Katarina Peixoto: Como juizes brasileiros falsificaram Roxin, Vannuci e Agamben

Tempo de leitura: 6 min

Captura de Tela 2016-09-27 às 18.16.16

por Katarina Peixoto, no Facebook

Ontem dediquei algumas horas a ler decisões de juízes, desembargadores e ministros.

Adoeci um pouco mais e espero conseguir fazer algo de positivo com o chorume que li.

Enunciados falsos podem fazer sentido. E nada há de trivial nisso. Um dos Diálogos platônicos de maturidade, O Sofista, é dedicado ao estatuto lógico dos enunciados falsos e sobre o passado (ou, mais precisamente, sobre o que não é).

Desde O Sofista, avançamos na literatura secundária mas, como todo problema filosófico nos exige, não há uma solução para o estado do problema e, vale dizer, não deve haver. A filosofia não existe para resolver os problemas do verdadeiro e do falso, do que existe e do que não existe, mas para nos ajudar e entender e a descrever a natureza e o escopo desses problemas, inclusive na vida cotidiana. Inclusive frente ao poder político e ao direito.

Fui dormir com uma pergunta na cabeça: se um juiz ou desembargador brasileiro prescrever uma receita de ovo frito e, com base nela, autorizar a que se enjaule um cidadão antipático à opinião do Jornal Nacional e da Revista Veja, por que razão ele não estaria autorizado a fazê-lo?

Existe interpretação e há teorias da interpretação, as chamadas hermenêuticas. Existem distinções de método. Essas coisas não anulam e nunca anularão a ruptura entre o verdadeiro e o falso e, se o fizerem, nem são interpretação, nem hermenêutica, mas pilantragem, quando não, crime, caso envolvam violação documental e ideológica, tipificadas no código penal, ou o uso mal intencionado e vil de enunciados textuais, a fim de cometer atos sem amparo legal.

Há três casos de falsificação documental que extrapolam em muito a complacência estamental da hermenêutica jurídica e que dão a ver a seriedade dessa questão, acima.

Por ocasião da Ação 470, o caso do mensalão, um ministro do STF arregimentou e violou o sentido de uma doutrina, para produzir sua acusação.

A chamada doutrina do “domínio do fato”, inventada e utilizada como mera arregimentação, é, em termos estritos, uma falsificação do que Roxin produziu.

Na sua versão brasileira, o que ocorreu foi mais grave, em termos lógicos e penais, do que uma dublagem: a arregimentação serviu para se inventar uma teoria penal da responsabilidade objetiva que não visa a, como manda a filosofia penal moderna e o direito penal brasileiro e a teoria do domínio do fato, segundo Roxin, buscar a pessoa ou as pessoas de direito que cometeram o crime (com base na identificação particular, subjetiva, no encadeamento de responsabilidade diante de crimes de magnitude e escopo coletivo), mas a atribuir à peculiar noção de objetividade ali exposta, uma totalidade adhoc tal que configure um crime coletivo, por associação qua associação.

É como o crime cometido por um cnpj, uma aberração semântica, jurídica, penal, processual penal, judicial e real.

Que uma mídia familiar oligárquica, sonegadora e vinculada a regimes de exceção e deles advogada permanente faça isso, não surpreende.

Que isso entre para a jurisprudência brasileira é uma violação de sentido naquilo que define o que se passou a chamar de condições de sentido de um enunciado: as condições para que ele seja dito verdadeiro ou falso.

Ainda assim, essa arregimentação, na medida exata em que não passa disso, pode fazer algum sentido, como falsidade.

O acusador sofista, aposentado após a prestação de seu serviço, ao menos se retirou de cena.

Outra falsificação grotesca, também de escopo nocivo e corrosivo da vida institucional do país, foi cometida pelo juiz moro. Ele conseguiu transmutar a descrição, feita por Vannuci, o cientista político italiano, no célebre “O Fracasso da Operação Mãos Limpas”, segundo a qual a operação teria produzido uma “deslegitimação da política”, em prescrição.

Num artigo cometido em revista especializada, cita o Vannuci para defender, vejam só o desvio além da hermenêutica: operações de combate à corrupção deveriam promover a deslegitimação da política.

Dizer que algo produziu a deslegitimação da política não é, por critério algum, dizer que algo deve produzir a deslegitimação da política. Pior: identificar ambos os enunciados ao citá-los como idênticos é falsificar o enunciado original.

A terceira falsificação escandalosa que autoriza a gravidade da questão acima, a respeito do ovo frito, foi cometida há muito pouco tempo, por desembargador federal, prontamente apoiada por uma maioria de falsificadores ou complacentes com a falsificação.

