Meu reencontro com os bóias frias, quarenta anos depois

Tempo de leitura: 7 min

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O herdeiro na ilha de Capri e os bóias frias de onde nunca sairam

por Luiz Carlos Azenha

Em quase 20 anos de moradia nos Estados Unidos encontrei apenas um liberal de verdade: o republicano Ron Paul.

As ideias libertárias dele, colocadas em prática, extinguiriam o Banco Central, o imposto de renda e promoveriam uma política externa não intervencionista. Com isso, Washington deixaria de sustentar a indústria armamentista que é hoje a espinha dorsal da economia norte-americana.

Paul, obviamente, não foi muito longe eleitoralmente. A elite norte-americana, assim como a brasileira, não quer extinguir o Estado, mas apenas colocá-lo integralmente a serviço de seus interesses de classe. Agora que o comunismo real está morto, a ideia de um welfare state ficou “ultrapassada”.

O ex-presidente norte-americano Ronald Reagan, que assumiu o poder em 1980, falava como um libertário. Em 1985 eu me tornei correspondente em Nova York.

Trinta anos depois, é curioso ver as ideias dele circulando no Brasil, através de jovens entusiasmados com a ideia de “tirar o estado das costas da população” — era assim que Reagan falava.

Os discursos do ex-ator de Hollywood eram feitos com o apoio de cartões onde estavam escritas as frases-chave.

Eram ideias simplorias, mas que diziam ao senso comum.

Cortar os impostos dos empreendedores e deixar aflorar o espírito animal do capitalismo, por exemplo. A bonança, acumulada no andar de cima, escorreria em seguida para banhar toda a sociedade.

Feito a famosa frase muito utilizada durante a ditadura no Brasil, de que primeiro era preciso fazer crescer o bolo, para depois dividí-lo. Só que o “depois” nunca chegou.

Reagan, com a sua fala mansa, destruiu sindicatos, retirou direitos, abriu as portas para que corporações americanas instalassem suas sedes em paraísos fiscais e transformou a palavra “liberal”, que nos Estados Unidos equivale a “esquerdista”, em xingamento. Foi marionete dos interesses econômicos que preparavam a globalização.

A consequência de seus dois mandatos foi que a curva da desigualdade tomou outro rumo nos Estados Unidos.

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Como correspondente em Nova York, ouvi enquanto durou o governo Reagan todos os chavões que ouço agora da molecada do MBL e adjacências: dar a vara para pescar, não o peixe; gatos gordos do sindicalismo; não às cotas, sim à meritocracia, etc.

Reagan inventou para uso político o mito da Welfare Queen, que poderíamos traduzir grosseiramente para Rainha do Bolsa Família, em sua campanha para criminalizar quem dependia de migalhas do Estado.

Pipocaram casos — curiosamente, quase sempre de mulheres negras — de pessoas que teriam se aproveitado além da conta dos programas sociais.

Aqui no Brasil, em passado recente, Ali Kamel protestou por escrito quando usuários do Bolsa Família começaram a comprar eletrodomésticos com dinheiro do programa. Trocar o pilão pelo liquidificador? Nem pensar.

Mas, Reagan dizia uma coisa em público e fazia outra nos corredores do poder.

Promoveu a maior corrida armamentista da História da humanidade com dinheiro público, estatal, do Tesouro, garantindo lucros fabulosos ao complexo industrial-militar.

Para justificar isso, transformou o governo sandinista da Nicarágua num satanás prestes a ocupar os Estados Unidos da Carolina à Califórnia. Ah, como é eficaz o espantalho comunista…

O mito de Reagan sobreviveu à morte do ex-presidente. A ideia de que ele teria “enxugado” o Estado, também.

Como diria o blogueiro ansioso, quá, quá, quá.

O gráfico abaixo mostra que os Estados Unidos gastarão quase U$ 1 trilhão para estimular a agricultura até 2023, inclusive financiando a compra de alimentos dos mais pobres através de cupons, os Food Stamps. Tudo com dinheiro do Tesouro.

É preciso lembrar quem resgatou os bancos e a General Motors depois da crise de 2008? O dinheiro do Tesouro. O imenso Estado norte-americano inchou ainda mais depois do 11 de setembro, com o advento da Homeland Security e da NSA.

Captura de Tela 2015-12-26 às 02.15.34Aqui no Brasil, em sua tentativa tardia de implantar o reaganismo, os jovens liberais — e os analfabetos políticos que os acompanham, entusiasmados com os chavões enganosos — parecem ter focado em dois programas de grande poder simbólico.

