Saul Leblon: Autópsia do exportador de jogadores, mastigado pela Alemanha

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A Globo só não escala o time da Alemanha

09/07/2014

A derrota e a disputa pelo imaginário brasileiro

O jogral conservador ganhará decibéis redobrados na tentativa de transformar a humilhação esportiva na metáfora de um Brasil corroído pelo desgoverno.

por Saul Leblon, na Carta Maior

A seleção brasileira foi mastigada  até a alma pelas mandíbulas alemãs nesta 3ª feira, na disputa das semifinais da Copa do Mundo.

Depois de tomar quatro gols em seis minutos no primeiro tempo, a equipe montada por Felipe Scolari  tirou o uniforme e vestiu o manto de um zumbi coletivo.

Morta, arrastou-se  pelo gramado do Mineirão,  de onde saiu carregando o fardo de  uma goleada histórica por 7 x 1.

A derrota atinge a estrutura do futebol brasileiro.

A exemplo  do que ocorreu  na economia nos últimos trinta anos, o futebol viveu um processo de primarização.

Clubes que deveriam ser fontes de talentos, com forte investimento em categorias de base,  tornaram-se exportadores  de brotos verdes.

Ao ensaiarem seu diferencial nos gramados, garotos  já são monetizados e remetidos a clubes do exterior,  que cuidam de completar sua formação.

Alguns,  caso de  David Luiz, só para citar um exemplo, voltam depois consagrados, quase desconhecidos aqui, para compor uma seleção que convive mais tempo no avião do que nos gramados.

Nas cadeias da globalização da bola, o Brasil se rendeu ao papel de fornecedor de matéria-prima.

A dependência financeira dos clubes em relação às cotas de transmissões esportivas dos grandes campeonatos regionais e nacionais é outro torniquete da atrofia que explodiu no Mineirão.

As redes de tevê  ficam com a parte do leão da publicidade milionária das transmissões futebolísticas – fonte de uma das maiores audiências da televisão brasileira.

Donas do caixa, redes como a Globo, fazem gato e sapato dos clubes, obrigando jogadores a uma ciranda insana de tabelas e competições que se sobrepõem em ritmo alucinante, para servirem à conveniência das grades e da receita publicitária.

É praticamente impossível sobreviver fora da ciranda e, dentro dela, impera o imediatismo: não há tempo,  nem recurso,  para investir em formação de atletas nas categorias de base.

A pressão brutal por resultados –- se  não ‘subir’  ou, pior, se  ‘cair’, o clube perde a cota da tevê —  obriga dirigentes à caça insaciável por jogadores tarimbados, em detrimento da revelação própria nos quadros juvenis.

A reiteração entre audiência e cotas premia os clubes maiores criando um círculo de ferro que condena o grosso das demais agremiações à marginalização.

No triênio 2016/19, por exemplo, a Globo prevê pagar  R$ 4,11 bi por direitos de transmissão no Brasil.

Desse total, três clubes, Corinthians, Flamengo e São Paulo ficarão com quase R$ 500 milhões.

O restante será rateado pelas agremiações  do resto do país.

No futebol inglês e no alemão, o critério é mais equânime.

Na Alemanha a verba é  dividida em cotas iguais entre todos os clubes.

Na Inglaterra, 70% do total é dividido em partes iguais, ficando 30% para ‘prêmios’ por classificação e audiência.

Na Alemanha, ademais, há uma rede capilarizada de escolas de futebol, que compõe um sistema nacional  de formação de atletas, revelação de talentos, bem como preparação de técnicos e juízes.

Centros de treinamento de alto nível  focados em categorias de base, como o do São Paulo FC, são raros no Brasil, que viu morrer o celeiro do futebol de várzea sem que se pusesse nada no lugar.

Adestradas na lógica da mão para a boca, as torcidas se transformam em certificadoras dessa engrenagem sôfrega.

Não raro com o uso da violência, cobram  resultados e  contratações  milionárias  dos cartolas, que usam o álibi das uniformizadas para a rendição incondicional ao mercantilismo esportivo.

Ao contrário da equidistância que seus candidatos cobravam de Dilma ainda há pouco, quando o time de Felipão  avançava na classificação, a derrota nacional na Copa do Mundo certamente será explorada pelo conservadorismo.

A disputa pelo imaginário brasileiro ganhará decibéis redobrados a partir de agora, na tentação rastejante de  transformar  a humilhação esportiva  na metáfora de um Brasil corroído pelo ‘desgoverno petista’.

O tiro pode sair pela culatra.

A tese não é apenas oportunista.

Ela é errada.

O que acontece é simplesmente o oposto.

A estrutura do futebol brasileiro, na verdade, está aquém dos avanços sociais e políticos assistidos no país nas últimas décadas.

Há um descompasso entre a sociedade e o gramado.

A caixa preta da Fifa — reafirmada no intercurso entre cambistas e filhos de dirigentes, como se viu em episódio recente no Rio de Janeiro — é apenas a expressão global do sistema autoritário e nada transparente dominante em várias ligas nacionais.