A propósito da análise de representação contra as violações, como tais reconhecidas pelo próprio TRF4, do juiz sergio moro, da Lei Orgânica da Magistratura, que veda o expediente delinquente de grampear advogados e violar a relação entre esses e seus clientes, os senhores desembargadores não somente arregimentaram um filósofo, como o fizeram por segunda mão, via Apud, de texto, inacreditavelmente, cometido por um ex-ministro do STF.

O ex-ministro comete a inversão completa e falsificadora do sentido de “exceção jurídica” analisado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben.

Eros Grau preda o que diz Agamben e os senhores do TRF4, sem timidez nem respeito ao texto do Agamben, aliás com boa tradução para a língua portuguesa, e para a vergonha e a explicitação de um grau periculoso de indigência intelectual e jurídica que assola e ameaça as instituições do país, julgam válida a falsificação do sentido de “exceção jurídica” e usam uma falsificação para assegurar outra.

Trata-se de uma falsificação de segunda ordem, para escândalo de qualquer pessoa letrada.

Essa falsificação é grave e nos leva a muitas questões, igualmente graves: se e quantos outros casos há, de falsificações gritantes de teorias, arregimentadas por juízes que não respondem pelo que fazem, não prestam contas a ninguém e, por isso, mandam para a cadeia e inviabilizam a vida de quem for?

Enganam-se os que pensam que isso vai parar ou que isso é só contra o PT e seus dirigentes. Essa ingenuidade não tem o menor cabimento, quando juízes não se envergonham de falsificar teorias, prender sem provas e dizendo que a falta de provas é motivo para prender.

Pode ser analfabetismo funcional, pode ser ignorância, pode ser miséria intelectual carregada do câncer atávico, residual, da cultura bacharelesca, de colônia escravagista.

Há muitas hipóteses que exigem o acompanhamento judicioso do que juízes dizem que usam como fundamento de suas decisões e o que procuradores e promotores usam para fundamentar suas denúncias.

Fico pensando se alguém que denega a existência pregressa dos dinossauros ou o legado epistêmico do darwinismo pode saber em que consiste uma relação de causalidade, de inferência e de probabilidade.

Custo a crer, mas eu sou só uma doutora em filosofia, que se graduou em direito numa das melhores escolas do país, caracterizada, exatamente, por nos prevenir das metástases antilegalistas.

Quanto a isso, sou grata.

Descrever algo é uma das coisas mais difíceis e também requer compromissos semânticos explícitos. Quando eu digo: “a teoria do domínio do fato é o modo de fritar ovos”, estou dizendo que essa teoria, não uma outra, é o modo, não nenhum outro, de fritar ovos.

Se esse não é o modo de fritar ovos, incorro em falsidade, isto é, enuncio algo falso, mesmo que possa fazer tanto sentido como um ou o modo x de fritar ovos.

Mas uma criança em idade escolar, antes da reforma do ensino médio imposta pelo subletrado da força de usurpação do MEC, pode distinguir sem problema algum entre “o modo de fritar ovos” e “o modo como se deve fritar ovos”. Uma criança saberá que essas frases e seus enunciados não são idênticos e que, portanto, identificá-las é errado.

De que natureza é esse erro? Um das coisas mais graves, além do fato melancólico e estarrecedor de que juízes podem mandar enjaular pessoas com base em falsificações feitas por eles mesmos, ou que podem autorizar um outro juiz a fazê-lo, com base em outras falsificações, feitas e cometidas em publicações sem filtro intelectual minimamente alfabetizado, é que esses servidores públicos recebem salários elevados sem que, para tanto, seja requerido mais do que a graduação em direito e, podemos inferir muito tranquilamente, concursos públicos com baixa exigência intelectual e cultural.

Eles não dão aulas em dois ou três expedientes, após doutorado e mestrado, recebendo bolsas simbólicas que mal compram livros e pagam passagens de ônibus. Eles não são obrigados a ler e escrever em mais de um idioma. Não são julgados por pares e pelos que dependem de seu trabalho, para se formarem.

Eles não respondem a ninguém e vivem num estado orçamentário e burocrático cujo nível de accountability é irredutivelmente separado do que se passa na vida fiscal, orçamentária e institucional, do país.

