Urariano: Faltou História no documentário sobre festival

Tempo de leitura: 3 min

Publicado em 04/08/2010
O ESCURO DE UMA NOITE EM 67

por Urariano Mota, no Direto da Redação

Dizem que o filme “Uma noite em 67”, de Renato Terra e Ricardo Calil, sobre o III Festival de Música Popular Brasileira, agrada a todos, até mesmo aos nascidos antes e depois de 1967.   E mais dizem nos jornais: que o documentário é um passeio pela memória, que é mais que musical, é político, ideológico, uma experiência visceral (!). E assim justificam tal exuberância: a quantidade das imagens reveladas do festival de música de 67, os rostos da platéia, as entrevistas dos bastidores, são e seriam um mel, um triunfo e grande trunfo.

Por isso fui ao cinema. Por isso assisti ao filme com a respiração suspensa e os olhos mais abertos que um personagem na hora do terror, em close de Hitchcock. Mas vi depois que deveria tê-lo visto com os olhos bem fechados, para melhor sentir o mundo que apenas é cantado na memória. Nos limites do espaço da coluna, digo logo.

“Uma noite em 67” é uma noite com expurgos, ou melhor dizendo, é um documentário com um terrível senso de edição, e de tal modo terrível, grosso, desinformado, que a ditadura brasileira passa como uma sombra leve, suave, até engraçada.  Há uma dulcificação do período. Mas o que deseja afinal este colunista? Deseja um filme sobre um festival de música ou um manifesto com passeatas “abaixo a ditadura”? O filme é mu-si-cal, entende? E nada mais natural que, se passeata aparecer, que seja uma contra a guitarra elétrica, como está lá.

O diabo é que o público nascido nos últimos 20 ou 30 anos talvez não saiba que nos tempos dos festivais a música era também uma realização política, e, se me perdoam a palavra, uma concreção, o mais próximo de um protesto e uma arma possível. O seu lugar na vida e no imaginário da juventude era um ato inalienável de combate. E de tal modo que,  gostar da música de Chico ou de Caetano caracterizava uma opção de guerra – Chico ao lado dos subversivos de política de massa, Caetano ao lado da guerrilha urbana. Mas isso, essa informação fundamental sequer é insinuada nas entrevistas, que fazem a divisão entre o “velho” Chico, porque de smoking, e o “novo” Caetano, porque  solto e descabelado.

A edição do filme, ante o mundo riquíssimo de imagens, comete lapsos quase criminosos, ao deixar na boca do produtor Solano Ribeiro, depois de 12 horas de entrevista, a banalidade de que tudo não passava de um programa de televisão. Ah, meus amigos, o amor não passa de duas sementinhas, não é? A tropicália, sem contestação, termina por virar algo como um movimento de muita fantasia e poses e bocas. Mamãe, mamãe, não chore. E agora atinjo o que me parece o  mais lamentável erro de edição: o público, o distinto e insuperável público que aparece apenas com as suas caras no momento da execução das músicas e dos compositores.

Aquele público, para quem não sabe, era a melhor juventude brasileira que houve nos últimos 50 anos. Aquele público, daquele público, saíram os militantes assassinados, os melhores mestres de nossas universidades, os jornalistas mais criativos, gip gip Ivan Lessa, João Antonio e sua arte de chutar tampinhas, os ministros de hoje, a futura presidente Dilma Roussef. Ora, por que não entrevistaram aquelas maravilhosas caras hoje? Por que não se procurou saber delas onde estavam, como viam as músicas do festival de 67? Ah, o filme é de música.

O filme, então, é  ruim? – Pelamordedeus, apesar de tudo, não é não. O documentário é bom como um arquivo. As imagens valem a ida ao cinema. Mas “Uma noite em 67” não se realiza nem como filme nem como jornalismo. O documentário é bom como uma coleção de vídeos raros do YouTube.

Mas todos nós, à margem das estrelas do palco,  que sobrevivemos àqueles malditos anos, que conhecemos o lugar  e a dimensão de nossa música popular na ditadura, saímos do cinema com um vazio no peito, com um sentimento de frustração, porque nem vimos sequer Sidney Miller, a estrada e o violeiro, por exemplo. Saímos todos à espera de outro filme, quem sabe, outra obra, outro romance, outra criação onde a música daqueles anos seja uma paisagem humana referente a todo o mundo. Saímos a cantarolar em silêncio “a vida é assim mesmo, eu fui embora”, como ensinava Torquato Neto. Ser público é desdobrar fibra por fibra da paciência.


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Comentários

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Fernando Trindade

Fui assisti ao filme e concordo 'in totum' com o Urariano. Faltou fazer a relação entre o Festival em si e o momento histórico-politico do País.
E suspeito que não tenha sido por acaso, uma vez que às vezes o filme (as entrevistas atuais) me recordaram a insossa estética da Globo.
De qualquer modo o saldo foi positivo pois proporciona a recuperação da memória e a oportunidade do debate como o que fazemos aqui.

