Thiago Moreira: O que está por trás do discurso sobre a falência da escola pública

Tempo de leitura: 6 min
Foto Daniel Castellano/SMCS, via Fotos Públicas

Instituições públicas e interesses privados

Por Thiago Moreira*

Há um certo jogo retórico, muito comum em nossos debates educacionais, que relacionam ideias sobre educação e a sua relação com às instituições escolares de uma maneira muito curiosa.

Nesse jogo, um especialista é capaz de decretar a falência da escola — em geral, a pública — a partir da determinação de sua ineficácia em atingir determinados objetivos educacionais.

O pressuposto é de que há certo descompasso entre um modelo de educação ideal e o que as instituições escolares são capazes de oferecer, uma vez que seriam centradas apenas em transmitir “conteúdos fragmentados” a partir de uma relação hierárquica entre adultos e crianças.

E é aí que às escolas privadas — eufemismo utilizado para denominar os estabelecimentos comerciais de ensino — entram em cena: elas seriam a prova empírica de que uma outra educação é possível.

O fato de que esses estabelecimentos cobrem mensalidades que variam de três a dez salários mínimos é tomado por esses especialistas como mera contingência, e não como uma evidência de que se trata meramente de empresas que oferecem um serviço personnalité àqueles dispostos a pagar por ele.

É exatamente o que faz, por exemplo, Helena Singer, conhecida defensora da inovação em educação, ao falar sobre a escola pós-pandemia:

Chegamos, então, ao pilar mais evidentemente erodido do sistema escolar pela pandemia: a organização dos tempos e espaços. Ela expôs com clareza o caráter massificador da estrutura baseada em salas de aula com 30, 40 ou mais estudantes em prédios que reúnem centenas deles. Agora todos chamam isso de aglomeração. Nada menos propício aos processos educativos. Precisamos de uma estrutura que garanta a interação pessoal educador-estudante, o acompanhamento individualizado das aprendizagens e, ao mesmo tempo, a experiência coletiva da construção do bem comum, do diálogo, da convivência, do cuidado com o outro, da diversidade.

A autora não deixa claro em seu texto, mas o sistema escolar com pilares erodidos refere-se a escola pública; ou alguém imagina que ela reivindica a necessidade de renovação, com ampla participação pública, dos projetos privados da Waldorf, Vera Cruz, Escola da Vila, Santa Cruz, Madre Cabrini, Rio Branco ou Dante Alighieri?

E seu defeito é ser incapaz de favorecer os “processos educativos” por não oferecer um atendimento individualizado, uma interação entre o professor e o estudante, assim mesmo, no singular.

E deixando de atender os indivíduos, seus desejos e interesses, não garantiria “a experiência coletiva de construção do bem comum”.

E esse é o ponto que me interessa aqui: Singer elabora sua crítica à escola pública sem nomeá-la, sem mencionar sequer um exemplo material daquilo a que se refere.

Basta mencionar um sistema de ensino, relacionando-o à massificação, a algo velho, obsoleto, em ruínas, inadequado e que precisa, com urgência, ser reconstruído sob novos pilares, para ser compreendida por seus interlocutores.

Flávio Brayner refere-se a esse recurso retórico em um artigo no qual analisa o papel dos clichês no discurso educacional:

Esse recurso não tem a intenção de facilitar a compreensão, mas sim de estabelecer um pacto de cumplicidade em que, pelo uso de vocabulário ideologicamente familiar e frases de recepção fácil e previsível, estabelece-se uma relação (aliás, muito pouco crítica!) de identidade entre quem produz e quem consome frases e ideias de digestão rápida (o clichê).

Com esse mecanismo, nos diz Brayner, o clichê é apresentado na forma de um conceito que dispensa explicações, pois é compreendido por todos aqueles que compartilham o vocabulário interno de determinado campo do saber.

Cria-se, assim, a impressão de que estamos todos em um terreno comum, num horizonte de significados com o qual nos identificamos logo de saída e que, portanto, dispensa explicações.

E o enunciador determina qual é o terreno no qual jogaremos o jogo das significações das expressões e dos conceitos.

“Em resumo: ele nos instala numa área semântica proposta pelo próprio enunciador.”

Por isso, Singer não precisa dizer o nome do objeto de sua crítica e ele pode aparecer sob a forma dos eufemismos mais comuns: o sistema escolar, a velha escola, o modelo de ensino.

Sempre obsoleta, ultrapassada, descompassada com às demandas do presente. Sempre incapaz de realizar um determinado projeto educacional e passível da intervenção dos diversos atores sociais interessados nessa reconstrução. O caminho é simples:

A urgência de transformação que a pandemia traz deve orientar agora os esforços no sentido de reconhecer, valorizar e multiplicar as escolas que existem sobre outros pilares e de refletir coletivamente sobre os muitos aprendizados da pandemia.

A fórmula apresentada — que não é nova e tampouco foi inventada
por Singer — é simples: há aspectos da escola pública que não favorecem um certo modelo educacional, praticados e valorizados por certos grupos sociais.

Desconhecendo por completo a realidade de nossas escolas, o que resta é reduzir a complexidade do real a alguns elementos genéricos, recorrendo a algumas imagens já batidas da escola.

Estabelecido o acordo de que é preciso reconstruir tudo, basta apresentar o
modelo ideal, representado por determinadas escolas, essas sim, construídas sobre os pilares corretos, que não são massificadas e tampouco se organizam como a escola pública.

E tudo se passa como se a única diferença entre as escolas públicas e privadas, fossem os pilares de sustentação.

Aspectos decisivos, como a forma de contratação e a relação dos profissionais com a instituição, são descartados.

Tampouco se menciona o fato de que o programa de uma escola pública é fruto de muitas disputas e acordos públicos e não um serviço adaptado ao gosto da clientela.

