Eduardo Galeano: “A Suprema Corte do Uruguai foi indigna”

Tempo de leitura: 4 min


O Uruguai e um retrocesso vergonhoso

Suprema Corte de Justiça do Uruguai declarou inconstitucionais dois artigos de uma lei de 2011 que terminava com a impunidade assegurada aos que praticaram terrorismo de Estado durante a ditadura (1973-1985). Os protestos foram imediatos, inclusive nas ruas. “A Suprema Corte foi indigna”, disse Eduardo Galeano, que participou de uma manifestação. Por Eric Nepomuceno

por Eric Nepomuceno, em Carta Maior

Buenos Aires – No meio da tarde da sexta feira, 22 de março, a Suprema Corte de Justiça do Uruguai conseguiu uma façanha surpreendente e nem um pouco louvável. Por quatro votos a um, declarou inconstitucionais dois artigos de uma lei aprovada pelo Congresso em 2011 e que terminava com a impunidade assegurada aos que praticaram terrorismo de Estado durante a ditadura que durou de 1973 a 1985.

Essa lei, agora declarada inconstitucional, impedia a prescrição dos delitos cometidos por funcionários civis e militares da ditadura, por serem considerados crimes de lesa humanidade.

O falaz argumento dos senhores juízes da Suprema Corte uruguaia seria risível se não fosse indigno. Disseram eles que uma lei penal não pode ser aplicada de forma retroativa. Ou seja, vale uma lei retroativa, de 1986, tempos do então presidente Julio Sanguinetti, anistiando crimes cometidos durante a ditadura, mas não vale a outra lei que não fazia outra coisa além de acatar decisões de cortes internacionais indicando que crimes de lesa humanidade são imprescritíveis.

Trata-se de um retrocesso tão dolorido como absurdo. Em termos práticos, significa que todos os processos em andamento serão arquivados. Para isso, basta que os advogados dos réus recorram à sentença, já que eles teriam sido processados com base em uma lei inconstitucional. Além disso, abre-se a possibilidade de que os militares que já estão presos recorram da sentença que os condenou e voltem, pimpões, à liberdade.

Pelo menos dois desses presos são figuras notórias do breve período (pouco mais de um ano) em que a impunidade esteve suspensa. O coronel Tranquilino Machado foi condenado e preso em junho de 2011, como responsável direto pela morte de um estudante de veterinária em julho de 1973, logo depois do golpe militar de 27 de junho. O policial civil Ricardo Zabala foi mandado para a cadeia em março de 2012, como cúmplice do assassinato do professor e jornalista Julio Castro, figura emblemática da esquerda uruguaia.

Esses dois assassinos podem agora pedir para serem soltos, contando com o firme apoio nascido da decisão da Suprema Corte. Poderão dizer que foram condenados por uma lei inconstitucional.

Os protestos foram imediatos. Ainda na sexta-feira, a senadora pela Frente Ampla Lucia Topolanski, figura histórica da esquerda uruguaia, disse que pretende abrir um julgamento político contra os juízes da Suprema Corte. Ou seja, ela quer pedir o impeachment dos magistrados.

Lucia Topolanski, que amargou anos de prisão e torturas, além de senadora é a primeira-dama do Uruguai. Seu marido se chama Jose Mujica e é o presidente do país.

Na segunda-feira seguinte à decisão, houve uma manifestação silenciosa na Plaza Cagancha, no centro de Montevidéu, diante do prédio da Suprema Corte.

Não houve gritos, palavras de ordem, discursos. Ao longo de uma hora, tempo que durou a manifestação, houve apenas um silêncio estrondoso, intercalado por declarações de alguns manifestantes aos jornalistas. Depois dessa hora, as milhares de pessoas cantaram o hino uruguaio e foram embora.

Um dos manifestantes era o escritor Eduardo Galeano. Ao falar com os jornalistas, ele disse que aprendeu, há muitos anos, que a vida consiste em escolher entre indignos e indignados, e que sempre esteve com os indignados. ‘Acho que a Suprema Corte foi indigna, pratica a injustiça e, além disso, proíbe a memória e castiga a dignidade’, disse.

