Roberto Bueno: O enorme risco de ser complacente com o fascismo

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CHAMBERLAIN, A PERSONALIDADE TOTALITÁRIA E OS PACTOS IMPOSSÍVEIS

Por Roberto Bueno*

Nebulosos são os dias onde o desespero franqueia livre trânsito a sedutores chamados por tentativas de bloquear o grande mal a qualquer preço, recorrendo a aliados improváveis que dispõem de potencial para manter a sua dimensão destrutiva através de ardilosas alterações de imagem que logo lhes permitam continuar operando.

A história mostrou profundos equívocos de avaliação quanto ao potencial pacificador de que pudesse dispor a formalização de pactos com determinados atores, como se dispusesse de força para dissuadir a personalidade autoritária e estancar a proliferação do mal.

Quando corriam os sombrios dias que ameaçavam a Europa nos tempos precedentes à deflagração da Segunda Grande Guerra Mundial o mundo conheceria o papel de Neville Chamberlain (1869-1940), então Primeiro-Ministro do Reino Unido (maio/1937–maio/1940), e que encarnou a aliança de interesses egoístas mais profundos e a covardia mais aberta.

O resultado material imediato da política externa do Reino Unido para a crítica situação daqueles dias em que a Polônia já havia sido invadida à 1º de setembro de 1939 que, mesmo sem declaração formal de guerra, era uma aberta prática deste gênero que a comunidade internacional optou por consentir.

Tal como supunha Hitler, a omissão internacional lhe concederia tempo e franquearia espaço para expandir o seu projeto totalitário.

A resposta das potências da época a evidente mostra de belicismo foi a assinatura do Tratado de Munique com a Alemanha datado de 29 de setembro de 1938, firmado por Édouard Daladier (França) e Benito Mussolini (Itália), além de Neville Chamberlain (Reino Unido), todos alegadamente estimulados pela insustentável expectativa de que o documento seria barreira suficiente para conter o ímpeto de Hitler.

O Tratado fazia concessões ao regime nazista, e sob os reclamos do Lebensraum, para atendê-lo restava ajustada entre as partes a cessão dos Sudetos que contava com aproximados três milhões de germanófonos e um movimento político aspirante que defendia a anexação pela Alemanha, e como moeda de troca a firma de Hitler no documento a “garantir” que o regime alemão já não apresentaria posteriores reivindicações territoriais.

Quais os interesses em causa, qual o horizonte político do regime, quais as perspectivas de poder e a fiabilidade do interlocutor e seus associados?

A resposta inadequada a estas questões semeia as condições não para evitar o mal presente mas para maximizar extremamente a sua produção futura.

Logo após a Europa e o mundo descobririam o gravíssimo preço a pagar.

Poucos meses após a firma do Tratado de Munique, em 10 de março de 1939, Hitler não hesitou em ordenar a invasão de todo o território da Tchecoslováquia sem que qualquer reação fosse esboçada por seus antigos aliados franceses e ingleses. Estava assim configurado o desrespeito ao Pacto de Munique.

A invasão da Polônia seria o próximo movimento em 1º de setembro de 1939 sem que fosse declarada guerra, data considerada como o início da Segunda Grande Guerra Mundial.

Estes movimentos comprovaram a dimensão do equívoco cometido quando Chamberlain foi recepcionado em seu regresso de Munique após a firma do Tratado com a Alemanha, passando a desfrutar da imagem de herói, permitindo-se então pronunciar o discurso “peace for our time”.

O véu que embala a glória da paz para os dias presentes pode dispor de elasticidade invejável a ponto de conter espaço para a máscara mortuária que recobrirá o rosto de dezenas de milhares ou de milhões no dia de amanhã, quando então a suposta glória receberá a legítima reputação de ignominiosa retração ante a indispensável ação ou, quiçá, covardia. A paz e a guerra podem revelar-se devastadoramente daninhas, e as circunstâncias de sua determinação são a chave para explicar o resultado que se obterá quando seja tomada a decisão por uma ou outra.

A má interpretação das circunstâncias históricas e, sobretudo, a debilidade do cálculo realizado sobre o que implica a minimização de danos de toda ordem, pode ser fatal de sorte que aquilo que aparenta ser minimização de danos termina por potencializar males mediatos.

No mencionado caso histórico europeu ocorreu nada mais do que a capitulação das nações equipadas de políticas com pretensões democráticas e orientadas do ponto de vista econômico pelo capitalismo e que se viram enfrentadas com o regime nazista, estrutura de poder claramente voltada a concretizar um modelo antidemocrático logo elevado ao ápice do totalitarismo.

Em face de seus antecedentes discursivos, dos anúncios e, sobretudo, das práticas adotadas pelo regime de Hitler, deveria ter ficado clara a lição de que não haveria acordo possível com um regime que entronizava a violência aberta como inspiradora para a realização de seus valores, sendo recurso apreciado tanto em matéria de política interna quanto externa.

Os regimes totalitários aguçam sentimentos que os tempos normais conduzem a habitar as profundezas obscuras do humano.

Nos tempos de triunfo do totalitarismo emergem destes recônditos a persona totalitária disposta ao enfrentamento à morte com as instituições da vida libertária, ameaçadora, e suas ordinárias formas de expressão como a democracia representativa.

Corroer as suas instituições, dobrá-las e exterminá-las, juntamente com as suas lideranças e a sua cultura passa a ser o grande ideal que permeia o pensamento totalitário.

