Reginaldo Nasser: Oriente Médio, o fantasma da revolução

Tempo de leitura: 3 min

por Reginaldo Nasser, em Carta Maior

Há um medo crescente alimentado, em grande parte, pelas elites conservadoras do Ocidente e do Oriente de que futuros acontecimentos no Egito poderão trilhar os mesmos caminhos da revolução que aconteceu no Irã em 1979 tais como: elegeu Israel como o grande inimigo, se envolveu em ações antiamericanas no mundo inteiro, privou as mulheres e as minorias dos seus direitos (como se tivessem direitos sob a ditadura de Mubarak). Numa região repleta de exemplo de ações armadas que atemorizam Israel, EUA e aliados, ajudou a criar a imagem de que a melhor forma de combater ativistas islâmicos ( falsos ou verdadeiros) é uma ditadura secular.

No entanto, é importante lembrar que, logo no início da revolução iraniana em 1979, havia intenso apoio das potências capitalistas aos movimentos radicais islâmicos em todo o grande Oriente Médio e Ásia Central com o intuito de provocar aquilo que se convencionou chamar “arco de crise”. O objetivo maior, claro, era atingir as regiões muçulmanas da União Soviética, um regime materialista e ateu, de “vital importância para os EUA cujo centro de gravidade é o Irã”, como afirmou à época Zbigniew Brzezinski (assessor segurança nacional do presidente Carter). O caos político resultante poderia facilitar a incorporação do american way of life nos inimigos de seus inimigos.

De maneira análoga, pode-se dizer que, 32 anos depois, as revoltas populares na Tunísia, no Egito, Argélia e Iêmen podem ser os sinais iniciais de um novo “arco de crise”, mas agora de autênticas revoluções que poderão varrer o Grande Oriente Médio. Diante de tais fatos, tal como todos outros governos norte-americanos anteriores, Obama, inicialmente preferiu ficar ao lado de seu “aliado leal” contra um movimento que levou a fundo a retórica dos direitos humanos presente em seu discurso no Cairo em 2009. Diga-se, é verdade, que esses momentos revelam a essência da decisão na política externa dos EUA que vai muito além da órbita do presidente da república. Apesar da celebração ritual da sociedade civil, autoridades dos EUA (militares, agências de inteligência e lobbies no congresso) sempre mantiveram fortes ligações com regimes repressivos e nunca mantiveram qualquer tipo de contato com os principais grupos oposicionistas.

Não há como negar que a religião é um fundamento essencial de identidade dos povos e um componente crucial da dinâmica de desenvolvimento das sociedades, em geral, e do mundo islâmico de forma particular. Contudo, tal como observou o professor Mark Levin, as fotos estampadas na grande mídia dos EUA podem ajudar-nos a entender melhor as diferenças entre os dois momentos revolucionários.

No início de 1979, as imagens dos jovens eram de exuberância revolucionária, aliadas a um sentimento raiva, supostamente alimentada por um fervor religioso, isso soou tão estranho para um cidadão norte-americano que parecia vir de um outro planeta. Já as fotos da praça Tahrir mostram mulheres e jovens, seculares e religiosos, curvando-se em orações diante dos blindados militares. Uma espécie jihad pacífica que sempre existiu, mas que não tinha os holofotes da mídia para mostrá-la.

Com criatividade e ousadia e mesmo diante das inúmeras provocações e assassinatos mantiveram-se determinados a não usar a violência. Suas táticas foram amplas mobilizações, aproximação com as forças armadas, paralisações de trabalhadores e uso das redes sociais que permitiu que o mundo inteiro fosse capaz de seguir suas batalhas em tempo real. Já a determinação em reprimir e, sobretudo, o desprezo pela forma pacífica e democrática de expressar opiniões, era evidente no início da Revolução Iraniana de 1979 onde vários grupos que defendiam a liberdade de imprensa e os direitos das minorias foram coagidos por verdadeiras gangues armadas.

No Egito, não há nenhuma figura carismática de estatura do aiatolá Khomeini. Ao contrário do clero xiita no Irã, a Irmandade Muçulmana não tem uma base em uma organização clerical. Apesar de contar com setores conservadores, não estão envolvidos em debates sobre o uso do véu ou de outros comportamentos religiosos, mas sim em questões envolvendo corrupção, desemprego, liberdade política e violações dos direitos humanos. Nesse sentido, diferentemente do Irã a possibilidade de mobilizar a maioria dos egípcios em torno de uma agenda de reformas é maior.

Observar o que vai acontecer no Egito nas próximas semanas é como assistir um teatro das sombras em que apenas alguns dos atores estão sob um foco de luz e outros vão saindo aos poucos. Entretanto, podemos antecipar e destacar que islâmico ou secular, o novo governo poderá – espero que sim – recusar a adotar incondicionalmente os métodos adotados pelos EUA e a Europa na guerra contra o terror sem que isso signifique ser partidário de Bin Laden. Por sua vez, não afrontar Israel não significa, por outro lado, necessariamente qualquer tipo de concordância com a política de ocupação dos territórios palestinos. E, finalmente, um novo governo poderá também questionar se para manter a tão aclamada estabilidade política na região é necessário gastar bilhões de dólares em equipamentos militares.

De toda forma restar ver como os militares e as elites dirigentes que agora comandam a transição vão descobrir uma maneira de conviver com este novo cenário. Nesses momentos cruciais sempre é bom lembrar alguém que entendia de revoluções ( Marx) que certa feita fez a seguinte advertência: “As criadas políticas da França estão varrendo a lava ardente da revolução com vassouras velhas, e discutem entre si enquanto executam sua tarefa”.

* Reginaldo Nasser é professor de Relações Internacionais da PUC-SP.


