Boaventura Santos: “A ordem econômico-financeira do pós-guerra está em colapso”

Tempo de leitura: 4 min

15/11/2010 |

A História da Austeridade

A recente reunião do G-20 em Seul foi um fracasso e mostrou que a ordem econômico-financeira criada no final da Segunda Guerra Mundial está colapsando, indicando no horizonte a eclosão de graves conflitos comerciais e monetários. Por toda a parte, os cidadãos vão são sendo bombardeados pelas mesmas ideias de crise, de tempo de austeridade, de sacrifícios compartilhados. O que não é dito é mque a crise foi provocada por um sistema financeiro desregulado, chocantemente lucrativo e tão poderoso que, no momento em que explodiu e provocou um imenso buraco financeiro na economia mundial, conseguiu convencer os Estados (e, portanto, os cidadãos) a salvá-lo da bancarrota e a encher-lhe os cofres sem lhes pedir contas. O artigo é de Boaventura de Sousa Santos.

por Boaventura de Sousa Santos, em Carta Maior

A recente reunião do G-20 em Seul foi um fracasso total. Chegou a ser constrangedora a perda de credibilidade dos EUA, como suposta economia mais poderosa do mundo, e o modo como tentaram acusar a China de comportamentos monetários afinal tão protecionistas quanto os dos EUA. A reunião mostrou que a “ordem” econômico-financeira, criada no final da Segunda Guerra Mundial e já fortemente abalada depois da década de 1970, está a colapsar, sendo de prever a emergência de conflitos comerciais e monetários graves. Mas curiosamente estas divergências não têm eco na opinião pública mundial e, pelo contrário, um pouco por toda a parte os cidadãos vão sendo bombardeados pelas mesmas ideias de crise, de tempo de austeridade, de sacrificos repartidos. Há que analisar o que se esconde por detrás deste unanimismo.

Quem tomar por realidade o que lhe é servido como tal pelos discursos das agências financeiras internacionais e da grande maioria dos Governos nacionais nas diferentes regiões do mundo tenderá a ter sobre a crise econômica e financeira e sobre o modo como ela se repercute na sua vida as seguintes ideias: todos somos culpados da crise porque todos, cidadãos, empresas e Estado, vivemos acima das nossas posses e endividamo-nos em excesso; as dívidas têm de ser pagas e o Estado deve dar o exemplo; como subir os impostos agravaria a crise, a única solução será cortar as despesas do Estado reduzindo os serviços públicos, despedindo funcionários, reduzindo os seus salários e eliminando prestações sociais; estamos num periodo de austeridade que chega a todos e para a enfrentar temos que aguentar o sabor amargo de uma festa em que nos arruinamos e agora acabou; as diferenças ideológicas já não contam, o que conta é o imperativo de salvação nacional, e os políticos e as políticas têm de se juntar num largo consenso, bem no centro do espectro político.

Esta “realidade” é tão evidente que constitui um novo senso comum. E, no entanto, ela só é real na medida em que encobre bem outra realidade de que o cidadão comum tem, quando muito, uma ideia difusa e que reprime para não ser chamado ignorante, pouco patriótico ou mesmo louco. Essa outra realidade diz-nos o seguinte. A crise foi provocada por um sistema financeiro empolado, desregulado, chocantemente lucrativo e tão poderoso que, no momento em que explodiu e provocou um imenso buraco financeiro na economia mundial, conseguiu convencer os Estados (e, portanto, os cidadãos) a salvá-lo da bancarrota e a encher-lhe os cofres sem lhes pedir contas. Com isto, os Estados, já endividados, endividaram-se mais, tiveram de recorrer ao sistema financeiro que tinham acabado de resgatar e este, porque as regras de jogo não foram entretanto alteradas, decidiu que só emprestaria dinheiro nas condições que lhe garantissem lucros fabulosos até à próxima explosão. A preocupação com as dívidas é importante mas, se todos devem (famílias, empresas e Estado) e ninguém pode gastar, quem vai produzir, criar emprego e devolver a esperança às famílias?

Neste cenário, o futuro inevitável é a recessão, o aumento do desemprego e a miséria de quase todos. A história dos anos de 1930 diz-nos que a única solução é o Estado investir, criar emprego, tributar os super-ricos, regular o sistema financeiro. E quem fala de Estado, fala de conjuntos de Estados, como a União Europeia e o Mercosul. Só assim a austeridade será para todos e não apenas para as classes trabalhadoras e médias que mais dependem dos serviços do Estado.