Proposições falsas podem fazer sentido, mas não ciência. Proposições falsas e verdadeiras não podem e não devem ser transportadas, sem filtros como os das prerrogativas fundacionais do estado de direito e dos direitos fundamentais, para o âmbito judicial. Proposições falsas não podem é mandar ninguém preso e nem fundamentar o enjaulamento de pessoas. E aí o problema lógico ganha um contorno mais grave: ele serve ao delito, ao crime, ao arbítrio.

Agora respondam: por que um juiz brasileiro não pode enviar alguém para a cadeia ou autorizar a delinquência de um par, com base na receita de ovo frito?

Espero em breve ter isso mais organizado (estudo o Roxin, no momento, e espero publicar este texto, se ele ficar mais bem trabalhado).

Uma das vantagens de ter perdido tantas coisas e de viver o direito como algo nada trivial, é poder, sem medo de punição além das que já recebi e receberei, chamar atenção para isto: o golpe em curso, no Brasil, não é parlamentar. E quem pensa em termos democráticos e defende a democracia precisa voltar os olhos e a inteligência para esses setores de opacidade, predação e violação de direitos, que contaminam e inviabilizam a economia, a vida institucional e as relações de representação, no país.

Leia também:

Mello: A esquerda desunida sempre será vencida


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

MAAR

BRILHANTE ARTIGO

Parabéns, Doutora Katarina. É um alento para a desgastada resistência progressista testemunhar este esforço epistemológico de altíssimo nível, esgrimido com maestria no enfrentamento coerente e criativo do tsunami obscurantista pseudo jurídico que assola a cidadania brasileira. A iniciativa demonstra de modo concreto que a tão subestimada Filosofia serve como instrumento de libertação quando utilizada com a perseverança dos que lutam em defesa da democracia através dos meios democráticos.

marco

Pois senhora KATARINA,desde o início dos acontecimentos que redundaram no GOLPE DE ESTADO,daqui onde me encontro,semianalfabeto em DIREITO,desde o início,me ative nas posturas dos MAGISTRADOS BRASILEIRO em geral,e tive desde então a certeza,que dali emanaram aos golpistas,sinais de uma permissividade cúmplice de parte dos que decidem,no PODER JUDICIÁRIO.Como cheguei a tal conclusão,deve-se ao fato de que esse PODER,não tem OUTORGA e portanto gozam de prerrogativas,seus membros,do INSTITUTO DA IMPUNIDADE.Além do que,assisti decisões proferidas por membros desse “PODER SEM OUTORGA”,que se resumem na escandalosa decisão de um membro do STF,durante o que os FASCISTAS BRASILEIROS DA IMPRENSA,denominaram MENSALÃO.Na falta de provas, decido condenar,porque a LITERATURA ME PERMITE. No que me diz respeito,considero essas pessoas,COMO CORJA DE CANALHAS TOGADOS.

    FrancoAtirador

    .
    .
    Tadinha da PresidentA Suprêma

    Tá pensando que póde enfrentar

    a Corporação da Raça Superior:

    https://youtu.be/Sn79dAd7ByI?t=38
    .
    .

Marcia Oliveira

Excelente.
Moro não vai entender porque é um togado inculto, despreparado, golpista.
Obrigada, Katarina, pelo belíssimo texto.

    FrancoAtirador

    .
    .
    Katarina Peixoto Cada Vez Melhor.
    Uma Pensadora Imprescindível.
    No Sentido Brechtiano de Sê-lo.
    .
    .

Luiz Carlos P. Oliveira

Um adendo: não existe mais o Direito no Brasil. Ou melhor, existe para quem não é do PT: o direito de não ser investigado, julgado ou preso. Parágrafo único.

Eudes Gouveia

Instituições opacas. Sociedades secretas cujos membros permeiam todas instituições públicas e privadas. Que não aceitam mulheres, negros e homossexuais. Por não aceitarem, coordenaram o golpe que ainda não terminou.
O exemplo é o envolvimento do próprio STF. Fora o já demonstrado pela articulista, hoje tivemos uma pequena amostra. Em processo super rápido para os padrões do STF, a senadora Gleise e o ex-ministro Paulo Bernardo foram indiciados a menos de 5 dias das eleições. Não tem processo mais antigo para ir na frente? Ou do PT só tem esse? Esse não poderia esperar mais uma semana, já que ajuizado recentemente?

