Valdely Kinupp: Brasil despreza sua biodiversidade alimentar

Tempo de leitura: 5 min

do coletivo de comunicação Catarse

Entrevista com Valdely Kinupp

O que de especial te motivou a trabalhar com as plantas alimentícias não-convencionais?

Foi a questão econômica e de sustentabilidade, mas também o prazer de fazer um trabalho novo, praticamente inédito, da forma como foi feito. Pensando numa alternativa, desde a sobrevivência na selva, na lida do campo, mas também numa perspectiva de geração de renda, empregos, conservação da natureza, porque hoje a gente vive uma monotonia alimentar.

As PANCs [Nota do Viomundo: Plantas Alimentícias Não-Convencionais], e nossa biodiversidade como um todo, seja ornamental, medicinal, madeireira são, muitas vezes, negligenciadas. Especialmente as alimentícias aqui no Brasil – se a gente olhar a nossa mesa, no que existe de cardápio nos restaurantes, dos self-service ou nas gôndolas dos supermercados e nas feiras, praticamente tudo é exótico, pouco é local, com baixa importância regional, nacional e, muito menos, internacional.

O Rio Grande do Sul, mesmo sendo considerado um dos celeiros do Brasil, não está adaptado a futuras mudanças climáticas – e vários estudos internacionais vêm mostrando que as plantas regionais, as ditas plantas “daninhas”, as plantas espontâneas, são muito mais adaptadas [até por rotas metabólicas e fisiológicas diferentes] ao aumento do gás carbônico e da temperatura no ar, em comparação com as commodities agrícolas.

Não estamos preparados para catástrofes e desastres ambientais, porque as pessoas não sabem mais o que comer do seu quintal. E isso é um ciclo vicioso. As crianças deveriam aprender desde cedo nas escolas que existem milhares de plantas que podemos comer. Isso deve ser rotineiro, para que as pessoas deixem de encarar como comportamento de pobre que está passando por carência ou comida para porco.

Muitas vezes, nas saídas de coletas que realizamos periodicamente, sempre aparecem curiosos. Eu já aproveito para fazer uma educação informal, mostrando o que é comestível, e mesmo assim, alguns ainda pensam que sou uma pessoa que está passando necessidade, porque estou catando um frutinho qualquer ali no mato.

Precisamos quebrar essa tabu. Sabendo que determinada planta é comestível, você não mais a verá como mato. É preciso aprender isso: tudo foi mato um dia, até as pessoas descobrirem que aquilo se poderia comer, com as plantas mudando de categoria e inaugurando um novo paradigma alimentar. Só existe preocupação da sociedade quando ocorrem secas drásticas e as pessoas ficam sem uma planta folhosa local para comerem e precisam trazer de outras regiões.

Se, por exemplo, estivéssemos plantando bertalha (e.g., Anredera cordifolia, A. krapovickasii – Basellaceae), como hortaliça aqui no RS e não o alface, os agricultores não estariam passando tantos problemas, porque são plantas que toleram o período de estiagem e co-evoluíram neste ambiente. A bertalha foi um dos carros-chefe na minha pesquisa, ou espinafre-gaúcho, como preferi registrar popularmente, que você pode comer as folhas, muito rica em zinco, ótimo para memória, uma planta perene, mas que possui outra boa vantagem: além folhas como verdura, há as batatinhas áreas e também os tubérculos subterrâneos na pequena batata que ela produz que são legumes, com usos similares a batata-inglesa.

Destes órgãos amiláceos foi descoberta uma substância nova, em 2007, de proteção para cavidade gástrica, que inibe a ação de tripisina [“Ancordin”]. Alguns estrangeiros queriam comprar cerca de duas toneladas de batata. Cadê o produtor? Não há cultivos racionais desta espécie no Brasil. E continuamos falando da nossa biodiversidade, mas comendo a biodiversidade dos outros continentes/países. Criamos vaca e galinha que não são nossas. Plantamos trigo, arroz, café, laranja, eucalipto e soja, e nada é do Brasil.

Cadê a criação de anta, veado, mutum? Cadê o plantio de bertalha, ália, crem, jacaratiá… A domesticação do pêssego-do-mato? E tantas outras hortaliças e frutíferas silvestres com grande potencial agrícola e nutricional. Não existe. As pessoas valorizam tanto suas tradições em cada um dos nossos estados, falam bastante da biodiversidade, mas não a conhecem, e isso é riqueza abstrata. Se fala que a Amazônia vale trilhões. Vale nada. As pessoas estão passando fome lá.

