudantes de jornalismos e jornalistas formados achariam de eu transferir essas aulas para um espaço barato e democrático, capaz de levar esses conhecimentos a muito mais gente, sobretudo ao estudante pobre – e, quem sabe, credenciar também os pobres a brigar por uma vaga nas redações, que se tornaram ambientes muito elitistas. Encaretadas por manuais de doutrina e comportamento, adestradas pela conduta neoliberal dos anos 1990, quando passaram a responder diretamente pelas demandas do Departamento Comercial, as redações brasileiras se desprenderam da ação política, dos movimentos sociais, do protagonismo histórico a favor dos direitos humanos e da luta contra a desigualdade. Passaram, sim, a reproduzir um universo medíocre de classe média, supostamente a favor de uma modernidade pós-muro de Berlim, onde bradar contra privatizações e a adoração ao deus mercado passou a ser encarado como esquerdismo imperdoável e anacrônico.

Não por outra razão, os movimentos corporativos a favor da manutenção da obrigatoriedade do diploma de jornalista, que resistiram a todo tipo de investida patronal ao longo de duas décadas, foram definitivamente golpeados com o apoio e, em parte, a omissão, da maioria dos jovens profissionais de imprensa, notadamente os bem colocados em redações da chamada grande mídia. Vale lembrar que o jornalismo é, provavelmente, a única profissão do mundo onde existem profissionais que pedem o fim do próprio diploma. Há muitas nuances, claro, nessa discussão, inclusive porque há gente muito boa que, historicamente, se coloca contra o diploma, sobretudo velhos jornalistas criados em velhas e românticas redações, cenas de um mundo que, infelizmente, não existe mais.

Na essência, o fim da obrigatoriedade do diploma não é uma demanda de jornalistas, mas de patrões, baseada num argumento falacioso de liberdade de expressão – na verdade, de opinião –, quando a verdadeira discussão está, justamente, na formação acadêmica dos repórteres. E há uma distância abissal entre opinião e reportagem, porque a primeira qualquer um tem, enquanto a segunda não é só fruto de talento, mas de aprendizado, técnica e repetição.

Nas grandes empresas, o fim da obrigatoriedade do diploma coroou uma estratégia que tem matado o jornalismo: a proliferação de cursinhos internos de treinees, tanto para estudantes como para recém-formados, cuja base de orientação profissional é a competitividade a qualquer custo, um conceito puramente empresarial copiado, sem aparas, do decadente yupismo americano. Digo que tem matado porque esses cursinhos de monstrinhos competitivos relegam o papel universal do jornalista ao segundo plano, quando não a plano algum. A idéia de que o jornalista deva ser um profissional solidário, inserido na sociedade para lhe decifrar os dramas e transmiti-los a outros seres humanos passou a ser um devaneio, um delírio socialista a ser combatido como a um inimigo. Para justificar essa sanha, reforça-se o mito da isenção e da imparcialidade de uma mídia paradoxalmente comprometida com tudo, menos com a sua essência informativa, originalmente baseada no universalismo e no compromisso com o cidadão.

Na outra ponta, o fim da obrigatoriedade do diploma abriu a porteira para jagunços e capangas ocuparem as redações da imprensa regional, longe da fiscalização da lei e dos sindicatos, alegremente autorizados a fazer, literalmente, qualquer coisa com qualquer pessoa. Mesmo para o novo modelo de jornalismo que se anuncia na internet, baseado em disseminação mútua de informações primárias, como no caso dos vazamentos do Wikileaks, haverá sempre a necessidade do tratamento jornalístico dos conteúdos. E, para esse serviço, não há outro trabalhador credenciado senão um bom repórter treinado e formado para essa missão. Formação esta que, insisto, deve ser feita na academia e reforçada na experiência diária da reportagem.

Recentemente, li sobre a criação, em 2010, do Instituto de Altos Estudos em Jornalismo, sob os auspícios da Editora Abril. Entre os mestres do tal centro estavam o dono da editora, Roberto Civita, mantenedor da Veja, e Carlos Alberto Di Franco, do Master de Jornalismo, uma espécie de Escola das Américas da mídia nacional voltada para a formação de “líderes” dentro das redações. Di Franco, além de tudo, é um dos expoentes, no Brasil, da ultradireitista seita católica Opus Dei, a face mais medieval e conservadora da Igreja Católica no mundo.

