Fátima Oliveira: Com os ataques ao Bolsa Família, Temer quer resgatar a legião de “meninos do pão velho”

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tem pão velho

A minha recusa a voltar a conviver com o ‘dona, tem pão velho?’

Fátima Oliveira, em O TEMPO

Médica – [email protected] @oliveirafatima_

As crianças, após o jantar, viam TV. Fazia uma temperatura agradável, mas para nós, nordestinos, recém-chegados a Belo Horizonte, era frio. A campainha tocou.

Atendi.

“Dona, tem pão velho?”

Voz de criança. Era a primeira vez na vida que ouvia aquilo. Demorei a processar a indagação. Espantada:

“Pra quê?”

“Pra comer!”

“Espera. Vou descer.”

O porteiro falava alterado. Eram duas crianças, a maior de uns 8 anos e a menor tendo por volta de 6 anos. Vendo-me com um saco de pão, o porteiro, imbuído da maior autoridade dos pequenos poderes: “A senhora não pode dar pão pra esse povo que pede aqui na rua! Tenho ordem do síndico pra não deixar”.

Dei o calado por resposta e entreguei o saquinho com dois pães para o menino maior, e ambos saíram correndo. Encarei o porteiro: “Comunique ao síndico, que sempre que alguém pedir comida em minha casa, se eu tiver, darei!”

No dia seguinte, recebi uma advertência por escrito, na qual constava a resolução dos moradores, definindo a proibição de dar esmolas na portaria para não atrair gente que “colocasse o prédio em risco”.

Era 1988. Rua Oscar Trompowski, no Gutierrez, bairro de classe média tida como alta. Morei lá mais de um ano, e nunca mais minha campainha foi tocada por gente pedindo comida. Depois que saí de lá, soube que deram um spray de pimenta para o porteiro afugentar pedintes!

Mudei-me para a Cidade Jardim, na zona sul de BH. Prédio de apenas três andares, dois apartamentos por andar. Sem porteiro. Na rua Conde de Linhares, onde morei de março de 1989 a junho de 2014. Lá descobri a dura peregrinação cotidiana de adultos e crianças em busca de pão velho ao anoitecer.

Minha filharada aprendeu a comer pão guardando o pedaço que não queria mais para o “menino do pão velho” – na verdade, uma legião deles, que durante anos tocavam a nossa campainha, tão presentes em nossas vidas que viraram dizeres pedagógicos contra o desperdício e até piadas.

Um dia, ouvi Débora, pré-adolescente, dizer: “Isso, estraga Arthur! Olho maior do que a barriga. Enche bem o prato e joga no lixo! Mamãe se mata de trabalhar, e tu jogando comida fora. Quer virar ‘menino do pão velho?’”

Eram tão onipresentes que em Minas, ao se atender a campainha e se reconhecer a voz de uma pessoa amiga, ainda se diz, rindo: “Tem pão velho, não!”

Não sei dizer exatamente quando começou a escassear até praticamente desaparecer a legião de meninos do pão velho, mas não tenho dúvidas de que foi após o governo Lula instituir o Bolsa Família, como bem lembrava Valdete, idealizadora das Meninas de Sinhá, com quem aprendi muito.

Valdete repetia como um mantra: “Meninos na rua agora são poucos, quase nada comparando com antes de Lula: tudo na escola! Menino do pão velho? Virou coisa do passado! Milagre de Lula com o Bolsa Família! Lá em casa, a gente está comendo pão velho à tripa forra. Pudim, doce, na torta de sardinha, bolo salgado de pão com legumes… e almôndegas com pão velho, melhor não há!” Ê, Valdete, saudade! (“‘Tá Caindo Fulô…’ – Memórias de Valdete e das Meninas de Sinhá”, 22.1.2014).

É a legião de “meninos do pão velho” que o governo do interino quer resgatar no Brasil com ataques ao Bolsa Família, com discursos que até tenho vergonha de repetir, mesmo com aspas; e, agora, com a recusa de honrar o reajuste de apenas 9% concedido pela presidente Dilma Rousseff! Coisa de gente sem repertório humanitário.

Indago outra vez: “Por que o Bolsa Família desperta tanto ódio de classe?” (O TEMPO, 11.6.2013). Nem preciso gastar mais meu latim, mas é ódio de classe de quem acha que o Brasil não deve ser um país cuidador de seu povo.

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FrancoAtirador

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RAÍCES DE AMÉRICA (1980)
Há Uma Criança Na Rua
http://www.raicesdeamerica.com/musicas/poema.mp3
http://www.raicesdeamerica.com/portu/cd1.asp
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Hay Un Niño En La Caje
(Armando Tejada Gomez)

Por Mercedes Sosa & Calle 13
https://youtu.be/1xVrHcN7zSA
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Plegaria A Un Labrador (1969)
(Víctor Jara* – Patricio Castillo)

Por Tarancón (1977)
https://youtu.be/3sPeHCkDH4Y

Levántate y mira la montaña
de donde viene el viento, el sol y el agua.
Tú que manejas el curso de los ríos,
tú que sembraste el vuelo de tu alma.

Levántate y mírate las manos
para crecer estréchala a tu hermano.
Juntos iremos unidos en la sangre
hoy es el tiempo que puede ser mañana.

Líbranos de aquel que nos domina
en la miseria.
Tráenos tu reino de justicia
y igualdad.
Sopla como el viento la flor
de la quebrada.
Limpia como el fuego
el cañón de mi fusil.
Hágase por fin tu voluntad
aquí en la tierra.
Danos tu fuerza y tu valor
al combatir.
Sopla como el viento la flor
de la quebrada.
Limpia como el fuego
el cañón de mi fusil.