Muita gente vivendo precariamente, como aqui, na famosa Porto Alegre, com sua periferia cheia de pessoas comendo mal, sentindo frio ao dormir. Não adianta termos uma biodiversidade imensa na Região Metropolitana se não a comemos ou a utilizamos de forma sustentável para outros fins. Muito menos geramos divisas e empregos, porque ninguém planta. Nós somos xenófilos, gostamos do que é de fora, aceitamos de pronto. Meu intuito é fazer a extensão, a popularização, dessas plantas nativas e subsidiar outras áreas do conhecimento, não ficar uma ação isolada. Que a Agronomia possa estudar isso no aspecto fitotécnico e horticultural; a Nutrição pesquisar a parte bromatológica; a Química, a Bioquímica, a Farmácia com a parte toxicológica e fitoquímica.

Ninguém pesquisa aquilo que não se conhece. Trazer à tona, resgatar e propor novas plantas para serem incorporadas na dieta humana conduz aos estudos transversais. E aí a importância, num trabalho básico desse como o nosso, de detalhar as plantas nativas. Mas friso que não se pode entender isso como uma verdade absoluta. É uma proposta em construção, que começa desde as experiências individuais dos pesquisadores envolvidos, nos relatos de pessoas que fazem uso tradicional, por dados de etnobotânica antigos. E será apenas um segmento da pesquisa, que servirá como subsídio para outras áreas de conhecimento.

E aí, o mais importante disso o que é? Ponderar o uso e ter diversificação. Por isso a ciência é dinâmica. Todas as plantas têm seus prós e contras, seus modos de preparo adequados, períodos de consumo, com maior ou menor sensibilidade das pessoas. Mas nós não podemos blindar as plantas não-convencionais por acharem que são mais tóxicas que as comuns que você tem no dia-a-dia.

Há carência de pesquisa, pois o comum é pesquisar só aquilo que está badalado: o morango ou tomate. E não se pesquisa nosso juá nativo, que tem tanto ou mais licopeno que o tomate, porque nem se conhece. Por isso a necessidade da transdisciplinaridade e de fazer essa passagem para o uso real e efetivo da nossa flora diversa. Nós não sabemos nem quantas espécies temos no Brasil ainda – 50 mil? – ficando restrito à Botânica. Não há consenso, nem uma listagem garantida.

Há hipóteses, mas nem isso a gente sabe. Não só a biodiversidade vegetal, mas animal também, que é mais paradigmática e cheia de tabus, com legislação cada vez mais engessada, necessitando ser revista com urgência, para que a nossa fauna alimentícia possa e deva ser criada de forma ecologicamente correta.
Estamos em uma área muito boa de se trabalhar.

Eu pude fazer uma pesquisa aplicada e transferir isso para as pessoas. Esse é um tipo de trabalho que desperta bastante interesse, de compartilhar aquilo que você pode fazer no ponto de ônibus e dentro dele, na divulgação corpo-a-corpo, porque as pessoas entendem, sendo gratificante para o pesquisador poder conseguir explicar o que faz. Falo que trabalho com as plantas que existem por aqui no chão, em todo o lugar, que não são aproveitadas, mas que dá para comer, seja verdura ou frutíferas, condimentos e por aí vai. No entanto, uma área, infelizmente, carente de pesquisa e de editais de financiamento no Brasil. Nós temos uma biodiversidade muito grande, mas não a comemos.

Clique aqui para assistir as reportagens  sobre o projeto

Postado por André de Oliveira  

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Comentários

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stephanie bussi

Estou tentando encontrar o email dele, alguém tem conhecimento?

Obrigada

Sérgio Leite

Comentários inteligentes, de pessoas inteligentes… É muito bom encontrar jóias como essa na WEB.

As plantas alimentícias não convencionais regionais são tesouros em saúde, soluções alimentares ecológicas e também, para aqueles que desejarem, formas interessantes de integração e ensino com seus filhos.

Abraços.

Sérgio Leite (São Paulo/SP)

Maria Odete

Gostaria que todas as pessoas no mundo tivessem a oportunidade de se aquecerem nas longas noites frias, independente de ser um cobertor ou edredon de luxo ou um simples cobertor de campanha, como aqueles fabricados com estopas de fios de algodão e resto de lã, que minha família recebeu em 1976. Foi um inverno com dignidade graças aquela doação. * CASO haja mães que não tenham como aquecer os seus amados durante as longas noites frias, VEJA A ORIENTAÇÃO coloque sobre a cama ou leito um lençol e cubra com folhas de jornal e em cima da camada de jornal coloque outro lençol e todos irão dormir aquecidos tanto quanto alguem que dormiu aquecido com cobertor ou edredon de luxo!!

Maria Odete

Estou cursando o curso de nutrição, mas sempre gostei da idéia do resgate de alimentos conhecido e usados por meus antepassados e antepassados do meu esposo, alimentos com alto valor nutricional, mas pouco conhecidos, como a taioba, serralha, caruru, beldroega, mastruz, e a bertalha conhecida pelos descendentes de escravo como couve de cipó. tenho no meu quintal a bertalha, taioba e a beldroega espécie conhecida como língua de vaca.