Sinceramente, não vejo que “altos estudos”, muito menos de jornalismo, podem sair de um lugar assim.

Não tenho dúvidas de que a representação do tal instituto não é acadêmica, embora seja dirigido por Eugênio Bucci, ex-presidente da Radiobrás no governo do PT, renomado estudioso da imprensa no Brasil. Trata-se de uma representação fundamentalmente ideológica, a reforçar as mesmíssimas estruturas de poder das redações, estruturas ultraverticalizadas, essencialmente antidemocráticas e personalistas, onde a possibilidade de ascensão funcional, sobretudo a cargos de chefia, está diretamente ligada à capacidade de ser subserviente aos patrões e bestas-feras com os subordinados.

Felizmente, o surgimento da internet deu vazão a outro ambiente midiático, regido por outras regras e demandas, um devastador contraponto ao funcionamento hermético das grandes redações e ao poder hegemônico da velha mídia brasileira, inclusive de seus filhotes replicadores e retransmissores Brasil adentro. O fenômeno dos blogs e sua capacidade de mobilização informativa é só a parte mais visível de um processo de reordenamento da comunicação social no mundo. As redes sociais fragmentaram a disseminação de notícias, fatos, dados estatísticos, informes e informações em um nível adoravelmente incontrolável, criando um ambiente noticioso ainda a ser desbravado por novas gerações de repórteres que, para tal, precisam ser treinados e apresentados a novas técnicas e, sobretudo, a novas idéias.

A “era do aquário”, para ficar numa definição feliz do jornalista Franklin Martins – aliás, contrário à obrigatoriedade do diploma –, está prestes a terminar. O jornalismo decidido por cúpulas restritas, com pouco ou nenhum apego à verdade dos fatos, está reduzida a um universo patético de mau jornalismo desmascarado instantaneamente pela blogosfera, vide a versão rocambolesca da TV Globo sobre a bolinha de papel na cabeça de José Serra ou a farsa do grampo sem áudio que uniu, numa mesma trama bisonha, a revista Veja, o ministro Gilmar Mendes, do STF, e o senador Demóstenes Torres, do DEM de Goiás.

Não será a escola de “altos estudos” da Veja e do professor Di Franco, portanto, a suprir essa necessidade. Essa demanda terá que ser suprida por repórteres ciosos de outro tipo de jornalismo, mais aberto e solidário, comprometido com a verdade factual e a honestidade intelectual, interessado em boas histórias. Um jornalismo mais leve e mais humano, mais preocupado com a qualidade da informação do que com a vaidade do furo. Um jornalismo vinculado à realidade, não a interesses econômicos. E isso, certamente, só poderá ser viabilizado dentro de outro modelo, cooperativo e democrático, a ser exercido a partir das novas mídias virtuais.

Por isso, é preciso estabelecer também um contraponto à ideologia da mídia hegemônica no campo da formação, em complemento aos cursos superiores de jornalismo. Abrir espaço para os milhares de estudantes de comunicação, em todo o Brasil, que não têm chance de participar dos cursinhos de treinees dos jornalões e das grandes emissoras de radiodifusão. Dar a eles, de forma prática e barata, uma oportunidade de aprender jornalismo com bons repórteres, com repórteres de verdade.

Foi nisso que pensei quando idealizei, em 2007, a Escola Livre de Jornalismo, junto com outros dois amigos, ambos ótimos jornalistas, Olímpio Cruz Neto e Gustavo Krieger. Com eles, ajudei a montar bem sucedidos ciclos de palestras e oficinas de jornalismo em Brasília. Em 2009, um ano antes do 1º Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas, em São Paulo, a Escola Livre, em parceria com o IESB, já havia conseguido reunir, na capital federal, os principais expoentes desse movimento no país: Luis Nassif (Blog do Nassif), Paulo Henrique Amorim (Conversa Afiada), Rodrigo Vianna (Escrevinhador), Marco Weissheimer (RS Urgente) e Luiz Carlos Azenha (Viomundo).

