Sandra Bitencourt: Escondida numa suposta neutralidade, mídia corporativa aprova o hino ao racismo do RS

Tempo de leitura: 5 min
Tropeiro negro escravizado conduzindo tropas no Rio Grande do Sul do século 19, em gravura do viajante francês Jean Baptiste Debret. Imagem: Reprodução

Massacre de Porongos. Imagem: TVE/RS

Um hino ao racismo

A supremacia branca reage, em escala global, na busca de manutenção de privilégios

Por Sandra Bitencourt*, em A Terra é Redonda

Os últimos dias têm sido pródigos em manifestações racistas que aparecem em forma de notícias, notas e opiniões em diferentes espaços de mídia, mostrando que a supremacia branca reage, em escala global, na busca de manutenção de privilégios a partir da odiosa ideia de que determinadas pessoas possam ser inferiores em direitos e reconhecimento.

O fato mais recente é a movimentação da extrema direita no parlamento gaúcho para impedir o debate e evitar que um trecho do hino riograndense seja revisto na medida em que sua conotação é ofensiva à parcela significativa da nossa população.

Qual o papel e a posição do jornalismo frente à existência de categorias raciais e da desigualdade racial?

Escondido numa suposta neutralidade, mantém sua contribuição a um sistema que reproduz a exclusão de vozes e as ações afirmativas de igualdade.

É longa, pelo menos no Brasil, essa trajetória do jornalismo profissional e da mídia corporativa. Vamos aos conceitos e aos fatos.

O que parece uma discussão trivial no caso do hino riograndense que se atreve a dizer que “povo que não tem virtude acaba por ser escravo” na verdade revela uma complexa construção que ao longo dos anos protege elites e massacra pessoas.

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O que é que entendemos como raça?

Segundo conceito de Bashir Treiler (2016) raça é um sistema de classificação humana que objetiva classificar humanos em categorias distintas de acordo com uma constelação de traços físicos, cognitivos e culturais, cuja existência se acredita ser hereditária, distintiva e largamente inescapável.

Cientificamente não tem qualquer amparo.

Trata-se de uma construção social em que um grupo dominante cria hierarquias de seres humanos e sistemas de lógica racial que garantem sua própria dominação racial.

É algo tão sofisticado, um construto que envolve várias instâncias e expressões das sociedades, que logra persistir por séculos.

Quando pensamos em avanço, em mecanismos para que as categorias raciais incorporem não brancos, especialmente quando novas pessoas surgem através de processos de conquista e emancipação, o recuo se manifesta.

Apesar da retórica contrária, e da linguagem de liberdade e igualdade em seus documentos fundacionais, os Estados Unidos da América adotaram o racismo desde sua fundação.

Ao longo dos quase 250 anos de existência da nação, as elites brancas, nos Estados Unidos, deliberadamente construíram e sustentaram uma sociedade baseada na supremacia branca. Essa sociedade escravocrata serve de inspiração a muitos.

A Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu na semana passada, que as universidades do país não podem mais levar em consideração a raça como um dos fatores determinantes no ingresso de estudantes.

A resolução termina com uma “ação afirmativa” ou discriminação positiva que há décadas vinha mitigando as desigualdades raciais nas instituições acadêmicas.

Embora a sentença anule especificamente os programas de admissão por raça instituídos nas universidades de Harvard e da Carolina do Norte, seus efeitos se estendem a todo o sistema de ensino superior do país.

No Brasil, a adoção das cotas raciais foi um processo de extrema disputa, com papel vergonhoso de boa parte da imprensa.

Em 2004, o então Ministro da Educação Tarso Genro participou de uma série de audiências pública.

Em audiência no Senado, defendeu: “o governo tem um projeto de reforma profunda da educação brasileira. Queremos chegar a uma educação republicana, democrática, qualificada, moderna, de amplo acesso. As políticas de cotas para negros e indígenas e pessoas oriundas do acesso público ao nível superior são impulsos através dos quais se pode chegar ao nosso objetivo maior”.

A imprensa corporativa brasileira não comungava desse pensamento.

Na tese de doutorado Debate público e opinião da imprensa sobre a política de cotas raciais na Universidade Pública Brasileira, disponível no site Observatório da Comunicação Pública, o autor Ilídio Medina Pereira mostra que além do papel ativo do Estado brasileiro, das universidades e dos movimentos sociais, a imprensa foi um ator muito relevante e atuante.

Em 2010, revela Ilídio Medina Pereira em seu estudo, o jornal O Globo se negou a publicar um anúncio da campanha Afirme-se, em defesa das ações afirmativas, justificando que o anúncio tinha um conteúdo opinativo.

O mesmo jornal trouxe como argumento o princípio do mérito, classificou as ações afirmativas de injustiças e decretou que o ingresso desses alunos representaria uma queda na qualidade das universidades, o que depois se comprovou ser o contrário.