Edgar Rocha

Soma-se à tendência sofista de nossa “tradição” jurídica, o dialeto literalmente macarrônico usado como forma de distinção entre os togados e simples mortais, fica evidente a necessidade de pessoas como a filósofa Katarina Peixoto estender seu campo de influência para além da torre de marfim, igualmente distinta, do universo acadêmico que justificadamente absorve boa parte de suas energias. Não digo necessariamente sair como um goliardo de vila em vila mas, ao menos lançar mão de “fatores multiplicadores” deste problema filosófico de caráter tão urgente, seja para a compreensão de nossas instituições (como funciona e pelo que trabalha), seja pelo entendimento do contexto atual deste “país da maravilhas” em que estamos vivendo.
O texto é maravilhoso, elucidativo e capaz de nos oferecer argumentos fortes sobre a lógica – ou ausência desta – dos que tomaram às rédeas da realidade para atropelar a verdade. A importância de tais esclarecimentos vem do fato de que, a despeito da enorme dificuldade em nos defendermos dos falsos postulados que embasam a (i) lógica atual, o sofisma, enquanto paradigma do pensamento, cavalga com rédeas soltas em cada argumento em que se pretende defender interesses espúrios, individualistas, imediatistas. E isto não é de hoje, e com certeza não se restringe ao pensamento jurídico. Talvez seja o que, na História da Humanidade defina os contornos entre o que é verdadeiro e falso, sempre. Educar o pensamento para raciocinar no sentido de separar uma coisa de outra é tarefa de todos os que pretendem construir uma sociedade mais justa, mais mais verdadeira, mais lógica. Parece tão óbvio, mas basta debruçar-se sobre o sistema educacional oferecido ao brasileiro mediano para entendermos sua estrutura primordial: o sofisma para os de cima, a subserviência e ignorância aos de baixo, sempre. Não fosse isto, a fábrica de sofismas a qual chamamos de mídia, não seria tão eficaz, tão influente.
Meus respeitos.

FrancoAtirador

.
.
Assim como apenas se aprimoraram os Meios Tecnológicos de Manipulação,

tão-somente se sofisticaram os Métodos dos Julgamentos em Praça Pública.
.
.

    FrancoAtirador

    .
    .
    Fasciofisma nos Meios de Comunicação

    “Validar a Falsificação do Sentido de ‘Exceção’
    e Usar Tal Falsificação Para Assegurar Outra”

    Essa é a Função do Cartel Empresarial de Mídia
    como Instrumento de Legitimação do Arbítrio

    para dar Garantia do Poder de Fato à Plutocracia
    com o Apoio da População Alienada e Distraída.
    .
    .

    FrancoAtirador

    .
    .
    Criar Factóides ou Mesmo Produzir Fatos Artificialmente,
    para, de Má-Fé, Induzir Pessoas em Erro de Julgamento,
    é a Atribuição Precípua dos Veículos de (Des)informação.

    O Condicionamento Psicológico, Vinculado à Subjetividade,
    para a Formação de um Senso Comum, na Coletividade,
    partindo de Afirmações Falsas ou da Ocultação da Verdade.

    Desde as Justificativas à Violência Desmedida das Polícias
    até as Condenações Antecipadas de Políticos e Partidos
    com Destaque a Representantes da Classe Trabalhadora.

    Tudo para, enfim, após Diuturnos Massacres Áudio-Visuais,
    durante Décadas, Alcançar a Opinião Majoritária da Sociedade
    de que a Esquerda Brasileira generalizou a Corrupção no País.

    Quando, na Realidade, foi a Revogação da Legislação Reguladora,
    – Imposta pela tal Doutrina Político-Econômica do Estado Mínimo,
    Promovida pelas Mídias Corporativas UltraLiberais Internacionais –

    que estabeleceu a Promiscuidade Público-Privada nos Governos,
    pela Infiltração nos Poderes Legislativo e Judiciário – e nos MPs –
    e pela Apropriação Particular dos Orçamentos dos Estados-Nação.

    Em Nível Planetário, o Exemplo Mais Evidente foi o Acobertamento
    da Falcatrua do Millenium, entre as Gigantes Corporações Bancárias
    que fizeram o Milagre da Multiplicação dos Papéis/Títulos, Sem Lastro,

    ocorrida em 2008 nos Abençoados United States of America (USA),
    com a Quebra do Sistema Financeiro Norte-Americano e Europeu,
    abafada pela Injeção de Trilhões de Dólares dos Cofres Públicos.

    Para entender a História e compreender melhor as Consequências,
    vide o que o ocorreu na Alemanha, depois da 1ª Guerra Mundial,
    com a Quebra da Bolsa de Valores de New York-USA, em 1929…
    .
    .

Mauricio

Pra mim o pior poder sempre foi o Judiciário, pois é o único cujos representantes não são eleitos e onde virtualmente não controle algum de suas atividades.

Deixe seu comentário

Leia também