Uma semana de debates ricos, bem humorados, em um auditório permanentemente lotado de estudantes de jornalismo e jornalistas profissionais. Foi nosso único evento gratuito e, claro, o de maior sucesso. Os ciclos e oficinas, embora tenham tido boa audiência, esbarravam sempre no problema do custo para os estudantes: como nos cursinhos de treinee da velha mídia, acabávamos por privilegiar um segmento de jovens já socialmente privilegiados. É dessa frustração e dessa armadilha que proponho fugir agora.

Por isso, expus no Facebook a idéia de ministrar minhas aulas de Técnica Geral de Jornalismo, divididas em módulos, de modo que cada estudante pague um valor baixo por cada aula. Ou seja, os estudantes vão às aulas que quiserem, pagam na entrada e participam de duas horas de aula de jornalismo sobre tópicos práticos e temas relevantes. Minha idéia é convocar outros repórteres de Brasília a participar desse movimento da Escola Livre de Jornalismo, com o compromisso de, em troca da aula de duas horas, receber 70% do valor arrecadado no dia, porque 30% serão sempre destinados à administração e organização do curso.

Além do valor da aula, ainda a ser estipulado, cada aluno deverá também levar um alimento não perecível qualquer, a ser distribuído para comunidades pobres do Distrito Federal ou instituições de assistência social a serem definidas com futuros parceiros. Esses mantimentos, inclusive, poderão ser usados como moeda de troca para podermos utilizar gratuitamente algum espaço físico em Brasília para ministrar as aulas. É algo ainda a ser definido.

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Comentários

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Messias Macedo

Prezado, ínclito, competente e impávido jornalista Leandro Fortes, não sou jornalista, além de um simples matuto! No entanto, o seu texto lapidar representa uma aula daquilo que imagino significar o verdadeiro jornalismo…
A sua leitura e percepção transcendem o senso comum da sua categoria profissional – e daqueles outros que costumam dar pitacos sobre aquilo que desconhecem!

Parabéns! Felicidades!

Brasil Nação
Bahia, Feira de Santana
Messias Franca de Macedo

Messias Macedo

Jânio: grampo falso aponta para Gilmar Mendes
Enviado por luisnassif, ter, 28/12/2010 – 10:50
Folha de S.Paulo – Janio de Freitas: Em tempo – 28/12/2010
JANIO DE FREITAS
#############

A farsa do grampo sem áudio: um crime impune
Enviado por luisnassif, sab, 25/12/2010 – 11:05
Por comentador
(…)

A farsa do grampo sem áudio entrará para a história política brasileira como um dos momentos mais vergonhosos. Não apenas pela farsa em si, mas por ter sido endossada pior toda a velha mídia, avalizada pelo presidente da Suprema Corte, com o objetivo de criar obstáculos a uma investigação que, em que pese diversos erros, tinha chegado ao cerne do crime organizado. É farsa da mesma natureza do Plano Cohen,das Cartas de Arthur Bernardes.
(…)

Que país é este, siô?! O matuto ‘bananiense’ responde, “na lixeira”(!): República Destes Bananas

Bahia, Feira de Santana
Messias Franca de Macedo

Messias Macedo

Jânio: grampo falso aponta para Gilmar Mendes
Enviado por luisnassif, ter, 28/12/2010 – 10:50
Folha de S.Paulo – Janio de Freitas: Em tempo – 28/12/2010
JANIO DE FREITAS
#############

A farsa do grampo sem áudio: um crime impune
Enviado por luisnassif, sab, 25/12/2010 – 11:05
Por comentador
(…)

A farsa do grampo sem áudio entrará para a história política brasileira como um dos momentos mais vergonhosos. Não apenas pela farsa em si, mas por ter sido endossada pior toda a velha mídia, avalizada pelo presidente da Suprema Corte, com o objetivo de criar obstáculos a uma investigação que, em que pese diversos erros, tinha chegado ao cerne do crime organizado. É farsa da mesma natureza do Plano Cohen,das Cartas de Arthur Bernardes.
(…)

Que país é este, siô?! O matuto ‘bananiense' responde, “na lixeira”(!): República Destes Bananas

Bahia, Feira de Santana
Messias Franca de Macedo

Wilma

Excelente iniciativa do Leandro Fortes!! É por ai mesmo, fazendo o trabalho de formiguinha, e logo, logo, teremos bons frutos….

