Thea Tavares: MC Anarandá, a jovem Guarani-Kaiowá que canta para denunciar a violência contra as mulheres e os povos indígenas; vídeo

Tempo de leitura: 7 min

MC Anarandá: uma voz que salva!

Diante do crime de feminicídio em sua aldeia e do suicídio de amigos que perderam a esperança, jovem Guarani-Kaiowá resolveu cantar o respeito às mulheres e denunciar o preconceito contra os povos indígenas

Por Thea Tavares, especial para o Viomundo

“Ninguém sabe o que eu sofri”…

O verso da música Oceano, de Djavan, serve como luva para contar a história da rapper indígena MC Anarandá, de Amambaí, Mato Grosso do Sul.

Quem vê apenas o seu sorriso doce de menina e o otimismo nos seus cumprimentos “é nós!” e “tamo junto”, expressões típicas de redes sociais, não consegue imaginar as barras que já que enfrentou.

Sofrimento, privação e garra construíram a trajetória artística, humana e de influenciadora digital dessa jovem de apenas 24 anos, da etnia Guarani-Kaiowá.

Mãe biológica de um menino de 4 anos e mãe adotiva de duas sobrinhas adolescentes, ela é professora de língua materna (o idioma guarani) e de diversidade cultural.

Graduanda em Gestão Ambiental pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Anarandá bem que poderia ser sinônimo de superação.

Não tem perrengue nessa vida que não conheça ou não tenha aprendido a enfrentar em tão pouco tempo de existência.

Mas foi justamente a estrada tortuosa que transformou Ana Lúcia Rossate, seu nome em português, em porta-voz dos direitos das mulheres, dos jovens e das crianças indígenas.

Seja para dentro ou para fora das aldeias, seja para a direção que for preciso soltar a voz e denunciar.

“Não tenta trazer as flores”

O videoclipe Feminicídio, com pouco mais de 2.200 curtidas no YouTube e disponível em outros canais, traz uma música de sua autoria, inspirada em história real. 

Um crime que presenciou na aldeia natal, quando ainda era “menor de idade” e que marcou muito sua determinação de não se calar diante da violência.

Na época, acusaram-na de abordar um tema “muito pesado”, que poderia implicar negativamente na imagem de sua cultura.

A rapper não se intimidou e levou adiante o projeto.

“As pessoas precisam ouvir essa mensagem e dar um basta à violência, onde quer que ela aconteça”, diz.

“Todas as madrugadas, a gente ouvia gritos. O marido batia na mulher e ninguém fazia nada, até que ela foi assassinada”, lembra.

Anarandá recorda-se da angústia de não poder denunciar e do quanto lhe incomodava o silêncio dos demais diante daquelas agressões.

“Eu era menor de idade e minha voz não era nada!”, conta.

“É muito doloroso perder pessoas queridas por não denunciar, por silenciar. Para uma criança esse sentimento de impotência é outra forma de agressão. A gente quer fazer algo e não sabe como”, diz.

A vizinha chamava-se Adriana. O marido fugiu. Para não ser pego em flagrante para responder pelo crime de feminicídio, ficou três dias foragido  

Nesse período moradores próximos ao cemitério da aldeia viram-no colocar flores no túmulo da esposa assassinada.

Dessa imagem, saiu o refrão de Feminicídio: “Quando eu partir, não chore; Não tenta trazer as flores”.

A voz da menina cresceu e suas palavras ressoaram no coração de outras mulheres, que identificaram na música de Anarandá histórias conhecidas, parecidas.

Isso levou-as a revisitar suas próprias frustrações e perdas diante de outros crimes decorrentes do silêncio. Também a criar coragem para denunciar a violência contra mulheres nos quatro cantos do país, por onde o videoclipe repercutiu.

“Certa vez, no camarim, depois de uma apresentação, a mãe de uma estudante me procurou e começou a chorar. Quando conseguiu falar, disse: ‘você salvou minha filha através dessa música!’”.

O mesmo aconteceu com duas mulheres em Mato Grosso, após um show em Cuiabá.

Uma havia perdido a filha e a outra, a irmã. Esta última, por muito tempo, sentiu-se culpada por não ter tomado providências antes que o pior acontecesse.

“Ver você denunciar tira um pouco do peso da culpa que carrego; é um tiro certo, como uma flecha que coloca a situação do jeito que a gente precisa ouvir para saber o que deve fazer”, explica-lhe a mulher.

Antes da gravação do vídeo, muitas pessoas tentaram convencê-la a desistir. 

Assustaram-na, dizendo que sofreria perseguição porque a letra era muito pesada, machucava e incomodava demais os homens.

“Agora, que sou ouvida e posso denunciar, eu tenho de continuar. Se não contarmos a nossa história, denunciando o que precisa ser denunciado, quem é que vai fazer?”, argumenta Anarandá.

Antes da própria maternidade, Anarandá assumiu, por meio de ação do Conselho Tutelar, a guarda de duas sobrinhas, vítimas de agressões praticadas pelo padrasto.

Na época, ela já exercia as funções de professora e havia conquistado o sonho da casa própria com o salário que recebia.

Era, assim, a única pessoa próxima às crianças capaz de tal responsabilidade.

Em represália, a mãe das meninas e ex-cunhada ateou fogo na casa de Anarandá, tornando ainda mais desafiadores os obstáculos no caminho da MC.

Esse fato mais as dores do preconceito na faculdade fizeram-na mergulhar em profunda depressão. Desse fundo do poço só emergiu pela determinação de traduzir em música toda aquela indignação.