Levántate y mírate las manos
para crecer estréchala a tu hermano.
Juntos iremos unidos en la sangre
ahora y en la hora de nuestra muerte.
Amén.

(https://youtu.be/jGaFWM0mpfg)

*Víctor, Filho dos Camponeses

Amanda Martínez e Manuel Jara

https://youtu.be/soWUq4w3bXQ

http://joaoantoniosf.blogspot.com.br/2010/12/quem-foi-victor-jara.html
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Deborah Paula

Sou de BH e me lembro também desta época. Trabalhava como babá desde os treze anos, e todo dia tinha alguém na porta da casa que eu trabalhava a pedir alimentos. Creio que se minha mãe contasse com esta ajuda, poderíamos ter nos dedicado ao estudo. Trabalhava o dia todo pr ganhar meio salário e ajudar com a despesa de Casa. Só consegui uma formação depois dos trinta anos quando tive a oportunidade de estudos. Só quem precisa é que sabe a diferença que faz o que parece pouco para alguns significa ter oque comer pr muitos. Bom seria que houvesse uma política de capacitação profissional e oportunidades de empregos pr todos. Acesso a uma educação de qualidade e maior igualdade social, mas já que isto é quase impossível no nosso país o governo tem mais é que fazer algo pelos menos favorecidos, é mais que obrigação e ainda é muito pouco!

Edgar Rocha

Vale à pena repetir a frase apresentada pelo colega Francisco niteroi no texto postado pelo Gerson Carneiro: ” A caridade é a virtude que necessita da injustiça pra sobreviver”. A frase pertence ao Oscar Wilde, ele informa.
É claro, não quero dizer com isto que a solução seja não praticá-la. Tem que praticar, sim. E parabenizo a senhora Fátima Oliveira pelo exemplo dado. Mas, é tão bom não depender da caridade como gesto auto-humanizador. A relação é a mesma entre a medicina e a doença. Uma depende da outra, mas é melhor que não se precise ir ao médico. Infelizmente, a coisa se inverte quando achamos que a desgraça alheia nos enaltece. É a atitude mais hipócrita que o ser humano pode cometer. A própria miséria precisa ser relativizada comparando-a com a de outros. Pior ainda, a oportunidade da “boa ação” justifica ou escamoteia nosso repertório de crueldades.
O sentimento de alegria pela mudança de rumos na vida das crianças de nosso país acalentado pela senhora parece ser diametralmente oposto ao sentimento de superioridade do Luciano Huck em sua visita ao Haiti. Mas, é como diz aquela frase batiiiiiida que a gente aprende na escola logo cedo: “Tudo vale à pena se a alma não é pequena”. Não querendo corrigir o grande Fernando Pessoa, faltou dizer que o inverso também é válido.
Meus respeitos.

Gilberto

Enquanto as crianças da foto provavelmente nasceram já condenadas à privação, o Michelzinho possui patrimônio invejável. Temer tem a oportunidade e o dever cívico e constitucional de melhorar a vida do povo, mas, pelo jeito, a situação tende a piorar. O lema desse governo golpista devia ser: GOLPE E RETROCESSO, jamais copiar o que já existe na bandeira.

Eduardo

Essa aversao aos pobres é doentia, doença de classe.
Doença que nao tem remedio, nao tem cura,
Tem que ser extirpada com lutas de classes.

Àlvares de Souza

…… que foi utilizada pelo povo para nela pendurar os restos mortais do ditador, vítima que foi, naquele mesmo ato festivo, de uma facada certeira que lhe atravessou o coração e causou a sua morte imediata, dada por indivíduo que conseguiu evadir-se com a proteção da multidão presente tomada de alegria incontida.
Diante de fato tão longamente esperado, a plebe rude ali coercitivamente presente, apoderou-se do corpo do ditador odiado, esquartejando-o, e pendurando suas partes no topo da estátua erigida em sua honra, mas logo ela também destruída e feita em escombros. Após o acontecimento funesto, por muitas e longas noites, foi possível a audição nítida dos fogos de artifícios com que, do Oiapoque ao Chuí, o povo brasileiro comemorava a libertação da tirania do golpista usurpador de um governo democrático.

Carlos N Mendes

Wikipedia Brasil, 2016… Verbete ‘Michael Temer’: “…e logo depois referendar o golpe de Estado, o ditador executou as suas mais notáveis obras: a aboliçāo da CLT, que foi substituída pela Emenda 3 (também conhecida como Lei do Pelourinho) e pela Emenda 3-bis (que hoje garante a todos os escravos 1 hora de banho de sol por dia); e o Retorno da Miséria, notável repaginaçāo da sociedade brasileira. Temer conseguiu isso em apenas 9 meses, ao cancelar todas as despesas marxistas que oneravam o Estado (Bolsa-Familia, INSS, SUS, escola pública, ProUni, FIES, auxilio-farmácia, gratuidsde de idosos em transporte público, e outros 32 mais). Em 2024, o maior partido da base aliada, o PROL (Partido dos Revoltados On Line) inaugurou na Praça Eduardo Cunha (antiga Três Poderes) em Brasília uma estátua de 127 metros do ex-presidente, que..”

Paulo Roberto

Essa história me faz lembrar uma colega de faculdade que justificou, lá no final dos anos 70, ser contra a distribuição (socialismo) de parte dos altos lucros das empresas porque já existiam pessoas de boa índole que davam prato de comida e o citado pão velho a quem pedisse nas portas de suas casas e igrejas. Com um raciocínio desse achei que era melhor encerrar o debate com o meu silêncio. Eu era muito jovem e achei que isso era um pensamento isolado e não valia o esforço de uma réplica. Agora vejo que é desejo da classes altas que tudo fique como era antes.

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