Houve, claro, os que defenderam esse gigantesco passo atrás dado pelos juízes da Suprema Corte. Um deles foi o ex-presidente Julio Maria Sanguinetti, que governou o Uruguai em dois períodos – entre 1985 e 1990, e depois entre 1995 e 2000. Ao criticar os protestos e defender o retorno da impunidade, ele foi bastante coerente com sua história pessoal. Afinal, foi durante seus governos que se decretaram leis de anistia a torturadores, violadores, seqüestradores e assassinos, e se fez de tudo para impedir qualquer investigação que levasse aos que praticaram terrorismo de Estado.

E assim o Uruguai, que havia conseguido a duras penas avançar na luta pela busca da verdade, o resgate da memória e a aplicação da justiça, retrocede de maneira formidável. Se afasta da Argentina e até mesmo do Chile, e volta a se aproximar do Brasil, onde perambulam, livres, altaneiros e intocáveis, torturadores, seqüestradores, violadores, assassinos.

Uma das vozes que protestaram contra a decisão da Suprema Corte foi a de Macarena Gelman. Neta do poeta argentino Juan Gelman, ela é a própria imagem do horror. Seus pais, Maria Claudia e Marcelo Gelman, foram presos na Argentina. Marcelo foi morto pouco depois. Maria Claudia, grávida, foi levada para o Uruguai. Macarena nasceu num hospital militar. Tinha menos de dois meses de vida quando foi dada de presente a um chefe de polícia. Da mãe, nunca mais se teve notícia.

Gelman, um dos mais respeitados poetas do idioma espanhol do nosso tempo, levou décadas de desespero buscando a neta.

Um dos que prometeram ajuda e depois fez de tudo para impedir que essa busca avançasse foi justamente Sanguinetti. Macarena só soube sua verdadeira identidade aos 21 anos.

Ao conhecer a decisão da Suprema Corte, que de fato assegura impunidade aos assassinos de sua mãe, ela disse que o Uruguai merece outro tipo de Justiça.

No ano passado, e cumprindo uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado uruguaio reconheceu sua responsabilidade no caso de Macarena Gelman, e se comprometeu formalmente a suprimir todos os obstáculos para esclarecer o caso.

Com sua decisão, a Suprema Corte de Justiça – que, como disse Galeano e vale a pena repetir, foi indigna e pratica a injustiça ao assegurar a impunidade – garante que esses obstáculos permanecerão, como uma nódoa pegajosa, sobre o país de José Artigas.

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Comentários

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FrancoAtirador

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A Justiça latinoamericana é cega,

mas, do ponto de vista da Direita,

o Judiciário enxerga muito bem…
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Eduardo Oliveira

O vírus da politização do judiciário vem sendo ativado e até patrocinado pelos que querem democracias frágeis e pratica terrorismo de estado. Vejam como operam e quais são as nações belicosas, que tem interesses imediatos nos desarranjos democráticos, e encontraremos elas associas ao poder econômico com a característica voracidade de engolir a tudo e a todos, a um só tempo como ato final.

Jorge Nogueira Rebolla

Lendo os comentários alguns falam que o supremo tribunal uruguaio foi contra a vontade do povo. Outros partem para a desqualificação simples e rasteira dos juízes. Então pergunto aos senhores comentaristas, ao blogueiro e ao “escritor” galeano e suas veias abertas:
Vocês sabiam que nos dois plebiscitos convocados para a revogação da ley de caducidad os uruguaios votaram NÃO? Então o congresso controlado pela frente ampla foi contra esta dupla decisão soberana dos cidadãos daquele país e fez “democracia pelas próprias mãos”.
A maioria dos uruguaios votou pela vigência e foi desrespeitada pelo Mujica e esposa. Espero que o golpismo dela se tentar cassar os juízes que não fizeram genuflexão vire contra o feiticeiro.

assalariado.

Assim como os donos do capital não tem patria, os supremos da vida, também, não, tem classe. Digo, os tribunais do capital e seus escribas, seja aonde for, é um objeto juridico, um dos quarteis que a burguesia capitalista, usa a bel prazer. Se voltarmos um pouco na história da luta de classes e, quando de sua libertação da burguesia fudalista, ela (a burguesia), não pensou duas vezes em criar um aparato para se protegerem das revoltas populares e das mazelas a qual as elites, nos submetem. Dessa forma, foi necessário a criação de um esconderijo, um cavalo de troia, a qual chamamos de Estado, e o turbinaram, batizaram de “Estado Democratico de Direito”. Esta é a democracia que a elites capitalistas, tem a nos oferecer, não mais do que isso. É só ler um pouco sobre a história das civilizações.