Porque é que esta solução não parece hoje possível? Por uma decisão política dos que controlam o sistema financeiro e, indiretamente, os Estados. Consiste em enfraquecer ainda mais o Estado, liquidar o Estado de bem-estar onde ele ainda existe, debilitar o movimento operário ao ponto de os trabalhadores terem de aceitar trabalho nas condições e com a remuneração unilateralmente impostas pelos patrões. Como o Estado tende a ser um empregador menos autônomo e como as prestações sociais (saúde, educação, pensões, previdencia social) são feitas através de serviços públicos, o ataque deve ser centrado na função pública e nos que mais dependem dos serviços públicos. Para os que neste momento controlam o sistema financeiro é prioritário que os trabalhadores deixem de exigir uma parcela decente do rendimento nacional, e para isso é necessário eliminar todos os direitos que conquistaram depois da Segunda Guerra Mundial. O objetivo é voltar à política de classe pura e dura, ou seja, ao século XIX.

A política de classe conduz inevitávelmente à confrontação social e à violência. Como mostram bem a recentes eleições nos EUA, a crise econômica, em vez de impelir as divergências ideológicas a dissolverem-se no centro político, agrava-as e empurra-as para os extremos. Os políticos centristas (em que se incluem os políticos que se inspiraram na social democracia europeia) seriam prudentes se pensassem que na vigência do modelo que agora domina não há lugar para eles. Ao abraçarem o modelo estão a cometer suicídio. Temos de nos preparar para uma profunda reconstituição das forças políticas, para a reinvenção da mobilização social da resistência e da proposição de alternativas e, em última instância, para a reforma política e para a refundação democrática do Estado.

(*) Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).


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Comentários

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Gunther Furtado

Por favor! tirem este gerúndio da pena de um português!!!

Jamilton Lopes

Fico imaginando como um pequeno grupo de pessoas conseguem dominar a economia mundial e ninguém fazer nada pra mudar esse grave quadro. O capitalismo se alimenta em cima da miséria, para pucos terem muito, muitos tem que ter pouco. Até quando isso vai durar?

Baixada Carioca

Souza Santos vai na contramão do sociólogo importado pelo PIG pra falar mal do Brasil. Tem um sujeito aí, de 85 anos, que se lesse Souza Santos diria que essa é a fórmula pra a ditadura esquerdista. Ora, Lula deu uma aula sobre a crise que surgiu nos EUA e se espalhou pelo mundo. Pediu ao povo para ir às compras. Incrementou o crédito popular (tem até comentarista PIGlobal dizendo que os acidentes nas rodovias acontecem porque Lula popularizou veículos para os "miseráveis") e aumentou os investimentos em infra-estrutura. A crise no Brasil foi uma marolinha, como disse Lula. Enquanto o PIG superdimensionava-a, o povo em nada sentia. No Brasil todo mundo ganhou. Dos miseráveis que deixaram a linha da miséria, até os mais ricos. Lula é um caso raro de analfabeto que deu um nó nos economistas.

Cabeção

No entanto vivemos num momento de enfraquecimento dos movimentos sociais e crescimento da direita. Portanto o cenário é realmente assustador. Mesmo assim creio na história, que é feita de rupturas, mudanças, revoluções. O capitalismo tem 200-250 anos por aí, em algum momento ele vai passar. E o que virá depois? Historicamente o capitalismo existe há pouco tempo, mas a exploração do ser humano pelo próprio ser humano é uma constante.
O que virá vai depender do que está sendo e será construído pelas sociedades. Tomara que trilhe o caminho no rumo do verdadeiro significado de ser HUMANO.

Cabeção

Esse é o capitalismo pessoal! Crise econômica, financeira, ambiental, de valores, etc…
Está na hora de avaliarmos esse modo de produção e de consumo. Ele é eficaz para produzir inovações no campo da ciência e tecnologia? Sim. Mas, para quem? E a questão ambiental? Quantos planetas serão necessários para sustentar esse modo de produção? Quantas crises presenciaremos para fazer essa reflexão?
Penso que poderíamos nos pautar por um debate que vai na raiz do problema, caso contrário as crises virão de forma cíclica, como já apontava Marx no século XIX.

mariazinha

[…] corporações privadas que possuem mais riqueza que o PIB de muitos países fica muito complicado impedir a jogatina financeira, por que é certo que esta máfia financeira continua auferindo grandes ganhos em meio as profundas crises que ela mesma gera." [FA]

PQ o brasileiro continua a comer aqueles horrorosos sanduiches md? Eu já aboli muita coisa que vem deles e de seu satélite, Israel. Para mim, nada do que acontece hoje, essa falência acintosa, admira-me. Já a esperava; durante muitos anos preparei-me para enfrenta-la. Não podia ficar como estava e agora, depende só de não comprarmos seus produtos. Vamos deixa-los à míngua e então veremos se continuarão achando-se os maiorais. Deixemos suas armas sem munição. Por falar não esqueçam de consultar as listas de produtos que deverão ser boicotados pois financiam o terrorismo do estado sionista. Basta procurar na Internet.
É claro que viveremos bem melhor, sem eles.

    mariazinha

    "É claro que viveremos bem melhor, sem eles. "
    Não foi uma frase ideal.
    Melhorando a compreensão:
    " é claro que viveremos melhor quando não exercerem tamanho poder sobre nós."