Políticas de apaziguamento político como as propostas por Chamberlain não têm valia universal nem atemporal.

A hesitação das instituições democráticas em propor decididamente o enfrentamento total da persona totalitária encarnada nas suas mais expressivas lideranças e optar por sucessivas práticas dilatórias implica alimentar perigosamente a corvos que não costumam respeitar olhos.

A preferência por matizar e adotar políticas conciliatórias não revela prudência, pois seguir tal caminho quando a única possibilidade real de defesa é o enfrentamento aberto equivale a imprudência.

No campo da prudência subsistem momentos de pacto assim como de impacto. Isto informa que a opção pela pactuação pode representar a mais letal dentre as alternativas.

A falta de ousadia para assumir e enfrentar os riscos presentes não os previne ou minimiza, senão que apenas potencializam o que se anuncia como inexorável mal futuro quando o ator com que deparamos é a persona totalitária, e a alta cobrança pode ser apresentada na vida privada dos que apresentem hesitações, tal como ocorreu com o embaixador Joseph Patrick Kennedy – pai de John F. Kennedy – que hesitou até o último momento apoiar o combate a Hitler, e que conheceu de perto a dor pela perda de dois filhos durante a Segunda Grande Guerra Mundial.

No plano dos assuntos públicos é bastante conhecida a profética frase de Churchill sobre Chamberlain, mas parece que, infelizmente, revela ter sido insuficientemente apreendida em suas reais consequências no concernente ao acordo assinado por este em Munique junto a Hitler: “Entre a desonra e a guerra, escolheste a desonra, e terás a guerra”.

É certo que a história não reapresenta as suas circunstâncias, mas o seu avanço tem atores com psicologia que guarda similaridades e assim as dobras do processo histórico reapresentam dilemas.

Quando autoridades e instituições são hoje colocadas frente a difíceis escolhas ao deparar com persona totalitária, até o momento incorrem em idêntico crasso erro de hesitar e postergar enfrentamento.

O espaço cronológico usualmente disponível para conter a ânsia de expansão do grande mal é modesto.

Nos dias correntes é vastamente compartilhado o temor pelo retardo na iminente alteração da figura que encarna a persona totalitária, mas sob o desprezo de que seu combate direto deve vir acompanhado de idêntico esforço quanto a cultura que o encorpa e sustenta.

A persona resiliente encorpa e exala o belo odor da madrugada, de eros e da vida.

A resistência insuflada por eros é bela e duradoura, enquanto tanatos jaz em obscuros espaços. Manolis Glezos, escritor e político grego recentemente falecido, foi notável personalidade que exalou intensamente este notável perfume erótico.

Considerado por muitos como herói nacional em face de ter assumido a resistência contra a invasão nazista Glezos posteriormente também enfrentou a ditadura dos coronéis, autoritários militares gestados em território grego.

Foi durante os conflagrados dias da ocupação alemã na Segunda Grande Guerra Mundial que Glezos notou ser inevitável questionar a todos sobre, afinal, de qual lado estavam, se vinculados à intervenção das forças ocupantes ou, então, se estavam juntos com a resistência em defesa do país. Não era possível mais do que uma delas, e a mera hesitação ou tergiversar explicaria.

Exatamente na desafiadora quadra histórica em que se encontra o Brasil cabe uma vez mais recordar Glezos e repetir o seu questionamento a todos e cada um de nós brasileiros(as) colocados sob a marca opressiva das dezenas de milhares de mortes que as estatísticas oficiais teimam em ocultar que superam as cem mil.

Neste momento transitamos de período crítico e adentramos no território do extermínio massivo coordenado pela persona totalitária e seus patológicos asseclas e coadjuvantes vários com os quais os acordos são impossíveis à luz da experiência histórica encarnada no caso de Chamberlain.

Quando cruzamos o portal da superlativa miséria humana olho para mim mesmo e dirijo a mim a pergunta de Glezos sobre qual o lado em que me encontro.

Enquanto os corpos se contam às dezenas de milhares e são ocultados por um governo genocida assim como também era tentado pelo nazismo ao reduzir milhões a cinzas, eu respondo a mim mesmo que me encontro entre aqueles que, como sugeria o poeta português Guerra Junqueiro, ainda no século XIX, oriento o espírito e os rumos para a defesa da ação libertária, e folgo em afirmar, e sei que não solitariamente, que “Odeio o rei, porque amo a verdade e a minha Pátria” e, sobretudo, à minha gente. A pátria, a verdade e o povo percorrem via inconciliável com rei que ofende e reduz seus súditos à pó sob a lâmina fria da infâmia e da indiferença atroz.

A pulsão de vida (eros) contradiz o rei e sua pulsão de morte (tanatos), duelo não resolvido em desfavor da realeza e os nobres constitutivos de seu campo de força através de perigosas esperanças, improvável futuro e pactos impossíveis, senão pela poderosa emersão do eros em parto realizado pela resoluta união da voz e o forte e decidido braço popular.

*Professor universitário. Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC). Especialista em Direito Constitucional e Ciência Política (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales / Madrid). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito (UnB) (2016-2019). Pós-Doutor em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM).


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Zé Maria

“Se formos ilimitadamente tolerantes com os intolerantes inescrupulosos,
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(Publius Flavius Vegetius)

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