O primeiro, obviamente, é o Bolsa Família. Atacá-lo oferece a possibilidade de dizer que o PT só ganhou as quatro últimas eleições porque comprou votos no Nordeste.

Em suma, os nordestinos não sabem o que fazem. Foram corrompidos pelo Bolsa Preguiça. Fazem filhos para ganhar mais dinheiro do governo. Ficam dependentes de nós, sudestinos.

Os jargões encondem o dado essencial: o Bolsa Família custa apenas 0,5% do PIB brasileiro. Olhem lá no gráfico: entre 2014 e 2023 os Estados Unidos colocarão U$ 756 bilhões nos programas de nutrição e food stamps, encarados como uma forma de estimular a agricultura local.

O segundo programa contra o qual os jovens liberais brasileiros se insurgem é a Lei Rouanet.

Atacá-la oferece uma plataforma de alta visibilidade, já que envolve gente famosa.

Como expliquei aqui, a Lei Rouanet é de 1991, muito antes do governo Lula. Financiou milhares de projetos. Tem defeitos? Sim, que precisam ser corrigidos.

Mas simplesmente extinguí-la terá o impacto de reduzir ainda mais a produção cultural brasileira.

Nenhum problema para os jovens liberais, que aceitam Hollywood como propagadora de “valores universais”.

Ao atacar a lei, selecionam seus alvos com cuidado: o Itaú Cultural, campeão da renúncia fiscal, é poupado.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que utilizou recursos captados pela lei, não “mama nas tetas do Estado”.

Essa acusação é reservada aos adversários políticos.

Em uma década, a Lei Rouanet representou renúncia fiscal de R$ 5 bi, ou seja, 500 milhões por ano.

Muito, muito menos que o Bolsa Família.

Mas o dinheiro aqui é o de menos: o importante são os alvos simbólicos para praticar o macartismo cultural.

Reagan também fez isso: atacou a ACLU, American Civil Liberties Union, como covil de esquerdistas e cortou financiamento do sistema público de comunicação dos Estados Unidos. Se dependesse da turma dele, o Public Broadcasting Service e a National Public Radio seriam eliminadas.

Neste caso, o público reagiu com força, já que a programação da PBS e da NPR era muito superior à da concorrência privada.

Mas, vocês entenderam a ideia: era preciso desmantelar os espaços onde o debate ainda não era guiado exclusivamente pelos interesses do dinheiro.

Se preciso, com muita mistificação, como testemunhamos agora no Brasil.

O País gasta hoje uma relativa miséria com o Bolsa Família, enquanto torra mais de 5% do PIB com o pagamento de juros e amortizações.

Mas, por que não vemos os liberais carregando cartazes contra os juros extorsivos em suas manifestações?

Ah, não se deve interferir naquele ente divino, que a tudo regula, chamado “mercado”. Como um Deus, ele paira sobre todas as coisas.

O gerenciamento do Estado deve ser “técnico”, não “político” — o que é uma forma bem interessante de esconder que há interesses de classe em jogo.

O maior problema do Brasil não é a corrupção, mas a desigualdade histórica. Um Estado que tente mudar isso precisa ser combatido, já que só pode fazê-lo retirando privilégios.

E eles, os jovens liberais, estão majoritariamente no topo ou próximos do topo da pirâmide social. Seria traição de classe agitar contra o lucro alheio.

Afinal, o banqueiro chegou lá “por méritos próprios”.

Por isso, o episódio com Chico Buarque numa esquina do Leblon trouxe embutido nele um simbolismo inescapável.

O jovem que se referiu a ele como “um merda”, Guilherme Junqueira Motta Luiz, é herdeiro da Usina Açucareira Guaíra.

Depois do incidente, disseminou as supostas “mamatas” federais de Chico Buarque no Facebook.

Será que ele não lê o site da própria empresa de onde se diz gestor?

Vamos voltar aos anos de chumbo da ditadura militar.

A fazenda Rosário, de Heráclito Motta Luiz, tinha lavouras e gado antes de abraçar um programa federal que multiplicou a fortuna da família.

Naquela época, eu trabalhava como repórter-mirim em um jornal de Bauru, também no interior de São Paulo.

A partir de 1975,  a região rural sofreu súbita transformação.

Consequências do ambicioso Pró-Alcool. O Brasil era, então, importador de petróleo.

Depois do choque de 1973, quando os preços se multiplicaram no mercado internacional, a ditadura militar decidiu investir maciçamente numa alternativa nacional de combustível, a partir da cana-de-açúcar.

Um programa celebrado como afirmação da soberania nacional, mas que teve seu lado perverso.

Houve, pelo menos na região de Bauru, grande concentração de terras, financiada com dinheiro do Estado.