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Comentários

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Bonifa

"… a Irmandade Muçulmana não tem uma base em uma organização clerical. Apesar de contar com setores conservadores, não estão envolvidos em debates sobre o uso do véu ou de outros comportamentos religiosos, mas sim em questões envolvendo corrupção, desemprego, liberdade política e violações dos direitos humanos." O radicalismo comportamental dos revolucionários xiitas do Irã era tão espantoso que não admira haver horrorizado muitos ocidentais. Lembro que havia grandes discussões sobre coisas tais como: É lícito ou não engolir o alimento cavocado de entre os dentes por um palito? E tais dúvidas eram dirimidas pelos aiatolás. Hoje, é notório que o Irã ficou mais "relaxado", para não dizer liberal.

Jairo_Beraldo

Estou assistindo ao Manhattan Connections na GloboNews neste momento, com os caricatos Lucas Mendes, Caio Blinder, Ricardo Amorim e Diogo Mainardi ( o "muy amigo" de PHA), falarem (vomitarem, seria a palavra correta) sobre os acontecimentos e o que se espera no mundo árabe…incrível, mas me lembrei dos piores momentos do casseta & planeta (como se tivessem tido algum dia melhores momentos)…que nojo!!!!

Fabian

Na verdade fico pensando o que há por trás, que não sabemos (ou não sei). Será que não pode ser algo parecido com os caras pintadas que foram cooptados pela Globo para derrubar Collor? Acredito que com certezas há muitos outros interesses ocultos e que não são do povo em si. O que não sei ainda, mas creio que o tempo mostrará.

    Bonifa

    Foi a necessidade que fez a revolução egípcia, Fabian. Necessidade de alimentos, de conforto, de modernização e de liberdade. Os cara-pintadas eram lépidos e fagueiros.

    Mariano S. Silva

    Concordo com o Fabian. Sempre desconfiei de revoltas populares, sem sementes atiradas por um grupo de cima. Coisas com a comuna de Paris, onde o povo se revolta por uma causa comum, como a fome ou a pobreza, mas sem contar com um grupo de conspiradores líderes (revolução) sempre acaba em muito sangue e nenhuma mudança. Baseio minhas convicções em estruturas organizadas de informação. Ninguém me fará acreditar que de um monte de lixo (desordem) emerjam ratinhos, sem que uma rata os tenha parido lá…Da desordem, só emerge a desordem, por mais justa que seja. Nas revoluções há uma estrutura clandestina de poder que compete com a organização estabelecida do estado. Se este é o caso no Egito, muito bem, teremos uma mudança de governo e de estrutura de poder, caso contrário, tudo mudará para ficar como sempre, após muito sangue.

Paulo Villas

Difìcilmente o Egito será um novo Irã , pelo menos no momento. Os EUA costumam aprender com seus êrros e não os cometem duas vêzes. Provàvelmente , cometerão outros êrros , fruto de sua arrogância .

luana

É necessário eleições livres, convocação de uma nova Constituição, se houvesse de fato preocupação com os anseios do povo, conhecendo a máquina, ele mesmo poderia ter pedido um apoio da ONU para que se fizesse a transição, mas preferiu o caminho mais difícil, mais arriscado com militares reacionários, conservadores que certamente terão dificuldade em fazer a transição. Coisa se que se tivesse alguém negociando com as forças, o radicalismo seria minorado, agora corre o risco de radicalismos por todos os lados e a instabilidade ser imprevisível. Pois é, quando não se coloca e não se deseja colocar no lugar do povo dá nisso. Mas de uma coisa sabemos, o Egito e o mundo não será mais o mesmo e não há dúvida de que isto acontecerá em outros lugares.

Luana

Para que não haja golpe de Estado, o povo não deveria sair das ruas. O que aconteceu foi a renúncia, mas há tudo a ser feito. Mubarak ,se tivesse grandeza, sabendo que sua saída era iminente, deveria ter convocado eleições livres, ou seja, deixado o caminho andado para as mudanças que o povo estava pedindo e que são irreversíveis, mas preferiu a empáfia e o pedantismo, o que acabou complicando as coisas.

Oscar

Até agora foi o artigo mais coeso e sensato que li. A mídia vem fazendo um jogo de palavras como se nós estivéssemos em 1979. Fundamentalista ou não, a lógica das potências é manter a situação tudo sob seu controle. Como foi colocado no texto, se fosse preciso apoiar os fundamentalistas para desetabilizar um inimigo maior, a política externa estadunidense não pensaria duas vezes. A Guerra do Afeganistão no período da Guerra Fria deixa isto bem claro.

Pedro

São muitas as questões da revolução egípcia e de todas que virão muito proximamente. Até já estão anunciadas. No entanto, penso que, e não acho que estou dizendo algo original, a questão do trabalho está em primeiro lugar. Isto, aliás, não é novidade. Esta é a parte da história que em todos os tempos se repete. Como a sociedade produz e se reproduz vem sempre em primeiro lugar, quer tome a forma de escravidão ou de trabalho livre. No momento, talvez os trabalhadores tenham que lutar por uma redução radical da jornada de trabalho. Tudo o que já cumpriu dois séculos tem direito a mudar. A jornada de 8 horas, heroicamente conquistada nos Estados Unidos, é uma velha que está impedindo à humanidade de dar passos largos, gigantescos. Se o capitalismo não comporta uma jornada de 4 hs., por exemplo, como já propugnava Franklin, no século 18, lamentamos. A humanidade não pode mais depender de um sistema que não se aguenta mais nas próprias pernas. Foi necessário, como queria Marx, mas deixou de ser. Vamos à luta. A revolução no Egito pode ser considerada como uma redução das dores do parto.

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