Rumo ao Socialismo.

    assalariado.

    Repeteco/ conserto em meu comentário;

    “Se voltarmos um pouco na luta de classes e, quando de sua libertação da burguesia feudal, ela (a burguesia capitalista), não pensou duas vezes …”

    Abraços.

Fabio

José Mujica que se cuide!

Julio Silveira

O problema e que as cortes de país menores sulamericanos se espelham na brasileira. Esses países não percebem que a causa do Brasil ostentatar contradições que vão de Belgica a India, com um pouquinho do Haiti, deve-se em grande parte ao seu sistema judiciário. Contruido para se manter em moldes cartoriais e propiciar a perpetuação, também de grupos, que lá se fixam por DNA.
O Judiciário brasileiro é um micro cosmo do sistema impérial, com as malandragens camaleonicas criadas pelos espertos para parecer diferente deste.

Eduardo Febbro: A Itália à beira da ingovernabilidade « Viomundo – O que você não vê na mídia

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Mardones

O Golpe só é possível com as canetadas dos indignos magistrados. E o Uruguai imita o pior que o Brasil tem a exportar.

Ceiça Araújo

A Democracia dos povos latino-americanos em risco. O perigo não mora ao lado, mas em cima: nos supremos tribunais, ditos, de justiça.

Pafúncio Brasileiro

Azenha,
Pelo visto, a suprema corte(tudo em minúsculo, mesmo!) do Uruguai, deve ter entre os seus membros, os também assemelhados nossos (Gilmar, Eros, Os Mellos, Fux, Peluso e outros). Os descompassos entre as supremas cortes dos judiciários latino-americanas e a sociedade latino-americana é enorme.

Cairbar Garcia Rodrigues

Essa notícia causou-me ódio, repulsa e tristeza. Imagino como estará se sentindo nosso amigo Galeano.

JORGE

Por certo copiaram algum SUPREMO DE FRANGO POR AÍ.

ricardo silveira

O Congresso Uruguaio deveria pôr os juízes na rua, que sejam indignos no fundo do quintal de suas casas, não na Suprema Corte do país. Seria um bom exemplo para toda a América Latina. Chega de fascistas.

Bertold

Judiciário de cá e agora judiciário de lá. Sempre do lugar onde o senso comum espera haver moralidade, ética e humanidade para se obter justiça é onde esses elementos universais do ideal republicano estão quase sempre ausentes.

PedroAurelioZabaleta

Honduras, Paraguai, Argentina, Brasil, Uruguai, Chile… e em quase todo o mundo, a Suprema Corte é um estamento da direitona ditatorial.
Por que será que eles se auto denominam “supremos”?
Na República, só o Legislativo pode enquadrar o supremo (rei) togado.
Se o Legislativo não o fizer, então, restará ao povo – o único legítimo soberano – fazer Justiça.
Isto é Democracia.

Fabio Passos

A “elite” que apanha nas urnas usa trampas togados para impor seus interesses.

Respeitem a vontade do povo, seus golpistas vagabundos!

Santi

Tá na hora de colocar este pessoal em seu lugar, são testes como este que vai dando espaço para “Ditadura Legal” é o ultimo reduto da Hipocrisia dos antigos donos das colonias e não é coincidencia não deu certo aqui no Brasil (Linxamento do Mensalão) em Honduras (caso Zelaia)e ai vai.Depois de Mandar o famoso PGR para casa sem vencimentos, o Senado deveria dar uma canseira no JB e G Dantas por ferir a constituição.(Todos são inocentes até prova, prova, prova em contrario)

abolicionista

Faz tempo que a direita se encastelou no judiciário. É preciso tomar cuidado, pois os atentados contra nossas jovens democracias latino-americana provavelmente partirão daí.

Wanderson Brum

O caminho do golpe já foi dado, é por via do judiciário que a direita sul-americana buscará travar o avanço das forças progressistas, e óbvio com o apoio estrátegico da mídia.

Ronaldo Curitiba

A onda de progresso social e político que invadia a América do Sul regrediu mais uma vez.

Novamente através do judiciario. É coincidência?

A direita canalha definitivamente trocou a farda pela toga?

Urbano

A do Uruguai e a daquele outro país não estão sozinhas não.

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