A do Brasil, com a CBF, é um caso superlativo.

Dominada por um punhado de coronéis da bola,  requer um corajoso  processo de oxigenação, equivalente à  reforma  preconizada por Dilma para o sistema político brasileiro.

Trata-se de democratizar os centros de decisão, bem como as legislações relativas à compra e venda de atletas, evitar sua venda precoce ao exterior,  ademais de remodelar os circuitos das competições e libertar o caixa dos clubes da tutela asfixiante das tevês, para que possam, de uma vez por todas, converterem-se, de fato, em  academias de formação e difusão esportiva.

O conjunto atinge diretamente o núcleo duro dos  interesses e valores com os quais o conservadorismo compactua  para voltar ao poder.

A quem desdenha da necessidade de um planejamento nacional em qualquer esfera – da industrialização, ao direcionamento do crédito, passando pelo controle de capitais e do câmbio —  cabe perguntar: se não temos uma política nacional para o futebol, como se pode pleitear uma seleção nacional à altura das  nossas expectativas?

Enquanto ficamos na dependência de um Neymar, o grupo  da Alemanha joga junto há 10 anos.

Pode-se manipular o imaginário da derrota na catarse das próximas horas. Mas será difícil sustentar o oportunismo  se ele for confrontado com uma visão clara e desassombrada das linhas de passagem que podem devolver ao futebol brasileiro o brilho que ele já teve um dia, e ao seu torcedor, a alegria trincada neste  sombrio oito de julho de 2014.

PS do Viomundo: Saul resume brilhantemente o que descrevemos detalhadamente em O Lado Sujo do Futebol. No Brasil, o monopólio de uma única emissora, que repassa direitos a outras de acordo com seus próprios interesses, implica que o destino de todos os clubes do país depende de decisões de bastidores tomadas no Rio de Janeiro. Quem não aparece na TV não arranja patrocínio, nem público, nem dinheiro. Fica praticamente à míngua. Não por acaso os clubes de futebol vão morrendo aos poucos. Nos Estados Unidos, relembremos, as ligas trabalham para promover o equilíbrio entre as equipes, de tal forma que o time de um estado do interior não é necessariamente massacrado pelos times endinheirados de Nova York e da Califórnia.

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Comentários

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Aroeira

RETIFICAÇÃO

Onde eu disse no comentário anterior “Mas eu não acho que a derrota da seleção NÃO vai interferir na eleição de outubro”, leia-se “Mas eu não acho que a derrota da seleção vai interferir na eleição de outubro”.

Aroeira

E SE O NAYMAR E O LEANDRO SILVA TIVESSEM JOGADO CONTRA A ALEMANHA, O QUE TERIA ACONTECIDO

Bem, nós teríamos perdido para a Alemanha de todo o jeito, mas teria sido uma derrota menos acachapante.

A confirmada ausência dos Naymar e Leandro Silva desestabilizou ainda mais os nossos dentes de leite, que já vinham dando sinais de instabilidade emocional diante do assédio de uma mídia escrota que sabia muito bem o que queria: desestabilizar emocionalmente os nossos jogadores para que a Seleção de forma nenhuma fosse a campeã (é a política, estúpido!). Não tínhamos time para sermos campeões, mas o PIG não se descuidou e interferiu de forma contundente na instabilidade emocional dos nossos atletas.

Deu certo, o PIG novamente está de parabéns. Mas eu não acho que a derrota da seleção NÃO vai interferir na eleição de outubro. Não assistimos a nenhum caso de suicídio, ninguém pulou do décimo andar de um prédio, graças a Deus! Vai dar Dilma na cabeça!

PS: Uma coisa me intrigou ontem: o Naymar tinha que ficar de repouso absoluto entre três e quatro semanas, para se recuperar da lesão na coluna; não foi esta a recomendação inicial dos médicos? E ele já apareceu andando ontem na Granja Comary? Ou ele é doido ou a lesão não foi tão séria como foi dito inicialmente aos Brasileiros.

Luís Carlos

Globo e suas cotas de TV desproporcionais privilegiando determinados clubes da região sudeste em detrimento de todo país que Globo acha que é lixo. Se não é de SP ou RJ não existe para a Globo.