 “A produção do videoclipe Feminicídio foi que me resgatou da depressão”, revela.

Mudança começa na gente

A voz amplificada de combate à violência de gênero também apontou caminhos para abordar outro drama: o do preconceito étnico-racial.

A trajetória dessa guerreira é marcada também pela perda de dois amigos indígenas, um deles vítima da homofobia.

A força para enfrentar os crimes de ódio e a discriminação se esgotou, eles perderam a esperança e, em meio a esse desespero, suicidaram-se.

As pessoas não fazem ideia das barreiras erguidas pela sociedade em geral contra os povos indígenas, forçando-os muitas vezes a desistir de uma luta de mais de 500 anos.

Para além da sobrevivência imposta pelas desigualdades sociais, essa batalha é travada em nome da “existência”.

Anarandá aprendeu a falar e escrever em português aos 14 anos de idade.

Ainda assim, traçou um caminho de superações cotidianas até a educação superior.

Sempre soube que seria difícil vencer os obstáculos do segundo idioma.

Mas muito mais difíceis e torturantes foram as discriminações étnico-raciais e os crimes de ódio que sofreu, presenciou ou tomou conhecimento.

 “É quando você se dá conta de que está sozinha e só depende de si mesma”, lembra-se.

Para ela, outra situação que causa muita desesperança entre os jovens indígenas é a invasão cultural, muito forte dentro das aldeias. Ela aprofunda frustrações diante das oportunidades de consumo e de lazer que existem na cidade.

“Temos muitas crianças e jovens cheios de talentos. Meu sonho é construir uma escola de música na minha aldeia, resgatar os valores, a autoestima da nossa gente e poder viver e trabalhar com meu povo, com as nossas crianças”, afirma a rapper que, hoje, reside com os filhos em um espaço alugado na periferia de Dourados (MS) e sonha em se tornar referência, uma luz de esperança para as mulheres, crianças e jovens indígenas.

 

 

“Eu me sinto capaz para isso. Olho para trás, pelo que já passei, e me sinto uma mulher guerreira, empoderada”, diz MC Anarandá, transbordando de orgulho e de autoestima.

E do alto de sua juventude sábia, manda um recado: “Para a gente realizar alguma coisa, mudar o que precisa ser mudado, tem de partir da gente. Essa mudança só começa dentro de nós mesmos”.

Essa é forte!

O videoclipe Feminicídio, que projetou MC Anarandá na cena artística, foi produzido graças aos incentivos da Lei Aldir Blanc e o apoio de profissionais que lhe asseguraram toda liberdade criativa e poder de decisão.

A atuação de Anarandá vai além do seu meio.

Ela tem sido convidada por movimentos sociais, coletivos de mulheres e universidades para dar palestras, participar remotamente de seminários e conceder entrevistas com transmissão ao vivo para falar sobre o seu trabalho e contar sua história.

Em função da pandemia de covid-19, ela teve que dar um tempo nos shows, tanto os da carreira solo como os de vocalista da Banda Refletir MC’s.

 

 

Devido às restrições sanitárias, aglomerações e shows presenciais estão proibidos.

Consequentemente, as suas dificuldades aumentaram.

Sabendo dessa situação, espaços que convidam MC Anarandá para lives, webnares e palestras estão lhe pagando cachê ou ajudando na divulgação de sua vaquinha virtual e da sua chave pix: [email protected].

Fora isso, a rapper tem se virado com as aulas particulares do idioma materno.

Anarandá fez questão de gravar uma parte do clipe no centro de Dourados e outra na aldeia Bororo, que fica no mesmo município.

“Para mostrar que é nosso direito, como cidadãos do município, estar em todos os lugares, ocupar os espaços públicos, e não ficarmos somente fechados ou restritos à aldeia”, justifica.

Conciliar a força do rap com o poder da mensagem em favor dos direitos humanos é estabelecer um link com a forma como a música aconteceu na vida de MC Anarandá.

Por volta dos dez anos, ela gostava de brincar com as amigas de fazer shows, nos quais era sempre a líder e vocalista da banda.

Certa vez, no primeiro radinho de pilha que sua mãe comprou, ela ouviu um rap de um grupo de meninas de Brasília (DF), cujo nome era “Atitude Feminina”.

A letra falava da luta das mulheres. Era justamente aquilo que a pequena Guarani-Kaiowá queria fazer também!

Mas as pilhas do radinho acabaram no meio da música.

Somente uma semana depois a mãe pode comprar novas. Por sorte, a música daquelas jovens da capital do Brasil tocava repetidamente.

Após entrevistar a MC Anarandá via plataforma remota, peguei um táxi de aplicativo.

O motorista era bem jovem. Levava no carro um cavaquinho. Enquanto esperava novo chamado de corrida, aproveitava para treinar.

Arrebatada pela história de Anarandá e vendo o instrumento musical do rapaz, comecei a falar sobre ela. Talvez lhe servisse de inspiração.

Mencionei as retaliações, preconceitos, incompreensões, violências que presenciou ou sofreu, as dificuldades para sobrevivência em um país que persegue os povos indígenas, agride as mulheres e empobrece todos pela desigualdade social, cada vez mais acentuada nessa pandemia da covid-19.

Disse-lhe como era impossível perceber o sofrimento já vivido por Anarandá por trás da sua simpatia, amorosidade e do sorriso meigo e cativante. Ele mandou em resposta: “Essa é forte”!

E que ninguém duvide disso. Anarandá é mesmo uma guerreira, que reflete com maestria a força da natureza e da beleza da genuína mulher brasileira.

*Thea Tavares é jornalista em Curitiba (PR).


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