Luiz Carlos Lucena

Na realidade, vi o filme e também sai sentindo falta de algum coisa. Tudo aquilo, mesmo as entrevistas de bastidores, já está com muito mais propriedade no documentário de Silvio Tendler, Utopia e Barbárie, este sim uma radiografia dos anos 60 no que ele tem de mais interessante, incluindo e principalmente a política. Noite em 67 é um filme preguiçoso, interessante como remember mas sem criatividade: uma montagem linear de cinco músicas e comentários a respeito, deixando de lado o ambiente político e esquecendo como diz Azenha, o público. Quem é aquele garoto loiro que aparece mais de uma vez com a mãe na frente do público? Acho que os diretores não se interessaram. E aqueles cinegrafistas que aparecem no palco? Gostaria de ter aquelas imagens na mão – e são em película, não as imagens horríveis que sobraram da TV Record, lembrando que ainda estávamos na era do videotape. Aquela noite merece um outro filme – talvez mais de um.

Jana

Assisti o "Uma noite em 67" e a minha dica é o filme "Dzi Croquetes" – documentário com a temática semelhante mas um recorte histórico bem diferente.

Com certeza um dos documentários mais apaixonantes que assisti !!!

Já fui 2 vezes, pela riqueza de informações e a beleza do trabalho deste grupo, que eu não conhecia.

Ed.

Não vi o filme, mas se é documentário, mostrar o clima em volta faz parte essencial, acho.
Até para entender letras e alegorias..

nilo

Tal como no filme Blue Velvet, era uma vez um mundo de menininhas virgens, onde papai e mamãe amavam-se, sem tropeços, não haviam taras, nem pedofilia, a sexualidade completamente resolvida, repressão, o que isto? Um mundo onde a violência restringia-se apenas às redações, nas letras, nas imagens, na mídia, no Brasil, tudo estava bem.

Walter Decker

Infelizmente no Brasil parece que há um enorme medo de se votar a falar na ditadura e cobrar posições. E pra mim foi essa a grande pisada na bola do governo Lula. Esse governo foi sem dúvida extraordinário. Nunca avançamos tanto, principalmente na questão social. Porém quando se falou em rever a Lei da Anistia e punir os torturadores… todo mundo tirou o corpo fora. Ninguém peitou a turma do contra. Eles espernearam e o governo recuou. Mesmo Lula e Dilma preferiram não tomar posição. Ficaram em cima do muro. E a turma da " ditabranda " venceu. Essa questão foi a única que me incomodou. Então parece que fica aquele negócio de que " O que passou, passou e não se fala mais nisso "…

    Pedro Ayres

    Walter
    Se tomarmos o que acontece ao sul, na Argentina, Uruguai e Chile, veremos que o "ni olvido, ni perdón" é uma construção popular. Uma construção das Madres y Abuelas de Plaza de Mayo, de los H.I.J.O.S. e de muitos lutadores sociais e políticos. Num certo sentido as eleições dos Kirchner (Néstor e Cristina) foram determinadas por essa luta. Uma luta em que se ampliava a democracia e o conceito de cidadania, em substituição ao contribuinte ou consumidor do neoliberalismo e das ditaduras. Se elegermos um Congresso nacionalista e progressista estaremos dando condições para que se faça o que se faz ao sul do nosso continente.

    francisco.latorre

    outro congresso. aí vai.

    ..

Luiz Claudio

Não vi o filme, mas assisti, pela televisão, aos festivais, aos programas de música, ao Qual é a música, do Blota. A música, para nós que assistimos à ditadura, que corremos (não fiz mais que isso) nas passeatas, que nos colocávamos contra a ditadura, que tivemos amigos sumidos ou torturados, a música era nossa voz, nossa expressão, nosso apoio à mudança que viria na política e que veio primeiro na música. Nara, Elis, Chico, Caetano, todos tiveream um significado político, mais que musical. A música era o pretexto, o meio, a mensagem. A música era a esperança, caminhando e cantanto e seguindo a canção. Zé Keti, João do Vale e tantos outros nos davam o único exercício político possível, por meio da música. Tem razão o cronista: os senhores e senhoras de hoje eram os jovens dos festivais e nossa posição política hoje começou com as músicas: "mas plantar pra dividir, isso eu não faço não". Queríamos tudo, queríamos o que ainda não foi feito, a reforma agrária, o acesso de todos à felicidade e à cultura, que ainda não é possível. A música alimentava nosso sonho, canalizava nosso protesto, formava nossa opinião (bendita palavra, de shows e de jornais), nosso argumento, nos dava um pasquim para ler e completar o que queriamos que fosse. Falar só da música é negar nossa formação política, nossa militância (em todos os graus), nosso protesto.

adroaldo

Eu, menino de 9 anos à época, lembro das músicas e de que torcia por "Cantador", de Dori e Nelson Motta, na voz de Elis. Política pra mim não existia, e só depois fui ter uma compreensão de todo o contexto. Era apenas um torcedor. E continuo achando que "Cantador" é, dentre todas, a mais bela canção. Mas hoje compreendo que a competição não era apenas estética, mas também política. O filme ficou no mundo restrito daquele menino de 9 anos.

Claudio Dobbin

No filme, a platéia aparece apenas fazendo barulho, apaixonadamente contra ou a favor de alguma música ou de algum intérprete. Realmente é pouco, acredito que essas pessoas eram mais do que torcedores fanáticos.

Eu tinha 2 anos em 67 e a partir do texto pensei que essa platéia era a geração que iria influenciar a minha geração. Mas na ditadura as melhores cabeças e corações foram silenciados à força. Eu e milhões da minha idade sentimos a falta dessa influência benéfica. Foram silenciados os professores, os jornalistas, até os vizinhos e as pessoas comuns do dia a dia que vemos e ouvimos.

Faltou um ABAIXO A DITADURA no filme.

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