Marsvelo

Tem vários documentários que tratam desse assunto. Sugiro: "Neste Chão Tudo Dá – Semeando Conhecimento e Colhendo Resultados (2008)" – Produção de alimentos aliada à sustentabilidade da fauna e flora, à inclusão social do camponês, à emancipação econômica, à variedade das espécies vegetais, sem uso de defensivos ou adubos químicos, pode ser possível?
Descubra a policultura da Agrofloresta;
Veja esse curto documentário e testemunhe o conhecimento, que vem se disseminando na Bahia entre os pequenos agricultores, tão valioso que pode mudar o destino da produção de alimentos, caso a humanidade acorde para a questão." Comentários: docverdade
Link para baixá-lo:http://docverdade.blogspot.com/2009/12/neste-chao

Há outros como "Le monde selon Monsanto", "We feed the world", "Alimentação sustentável" e "Food inc.", importantes para se entender a questão dos alimentos no Brasil e no Mundo.

Aprendendo a usar os recursos da rede | Viomundo – O que você não vê na mídia

[…] O médico paulista pode fazer uma consulta virtual com um colega da Amazônia, especializado em doenças tropicais, sem a mediação de ninguém; o jornalista do Rio Grande do Sul publica informações confiáveis na rede a partir de uma fonte do interior do Maranhão que não foi ouvida pela grande mídia mas tem informações relevantes a dar sobre um determinado fato; o leitor desinformado fica sabendo de uma pesquisa interessante que um profissional está fazendo sobre a melhor utilização de folhas e plantas regionais na dieta… […]

Hélio Jacinto

Gostei da idéia, o Brasil precisa incentivar o uso das plantas e criação de animais nativos.
Com nossa Biodiversidade podemos resolver os problemas nutricionais da população.
Aves como Jacus, Codornas , Perdizes, Mutuns, Patos e Marrecos selvagens, podem ser domesticados e criados em cativeiro, o mesmo se da em relação aos animais como Porcos do Mato, Tatus, Largatos, Coelho Pitiguari, Préas etc
Tambem deve se incentivar a criação de passaros sivestres canoros ou ornamentais.
A melhor forma de preservar plantas, animais ou aves é incentivar sua produção e criação.

Lori

É muito bom que a academia tenha pessoas com a visão dele. Eu pesquiso e utilizo na propriedade muitas plantas não convencionais e em 2008 dei oficina durante a Feira da Economia Solidária em Santa Maria-RS. Somente no caso da polpa do palmito jussara já são 34 pratos doces e salgados. Muitas raízes utilizo para fazer farinhas (cará, inhame, mangarito, abóbora, moranga, etc). A farinha de banana verde é ótima para regimes, diabete, colesterol elevado (amido leve). O beiju colorido utilizo muito quando faço oficinas de alimentação com crianças. Recebi o professor Paulo Brack e os estudantes da UFRGS para coleta e identificação das plantas alimentícias não convencionais na propriedade e fizemos almoço com a biodiversidade de dar água na boca.

Ricardo Blumenau

Olha, o espaço é pequeno para citar todos os itens (caruru, mangarito, taiá, guabiju, etc…). Não temos ideia do potencial que existe num quintal abandonado (para citar uma área já degradada).
É um trabalho muito interessante, que está só engatinhando (existe um "universo" aí a ser explorado).
Tomara que vingue!!!
Abraço a todos

jefferson

Muito legal colocar esse assunto em debate. Adorei!!

Paulo

No caso de animais de nossa fauna, será necessária licença prévia do IBAMA para a criação e abate de qualquer animal, é bom lembrar. No mais, concordo inteiramente com o artigo.

Sérgio Pamplona

Também não citou a fantástica pupunha, palmeira amazônica superprodutiva e nutritiva. Puxa, Azenha, eu queria ver o trabalho desse (dessa) pessoa? Vc tem algum contato?
Abraço,
Sérgio

    Luiz Carlos Azenha

    Sérgio, clique no título que ele te manda para o site onde o texto foi publicado originalmente. Além disso, acrescentei o link para as reportagens em vídeo. abs

yacov

E isso que ela nem mencionou a mandioca, com a qual poderíamos produzir pãezinhos de excelente qualidade, a baixo custo, podendo dispensar um pouvco a farinha de trigo branca, que se transforme em glicose em nosso organismo. E também haveria excedentes de farinha de trigo que poderiam ser exportados.

FORA PSDBorrabotas DEMentes e Pig'SS!!!
QUERO LULA DE NOVO QUERO DILMA 2010 EMU POVO!!

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