Marcia Costa

Artigo que complementa a avaliação das eleições americanas escrito pelo Chomski. Recomendo a leitura dos dois e nossa atenção ao que os articulistas escreveram. Ter vencido a batalha em 2010, não sigfica que a guerra está ganha.

monge scéptico

Esse balaio de gatos já estava anunciado, quando nixon etc. De lá para o dolar sem lastro,
O buraco negro que está provocando isso, é o inchaço do dolar sem valor que empesteia o globo
(também). Uma moeda única internacional, cujo BC seria no BRASIL,talvez solucionasse, os
problemas dos negócios entre as nações. A moeda interna seria a mesma em cada país, e
o seu poder aquisitivo para produtos internos, estável etc etc.

Rogério Madureira

Quando teremos um texto simples sobre o que está acontecendo?

    Thelma Oliveira

    Quando os temas político-econômicos internacionais forem simples, isto é, nunca. Enquanto isso, podemos nos contentar com análises difíceis, mas excelentes, trazidas por este blogueiro. Concordo plenamente com a Marcia e também recomendo o texto do Chomsky como leitura complementar à este.
    O que acontece com essas leituras é que, no início, elas são bem complicadas mesmo. Mas se a gente começa a ler vários deles, aos poucos vai se interando dos temas abordados e o horizonte da nossa compreensão começa a se ampliar. Esses autores citados até aqui são mto bons pra dar um panorama interessante sobre o mundo contemporâneo, com toda a sua complexidade.

    mariazinha

    Parabéns, Thelma Oliveira. Também concordo com a MARCIA. Com simplicidade e elegância VC observa que, praticando a leitura constante, obteremos a compreensão. A escolha do AZENHA é fenomenal e fundamental para que tenhamos oportunidade de, lendo bons textos, entendermos melhor o que se passa no MUNDO.
    Abs.

Cassia

E a culpa da sociedade que aceita a vida ilusória, não conta? O jornalista Chris Hedges conta, em entrevista a Jorge Pontual, a respeito de seu livro "O Império da Ilusão" sobre a queda inevitável dos EUA. Para os que entendem inglês, há um trecho sobre o jornalismo e a mídia
http://globonews.globo.com/platb/milenio/2010/01/

Os que conduziram o mundo ao bruraco encontraram a solução: cavar mais! | ESTADO ANARQUISTA

[…] A História da Austeridade, pelo Viomundo: […]

Leider_Lincoln

E os malandrões estão indo nos blogues, pregando a cantilena neoliberal, como se fosse obrigação da Dilma seguir o projeto do candidato perdedor; no meu a as palavras de um tal Heitor Bastos-Tigre para defender o Gianetti como se estivesse discordando dele, zomba da minha inteligência. Decerto fazem isso para complementar a tarefa dos jornais, que querem que a presidenta garanta tucanos como Palocci, Chalita e Jobim em seu ministério. Este povo é muito mala e devemos ficar atentos!

    Silvio

    Leider_Lincoln:
    O Chalita brigou com o PSDB. Eu não acredito nessa briga. Esso e para Inglês ver. Chalita como Alckimin, pertencem ao Opus Dei. Desta forma se crio, outro braço do polvo.

Polengo

Assustador.

Norton

E aí mora o inferno brasileiro. Mobilização de massas aqui? Somos o país mais norte-americanizado do mundo, quase até mais que eles mesmos, e vamos seguindo exatamente o padrão de desenvolvimento e consumo predatório predominante; já construímos alternativas viáveis, agora precisamos implementá-las em larga escala e isso vai exigir uma mobilização incrível, e pergunto novamente: estamos preparados?

Paulo Henrique

Quero mandar esse texto pra um amigo. Só posso fazer isso se postar um comentário.

Fernando Augusto

A questão é que as instituições financeiras tais como FMI, BANCO MUNDIAL E FED não podem ficar na não de um país que é na verdade controlado por uma máfia financeira, uma corporação, um grupo de banqueiros e financisyas que se apropriou do Estado e que ficou viciado em lucros fáceis advndos da especulação, em guerras que são usadas para ganhar mais dinheiro e manipulação financeira dos diferentes mercados nacionais. Enquanto houverem corporações privadas que possuem mais riqueza que o PIB de muitos países fica muito complicado impedir a jogatina financeira, por que é certo que esta máfia financeira continua auferindo grandes ganhos em meio as profundas crises que ela mesma gera.

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