Surgiram os bóias-frias, trabalhadores sazonais que literalmente comiam o pão que o diabo amassou cortando cana.

Eram transportados feito bichos na traseira de caminhões, sem bancos ou cobertura.

Ganhei até uma menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog, por denunciar o transporte dos trabalhadores feito gado.

Por outro lado, o Pró-Álcool turbinou a fortuna de alguns.

De onde veio o dinheiro?

O próprio site da Açucareira Guaíra, do herdeiro que se referiu a Chico Buarque como “um merda”, explica: a família proprietária da fazenda Rosário entrou com 20% do investimento para montar a usina, deu as terras em garantia e recebeu 80% de financiamento do Tesouro!

Não foi só.

Leiam o decreto de criação do programa, do ditador Geisel, assinado em 14 de novembro de 1975.

O financiamento do BNDE (o S de Social foi acrescentado depois) e do Banco do Brasil foi a juros fixos.

De 17% ao ano, com 15 anos para pagar, no caso dos equipamentos; de 7% ao ano, com 7 anos para pagar, no caso do plantio.

E, a cereja do bolo: o decreto garantiu mercado para o álcool produzido. Primeiro, misturando à gasolina. Depois, para abastecer a frota de carros a álcool.

A ditadura mobilizou toda a rede de distribuição da Petrobras para abastecer o Brasil de ponta a ponta, viabilizando o negócio.

Não conheço a história da Açucareira Guaíra. Pode, sim, ter sido muito diferente das usinas que conheci e frequentei como jovém repórter.

Porém, uma coisa é cristalina: ela recebeu uma injeção de Estado na veia da qual, hoje, desfruta o herdeiro mal educado.

Sei que o Estado deu tratamento desigual aos envolvidos no Pró-Álcool: não me lembro de ter visto uma única usina fechada por conta da servidão dos bóias frias ou dos desastres ambientais — sempre que os resíduos da produção atingiam os rios, havia imensa mortandade de peixes.

Assim, com a devida licença poética, podemos dizer que o Chico Buarque teve um reencontro com a ditadura naquela esquina do Leblon, há alguns dias. Ele, do lado em que sempre esteve.

Leia também:

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Comentários

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Sidnei Brito

Reencontros: Azenha, com os boias-frias; Chico, com a ditadura.

Urbano

A essência do verdadeiro capitalismo selvagem é única e exclusivamente a usurpação mais cruel. O ápice da indignidade deve ser concretizado ao se alcançar, sei lá, uma pirâmide social formada por 0,1% de nababos e 99,9% de miseráveis. Isso independentemente da extinção já programada dos que compõem o último percentual. Afinal de contas os cyborgs, por serem fabricados através de encomenda previamente definida, são totalmente isentos de vontade.
Nossa única chance de vitória é o adensamento do contingente desperto para essa contenda, em que usemos tão somente a elevação espiritual, de preferência sem monitoramento de conjunto algum. Há um contingente enorme de seres portentosos e verdadeiramente humanos, que estão dispostos a nos levar à vitória sem nem mesmo a utilização de um traque de massa, quanto mais de armas nucleares. Só que para isso a única exigência é a de que nos ajudemos.

FrancoAtirador

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A Verdade é que a Hillary venceu a Guerra da Informação:
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(https://www.rt.com/news/information-war-media-us)
(http://ribaroli.blogspot.com.br/2014/03/os-misseis-da-midia-que-criam.html)
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Jocape

Azenha vc está perfeitamente perfeito neste texto. Arrasou!

Caracol

Azenha, bem que o general Eisenhower – também ele um republicano – alertou os americanos em seu discurso de transmissão da presidência do perigo que se avizinhava. Ele disse com todas as letras – e era militar, hein?! – que os americanos, caso permitissem a instalação no país deste complexo industrial militar, perderiam todos os valores pelos quais lutaram desde os “founding fathers”
Deu no que deu.

ana s.

Obrigada, Azenha, por existir. Vc foi o primeiríssimo blogueiro sujo que descobri e que comecei a acompanhar há nove anos atrás. Devo dizer que descobrir os blogs de vcs – vc, Rodrigo Vianna, Nassif etc. – foi fundamental para a manutenção de minha sanidade mental. Por isso e por mais esse texto brilhante aí em cima, agradeço. E lhe desejo um 2016 dos melhores.

FrancoAtirador

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(https://twitter.com/VIOMUNDO)
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anac

Tão simples é só lembrar a História. Difícil coxinha entender. Coxinha não lê, folheia a Veja.

CaRLos

Foi uma bela aula, Azenha. O ansioso blogueiro deve estar satisfeito e sorrindo demasiadamente.

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