O discurso do jornal em seus editoriais sustenta que as cotas promoveriam o racismo e que os problemas brasileiros eram de ordem social e não racial.

Essa posição é sintetizada no livro Não somos racistas, do diretor de jornalismo da Rede Globo Ali Kamel.

O quadro tradicional de debates sobre a questão racial no Brasil estava mudando a partir da discussão das cotas e a maior parte da imprensa fez seu papel elitista e conservador de tentar bloquear a mudança, usando seu papel privilegiado de fixação de sentidos, para intervir e construir uma ideia de que não há problema de relações raciais no Brasil.

São muitas as tensões e controvérsias para tentar obter uma resposta geral que explique a desigualdade por classes, raça e gênero.

Houve avanços, claro, até porque os resultados das políticas de cotas que coloriram as universidades são extraordinários e repercutiram inclusive na representação nos nossos parlamentos de jovens negros e negras politizados, preparados e representantes legítimos de contingentes populacionais e periféricos tradicionalmente excluídos de tudo.

Após a votação por 38 votos favoráveis e 13 contrários dois projetos que dificultam alterações do hino gaúcho foram aprovados na Assembleia Legislativa.

A escolha da manchete para isso pelo jornal Zero Hora foi: “Aprovados textos que protegem hino do RS”.

Como insisto sempre, a escolha das palavras para um título nunca é aleatória. Ele condensa o sentido principal, o enquadramento dado a determinado fato.

Consigo imaginar outras dezenas de chamadas para essa notícia, inclusive pensar em quem ou o que precisa de proteção frente ao racismo, à desigualdade e à exclusão. Certamente não é o hino.

Na parte de opinião, colunistas de jornal mostraram distintas posições.

Há inclusive uma definição de escravidão bastante peculiar: “condições de trabalho que causam cansaço só de pensar”, mas o fato é que houve distintas opiniões.

Isso produz, no entanto, uma falsa ideia de simetria. Colocamos os dois lados, mantivemos neutralidade e cumprimos nosso papel.

Talvez essa missão devesse ser a de discutir em profundidade tema que hoje é fundamental para a vitalidade da democracia e, portanto, para o interesse público que deve guiar o jornalismo.

Isso porque manifestações racistas são recorrentes no nosso torrão gaúcho.

Há poucos dias, o Sindicato Médico do RS (Simers) lançou nota criticando a possibilidade de a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) criar vagas para assentados do MST no curso de medicina, como já ocorre no curso de medicina veterinária que conquistou a nota máxima em seu desempenho.

O diretor de interior do Simers, Luiz Alberto Grossi, chegou ao cúmulo de dizer o seguinte: “essas pessoas que vêm do campo, vêm não muito qualificadas para fazer medicina”.

“Então, certamente nós vamos desqualificar a profissão concordando com isso. Isso vai gerar precedentes. Não demora, os índios vão querer também fazer”.

A fala pública de entidades médicas é um caso que merece estudo mais aprofundado sobre o imaginário e o papel social dessa categoria.

Também deveria receber holofotes críticos da imprensa. Afinal, jornalismo que não tem virtude…

*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em comunicação e informação pela UFRGS, diretora de comunicação do Instituto Novos Paradigmas (INP).

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Racismo: Movimento sindical repudia omissão do Santander, patrocinador da La Liga

Vini Jr: Ministérios da Igualdade de Brasil e Espanha condenam racismo e cobram medidas imediatas

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Comentários

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Nelson

Compactuo integralmente da opinião dos comentaristas Márcio Gaúcho e do Zé Maria e da comentarista Maria Azambuja.
O Movimento Negro está equivocado e “errou a mão”, sim, ao comprar essa briga. Ao longo da História da humanidade os escravizados não pertenceram somente à etnia negra.

Os estrategistas estadunidenses apostaram na divisão das pessoas ao insuflarem o chamado identitarismo entre os movimentos sociais e a população em geral. Ainda que a contragosto, tenho que reconhecer que a estratégia foi genial, pois o objetivo vem sendo alcançado.

Enquanto o capitalismo nada de braçada, empilhando vitórias, e os interesses do grande capital vão sendo impostos pelo mundo afora quase sem oposição, os movimentos sociais se dispersam, quando não se digladiam, restritos à pauta identitária.

Eduardo Leite cometeu um crime após o outro contra o povo rio-grandense, em seu compromisso de desmantelar por completo o Estado gaúcho, e ainda assim conseguiu se reeleger. E onde está a oposição?

Reempossado no Piratini, Leite continuou a implantação de seu projeto neoliberal extremado. A entrega-doação da companhia de saneamento, a Corsan, a uma megagrupo privado estrangeiro, é um escândalo de corrupção de enormes proporções e trará imensuráveis prejuízos ao povo gaúcho.

Mas, a oposição está organizada e mobilizada para resistir e chamar o povo a ombrear na resistência? Não, o que vemos é uma desmobilização quase que total e os movimentos sociais “gastando suas fichas” muito mais com o identitarismo.