Isidoro Guedes

No Brasil poucos clubes tem resistido aos esquemas mercadológicos do dueto Globo – CBF, que tem privilegiado apenas dois clubes de massa no país: o C.R. Flamengo e o S.C. Corinthians Paulista.
Um desses clubes é o querido e aguerrido Santa Cruz F.C. (de Recife – Pernambuco), que para muitos estava fadado a falência ao chegar a série D, mas que se reergueu das cinzas pela força de sua imensa e apaixonada torcida (que virou destaque internacional em diversos jornais esportivos europeus).
No nível local o Santa Cruz também enfrenta os interesses mercadológicos que aqui no estado se reproduzem no dueto TV Globo – Federação Pernambucana, que privilegiam o rival (Sport Club do Recife), que dependesse desse dueto seria o único clube de expressão no estado.
Só que a imensa massa cobra coral do Arruda não permite que isso aconteça. E mesmo remando contra a maré enfrenta essa situação com coragem e galhardia. Dentro e fora de campo.
A despeito de gestões incompetentes, desonestas e perdulárias, que também contribuíram para que o clube quase deixasse de existir, o mais querido de Pernambuco acaba de completar 100 anos revigorado para novas lutas.
É bom lembrar que futebol só é forte com clubes fortes. E sem influências desmedias de escabrosos interesses comerciais (capitaneados por redes de televisão, como a Globo), que colocam clubes e federações sob seu controle.
Se nada for feito o futebol brasileiro regredirá. Clubes tradicionais e de rica história poderão entrar em colapso. E entraremos em uma espiral de declínio que pode ser irreversível e que quase atingiu o nosso vizinho Uruguai, que nos últimos anos até tem experimentado ligeira recuperação. Mas que já não são mais aquela potência futebolística de décadas atrás.
Precisamos agir rápido, rediscutir e reformar o nosso futebol, antes que seja tarde, muito tarde.

sousa santos

Isso serve para o Messi e para toda a seleção da Argentina ???

ibfae

7% de IPCA x 1% de PIB! Esse placar é que deveria incomodar os brasileiros!

    Luís Carlos

    O placar que deveriamoncomodar os brasileiros é o da sonegação de impostos e defendido pela Globo, Veja e demais quanto à desequilbradíssima distribuição de renda, que felizmente tem sido enfrentado pelo governo popular de Dilma e Lula.

    ibfae

    A sonegação de impostos tem que ser combatida pelo governo, só que a receita federal tá cheio de parasita que não quer saber de trabalhar, só querem receber os polpudos salários no final do mês mas trabalhar que é bom nada, por isso temos sonegação! desigualdade se combate com liberalismo e educação e de novo a culpa é do governo que quer ser empresário do petróleo, cuidar dos bancos, da energia, da educação, da saúde, das fronteiras e não cuida de nada de verdade! Quer diminuir as desigualdades – apoie o livre mercado. Veja os exemplos da suiça, austrália e cingapura – são os países com menor desigualdade. Lula e Dilma só estão devolvendo um pouco do que eles já retiraram dos cidadãos, governo não gera riqueza, apenas administra a parte que já retirou da sociedade e administra mal demais. Um abraço e bota a cabeça para funcionar!

Fernando

Globo é concessão pública.

Até onde eu saiba os últimos governos renovaram a dela concessão sem qualquer questionamento, então estão de acordo com tudo isso.

Véio Zuza

Como sempre, brilhante. Tem mais uma questão interessante: jovens jogadores, antes do 20, indo para a Europa passam a ser submetidos ao treinamento deles – que não privilegia exatamente a individualidade. Assim, voltam músculos e cabeça, mas nenhuma criatividade, perdão da cacofonia. Alexandre Pato é um exemplo; lembram do drible de ombro na final do Mundial de Clubes? Agora, só toquezinho prá lá e prá cá. O drible é o grande “diferencial”, a “qualidade agregada”, a “vantagem comparativa” do futebol brasileiro. Só na porrada é que o Brasil não vai ganhar nada… embora seja preciso um pouquinho às vezes…

    Lukas

    Humm, como explicar então a qualidade dos alemães já que todos jogam nestes mesmos times europeus que não privilegiam a criatividade?

Francisco

O pior de tudo é que se o Bom Senso tentar uma necessária greve nacional contra a Rede Globo de televisão (trata-se disso, o resto é conversa) a CBF dá de ombros: os jogadores da Seleção nem jogam no Brasil… Qual prejuízo a CBF teria? Nenhum.

Greve de torcedores, na prática, já há: ninguém mais aparece nos estádios.

Tá feia, a coisa…

Marat

PERFEITO! Parabéns

Luís Carlos

Esse mesmo monopólio da Globo, diminui o futebol fora dos centros como RJ e SP, como se não tivesse vida no futebol em outras cidades do país e como se clubes de outros estados não tivessem torcidas. Alguns que não conhecem cidades e regiões do país que não RJ e SP e o sudeste, acreditam que em Manaus não há torcida para clubes locais, ou o mesmo ocorrendo em Cuaibá. Pior, alguns se espantam por jogos de futebol de campeonatos estaduais ou mesmo do brasileiro e Copa do Brasil em cidades como Fortaleza, Salvador, Recife, São Luiz e Belém terem grandes públicos. Acham que só FlaFlu ou São Paulo e Corínthias que não tem levado sequer vinte mil pessoas ao Morumbi podem ter público. A Globo e sua sócia CBF são responsáveis por esse futebol made exportação, com seus locutores e repórteres que acham o máximo citar jogadores que atuam em clubes europeus em detrimento dos qua jogam no Brasil.

Fabio Passos

A exploração do nosso futebol por estes parasitas da cbf-globo já passou do limite.

cbf-globo estão destruindo nosso futebol… enquanto fazem rios de dinheiro.

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