Daniel Faria

Pra quem quer ser jornalista, como eu, só esse texto já vale mais que qualquer curso da editora Abril. Parabéns ao Leandro Fortes, não só pelo texto, mas por todo seu trabalho no blog e na Carta Capital.

Rios

Lula tem 6,5 bilhões!!!

Tem muito tucano se matando de inveja!!!
http://pastorador.blogspot.com/2010/12/lula-tem-6

Thelma Oliveira

Só através da educação qualificada é que se poderá levar o Brasil a outro patamar, ainda a ser alcançado com muito trabalho por parte de todos. Por isso, parabéns ao Leandro e a vocês por divulgarem esse raio X da situação da mídia brasileira.
Um grande abraço e um ótimo 2011 para todos. E olho aberto, hein!

Paulo Cezar Soares

O texto aborda os principais problemas do nosso jornalismo atual. Recentemente tive oportunidade de ler um livro ( trabalho de mestrado de um antopólogo da Universidade Federal Fluminense que virou livro), onde ele analisa, tendo como base um jornal carioca de grande circulação, como a imprensa seleciona e edita as notícias sobre a violência urbana.
O autor, sem citar nomes, faz pequenas entrevistas com repórteres e editores do jornal. Em uma dessas entrevistas um profissional revela que o jornal adotou uma "nova" nomenclatura para a reportagem policial, que passou a ser – reportagem de segurança pública. Ninguém faz mais reportagem policial. Agora os repórteres fazem reportagens sobre segurança pública. Lamentável.
O fato deixa à mostra o preconceito ainda existente em relação à reportagem de polícia, e o uso de determinados termos com capa de modernidade.
Lamento não morar em Brasília, pois certamente iria me increver em um dos seus cursos. Sempre há o que aprender com jornalistas da sua estirpe.
Feliz 2011

Hans Bintje

Conceição Lemes, por favor, repasse esse comentário para o Leandro Fortes. Qual será a reação do sujeito?

Se eu fosse levar para vocês a cerveja que eu produzo em casa, acho que daria para fechar uma turma completa do curso de jornalismo. O único problema é que ela seria consumida pelos professores e alunos durante o evento e jamais chegaria às instituições de assistência social (risos).

Por esse motivo, eu proponho um acordo mais amplo, nos termos do jornalista Marcio Alemão, da revista Carta Capital ( http://www.cartacapital.com.br/cultura/o-futuro-l… ):

"A 55 quilômetros de Belo Horizonte, a familiar Mercearia Paraopeba faz escambo e garante a produção da roça. (…)

A certa altura vemos Roninho [da Mercearia] fatiar uma goiabada cascão. Vem de São Bartolomeu. Uma família faz e eles fornecem o açúcar. Eles escolheram essa família. Você vai concordar comigo ao assistir ao vídeo [ http://www.youtube.com/watch?v=aUiWgtIGJwU ]: que espetáculo de peça essa goiabada. Única. Raro de ser ver daquele jeito."

Que tal agricultores familiares, assentados da reforma agrária, fornecerem matérias-primas de qualidade para que eu possa fazer a cerveja para vocês?

Meu papel seria semelhante ao do Roninho [da Mercearia], um sujeito que aparece quase nada mas que destaca quem realmente merece divulgação, toneladas de matérias jornalísticas, esse povão que trabalha de sol a sol e produz direto o "espetáculo de peça".

É uma troca justa: os jornalistas – professores e alunos – escrevem sobre o que o povão faz com qualidade e o povão, que passa a ser também protagonista nas histórias, identifica-se com o que é publicado e se torna uma massa de leitores, consumidores do que será produzido na imprensa formada nos cursos que o Leandro Fortes está organizando.

Elton

Meus parabéns!!! Democratização é isso…..

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