E importa pouco que essas empresas vendam um produto com um verniz democrático, antroposófico, artístico, montessoriano, freireano,
tradicional ou religioso.

As escolas privadas são um modelo de negócio que se adequa ao que sua clientela quer comprar.

Para se ter uma ideia, esses estabelecimentos comerciais de ensino representam menos de 20% das matrículas no país.

Ademais, sua presença se concentra nas áreas urbanas, onde estão localizadas 99% das matrículas nas instituições privadas, de acordo com os dados do Censo Escolar de 2019.

Falar em educação no Brasil, portanto, é falar em escola pública. E é justamente esse “pequeno” detalhe que é contornado pelo jogo de palavras exemplificado pelo texto de Helena Singer.

Ela se permite criticar a educação pública ignorando sua especificidade e
utilizando, para isso, critérios que, embora difundidos, não são uma
unanimidade no campo da educação.

O debate sobre os objetivos da escola ou o caráter da educação pública é objeto de muitas disputas, das quais participam muitos atores sociais.

Singer participa desse debate representando determinados grupos — em sua maioria, escolas privadas, fundações e institutos empresariais

Mas o faz sem deixar claro quem representa ou a que veio.

Mas há algo ainda mais perverso do que a mera propaganda
disfarçada de crítica da escola pública.

Como afirma Brayner, ao procurar compensar o vazio da experiência, o clichê produz um excesso de familiaridade.

Assim, seu uso nos faz crer que o mundo que estamos designando corresponde de fato à sua designação, em que significante e significado não entram em tensão e que, assim, trata-se de um universo conhecido e familiar, quando, na verdade, a única coisa familiar aqui é o próprio léxico.

Ao recorrer ao imaginário comum sobre uma suposta má qualidade inerente à escola pública, Helena Singer faz parecer que sua designação de um sistema escolar em ruínas corresponde à realidade.

Na medida em que a função do clichê é criar essa identificação imediata, estamos dispensados de pensar, impedidos, portanto, de elaborar qualquer resposta que se afaste desse campo semântico comum.

Somos capturados por uma lógica simplista que se apresenta com ares de sofisticação e que pode significar a derrota do pensamento.

Ora, quem vive o cotidiano de uma escola pública sabe bem que não existe varinha de condão que possa solucionar, de uma vez por todos
os desafios enfrentados cotidianamente.

Pois uma escola é mais do que esse sistema formado por um currículo fragmentado e algumas aulas oferecidas a um conjunto de corpos imobilizados na carteiras, tudo trancafiado em um prédio caindo aos pedaços, como supõe Singer.

Antes, como afirma Inés Dussel, a escola é uma montagem provisória de pessoas, artefatos e práticas que não se resume às paredes ou regras de funcionamento, mas se constitui a partir uma rede de complexas relações dos sujeitos entre si e destes com a instituição.

Sua provisoriedade se dá justamente pelo fato de que, neste espaço, nada é
inteiramente definitivo. E ainda há o fato adicional de que que uma escola no Capão Redondo não é idêntica a uma escola no Tucuruvi e ambas não são idênticas a uma escola no Amapá.

Tudo isso fica de fora de quando aceitamos denominar a escola pública como um sistema ordenado para funcionar mal.

Eu não pretendo, com isso, isentar a instituição escolar de críticas. Como profissional da educação que têm se dedicado a refletir sobre a experiência docente, conheço bem os nossos vícios.

A potência da escola, embora favoreça a realização de trabalhos incríveis, também pode cristalizar certos acordos de mediocridade, fazendo com que nos distanciemos dos princípios públicos que animam nossa prática.

Mas não enfrentaremos esses desafios aderindo de forma acrítica a um discurso carregado de jargões e ideias feitas, que transforma nossas experiências múltiplas e plurais em um mero dispositivo retórico pra vender inovação em educação.

*Pedagogo, professor da prefeitura de São Paulo e mestre em educação pela Universidade de São Paulo.

REFERÊNCIAS

SINGER, Helena. Não voltar, recriar a Escola. Disponível aqui.

BRAYNER, Flávio Henrique Albert. O clichê: notas para uma derrota do pensamento. Por uma consciência ingênua. Educ. Real.,  Porto Alegre ,  v. 39, n. 2, p. 557-572.

DUSSEL, Inés. Sobre a precariedade da escola. In: LARROSA,
J. Elogio da escola. Tradução de Fernando Coelho. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 87–111.


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Comentários

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Hino

O autor do artigo precisa urgentemente revisar a regra da crase e ficar atento às redundâncias. Thiago não passaria nas escolas que ele tanto critica…

Magda Maria de Magalhães

Corroborando o artigo, até parece que a escola privada é tão boa assim! Minha irmã, que colocou as filhas para estudar em um educandário privado e religioso, reclamava sempre. Quando as filhas não iam bem, era chamada a conversar com a orientadora, que a aconselhava a pagar aulas particulares para as alunas não ficarem para trás. Concluí-se que a escola não ensinava tanto assim. As escolas privadas que oferecem, realmente, um ensino completo, são as do tipo integral, e, pouquíssimos podem pagar. Só rico mesmo! A classe média consegue pagar este ensino que lhe aconselha a procurar complementos outros que não os da escola.
Em países como a Suiça, estuda-se em uma escola pública mais perto de casa. Todas são boas, integrais. Não precisam os nativos ficarem nesta loucura de procurar altos salários, sempre estressados, deixando a família ao deus dará. A classe média brasileira paga tributos e escola privada, tributos e saúde, tributos e segurança. Paga duas vezes a mesma coisa. Se pensasse melhor estaria lutando por uma escola pública “gratuita” e de boa qualidade. Resultaria também em uma melhor qualidade de vida.

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