Zé Maria

“Trabalhou na Jovem Pan, Antagonista, CCR e Gazeta do Povo”

A qual bichinho se compara uma C@lunista com esse Currículo?

https://twitter.com/adeltorohr/status/1681720276956991490
https://twitter.com/gamaaires/status/1681722008130707456
https://twitter.com/malucia_p/status/1681714004975026176

Zé Maria

“De todo modo, nem porcos, nem macacos
seriam abjetos quanto a malta de racistas
que nos assola.”

Professora SANDRA BITENCOURT, em A Terra é Redonda

Íntegra:

https://aterraeredonda.com.br/a-malta-de-racistas/

Zé Maria

Do que foi dito é preciso ressaltar
que o Debate sobre o Assunto
é Importante e Democrático.

A Tentativa de Interdição Arbitrária
da Discussão – no Parlamento e na
Imprensa Venal – ao contrário, é
Condenável e Vil.

Maria Ines Azambuja

O movimento negro errou a mão nesta briga. Concordo com Ze Maria e Marcio Gaúcho. O verso não faz referência aos negros. Escravos sempre foram os que perderam guerras, ao longo da história.

Zé Maria

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/0c/Boetie_1.jpg

“O Discurso da Servidão Voluntária ou O Contra Um” (1548)

Etienne de la Boétie
(1º/11/1530-18/8/1563)

https://resistir.info/livros/discurso_da_servidao_voluntaria_etienne_de_la_boetie.pdf

.

Zé Maria

Em 1844, os negros farrapos representavam
quase metade do contingente rebelde farroupilha.

Neste mesmo ano, o então Barão de Caxias teria negociado
com o ‘general’ David Canabarro o Extermínio dos Soldados
Negros numa batalha arranjada, a “Surpresa dos Porongos”
em 14 de novembro de 1844.

Como seria de se esperar a qualquer emboscada, mesmo
sendo valorosos infantes, lanceiros e cavaleiros negros
do pampa farroupilha, tendo sido pegos de surpresa,
e ainda desarmados, foram derrotados pelas tropas
imperiais.

https://periodicos.furg.br/rbhcs/article/view/12035
https://periodicos.furg.br/rbhcs/article/view/12035/8629
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55236674
https://books.google.com.br/books?id=epYCProEsZ0C

Zé Maria

O Termo “Escravo” não é uma Condição Inerente
ao Indivíduo ou Povo Negro que foi “Escravizado”
pelos Brancos Europeus. Parece Óbvio, mas não.

Zé Maria

Apesar da traição do venerado David Canabarro
que provocou o Genocídio dos Lanceiros Negros
numa Emboscada na Chamada Batalha de Porongos,
tem razão o Marcio Gaúcho no comentário abaixo.

Uma das Primeiras Medidas Legais da Proclamada
República de Piratini foi a Abolição da Escravatura,
como um dos Ideais Republicanos.

A primeira composição do Hino Nacional da República
Rio-Grandense destacava a mesma ideia dos discursos
de Bento Gonçalves, de não ceder uma ‘paz’ vergonhosa
da deposição das armas:

“Nobre povo rio-grandense. Povo de heróis, povo bravo!
Conquistaste a independência. Nunca mais serás escravo.”

Em todas as versões do Hino da República Riograndense
o termo “Escravo” se refere à subjugação do Povo do RS
ao Império do Brasil.

“Mas não basta p’ra ser livre
Ser forte, aguerrido e bravo,
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo.”

Essa estrofe de uma das versões do Hino, à época da
Independência do Rio Grande do Sul declarada em 1836,
foi a versão que permaneceu até hoje no Estado do RS.

Não há, pois, referência pejorativa aos Negros Africanos,
mas sim à condição de um Povo, qualquer Povo, que não
se comporta com Virtude, desprezando a própria Dignidade,
para se submeter à Imposição do Poder Estrangeiro Vicioso
e ilegítimo.

marcio gaúcho

Os identitarios estão redondamente enganados a respeito do real significado da expressão “escravo” no Hino Riograndense. No contexto da letra do hino, percebe-se claramente que a palavra não imputa aos negros a sua expressão, mas é de forma generalizada sobre a condição de subserviência a que se dobra aos poderosos.

Zé Maria

A Mídia Venal Rio-Grandense é uma Cópia Borrada e Escarrada
da Globo – notadamente a RBS/ que é Afiliada dessa Rede – e
da Imprensa Empresarial Fasci-Paulista, que produz Factóides.

Zé Maria

É Histórica a Polêmica sobre o Hino Rio-Grandense.

“O HINO REPUBLICANO RIO-GRANDENSE: Versos e Controvérsias”
https://www.eumed.net/rev/caribe/2015/05/hino.html

https://youtu.be/NULh2SgJX6Q
https://www.letras.mus.br/tche-barbaridade/1029364

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