Palestino-brasileira a Gil e Caetano: Se quisesse ver o show de vocês, não poderia; para Israel, ameaço sua segurança

Tempo de leitura: 4 min

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Carta de uma palestino-brasileira a Gil e Caetano

 por Soraya Misleh, via e-mail

Queridos Caetano e Gil,

Tenho 46 anos de idade. Como muitos da minha idade e geração, cresci ouvindo suas belas músicas. Mas, infelizmente como poucos da minha idade e geração, também cresci ouvindo histórias de um povo muito generoso, hospitaleiro, que cuidava de sua terra com muito amor, até que um dia foi expulso dali, violentamente. Estou falando do povo palestino, das minhas raízes. Sou brasileira de origem palestina. Meu pai tinha apenas 13 anos de idade quando, juntamente com toda a família e cerca de 800 mil palestinos, foi obrigado a deixar sua terra para um exílio – e refúgio – que já dura 67 anos. Minha mãe também é filha de palestino.

Caetano, é por isso que leio com tristeza sua resposta a Roger Waters, em que afirma: “Eu me lembro que Israel foi um lugar de esperança.”

Israel se fundou sobre um projeto deliberado de limpeza étnica do povo palestino, para constituição de um estado homogêneo, exclusivamente judeu. O que há de lugar de esperança nisso? Até então, na Palestina, vivia uma minoria judaica, além de cristãos, muçulmanos e pessoas não religiosas. Meu pai conta que, quando era criança, judeus, cristãos e muçulmanos brincavam juntos, sem rótulos. Isso não é possível com apartheid. Nunca tivemos qualquer problema com judeus. Somos contra o projeto sionista – não contra judeus. Assim como o mundo se posicionou contra o apartheid na África do Sul e os horrores do Holocausto sob o nazismo, nosso pedido é que se posicionem contra o sionismo. Gil, diferentemente do que afirmou à imprensa, não há nada de democrático em um estado com essa natureza.

Muitas das músicas de vocês, que trazem tanta poesia à nossa vida, servem para embalar também a nostalgia de uma terra para a qual os palestinos expulsos em 1948 estão impedidos de retornar, onde cabia todo mundo. “Felicidade foi se embora, e a saudade no meu peito ainda mora (…) A minha casa fica lá de trás do mundo, onde eu vou em um segundo quando começo a cantar. O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar.”

De lá para cá, Israel expulsou em 1967 mais milhares de palestinos. Hoje são 5 milhões vivendo em campos de refugiados. Ao longo de todo esse período, a situação não tem melhorado. Pelo contrário, com o incremento da colonização, muitos palestinos continuam sendo expulsos de suas terras. Assim, com base no direito internacional e tendo como referência o apartheid que perdurou até os anos 1990 na África do Sul, o Tribunal Russell sobre Palestina declarou em 2011 que Israel é um estado de apartheid institucionalizado (leiam aqui, por favor). Há leis racistas e discriminatórias contra os palestinos, que são desumanizados cotidianamente.

As nossas famílias foram separadas e apenas em 2010 pude pisar pela primeira vez na terra em que meu pai nasceu. Tive a emoção de conhecer o único irmão de meu pai ainda vivo e uma enorme e amorosa quantidade de primos. Tenho, por justiça, lutado para denunciar a ocupação e o apartheid israelenses há anos e estou engajada na campanha de BDS a Israel – um chamado da sociedade civil palestina até que os direitos humanos fundamentais lhe sejam garantidos.

Pela minha origem e por esse crime – o crime de fazer valer o direito à liberdade de expressão e manifestação no Brasil por que vocês tanto lutaram –, não pude mais rever minha família. Em 2011, fui impedida de entrar na Palestina, após um calvário de interrogatórios, revistas e intimidação de mais de dez horas (calvário esse que todos os brasileiros-palestinos passam quando vão visitar seus familiares). Neste ano, em março, participei do Fórum Social Mundial em Túnis, na Tunísia, e construímos, como parte do processo por um mundo mais justo, uma missão humanitária à Palestina ocupada. A missão foi devidamente negociada junto ao governo brasileiro e as autoridades israelenses e mesmo assim, foi negada a entrada a mim e a outro brasileiro, Mohamad El Kadri – dos 16 integrantes, os dois únicos com pais e avôs árabes, dados que Israel pediu a cada um de nós. Como ficou demonstrado, o apartheid começa já na fronteira israelense.

Lembro-me que em 2010 encontrei-me com Nita Freire, viúva do educador Paulo Freire, que me contou que Paulo Freire recusou-se a participar de uma atividade numa universidade israelense que falaria sobre diálogo. Paulo Freire recusou-se por entender que parte dos interlocutores do suposto diálogo não poderia estar presente, diante do apartheid. Disse que estaria à disposição no momento em que de fato essa situação se transformasse.

Como infelizmente ainda não chegou este momento, peço a vocês: cancelem o show em Israel. Os palestinos, fãs da sua música, não poderão estar presentes – eles não podem transitar livremente. Se eu quisesse ver o show de vocês em Tel Aviv, não poderia. Israel afirmou que sou “ameaça a sua segurança” e estou banida de visitar meus familiares e a terra de meus ancestrais por cinco anos. Não sou terrorista, sou um ser humano que luta por justiça.

Gil, ouvi você cantar “Imagine” no Fórum Social Mundial em Túnis, Tunísia, em 2013. Esse outro mundo que você tão bem cantou, trazendo a lembrança de John Lennon, não é possível enquanto aceitarmos como normal o apartheid a que está submetido o povo palestino.

Mantenho a esperança de contar com a mensagem inestimável de vocês ao mundo, por justiça, igualdade e liberdade. E deixo aqui as palavras do poeta palestino Mahmoud Darwish: “Nós, palestinos, sofremos de um mal incurável que se chama esperança. Esperança de libertação e de independência. Esperança de uma vida normal, na qual não seremos nem heróis nem vítimas. Esperança de ver nossas crianças irem à escola sem riscos. Para uma mulher grávida, esperança de dar à luz um bebê vivo, num hospital, e não uma criança morta diante de um posto de controle militar. Esperança de que nossos poetas verão a beleza da cor vermelha nas rosas e não no sangue. Esperança de que esta terra reencontrará seu nome original: terra de amor e de paz. Obrigado por carregar conosco o fardo dessa esperança.”

Obrigada, Gil e Caetano!

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Comentários

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Luiz

Vejam, como desumanizar um povo

https://www.youtube.com/watch?v=GCcV7AtYgwo

Octavio

Eles são apenas artistas!!!! Como atores, que encenam um personagem “bonzinho”, “amigo”, Mas, que muitas vezes não tem nada disso no seu comportamento. Se soubéssemos que a atriz Regina Duarte fosse fazer uma apresentação em Israel? Faríamos o mesmo comentário? Tá na hora de virarmos a página desta história. Caetano e Gil pertencem a direita. Pronto !! E como tal, estão indo para o lugar certo. Onde a direita reside … Eu cresci ouvindo a música deles. Hoje, eu já tenho uma certa aversão a sua música, em razão do que eles se tornaram (ou já eram a muito tempo). Eles não tem mais o significado que tinham antes.

Djijo

Acho que foi Sócrates que comentou que quando se chega a velhice, quem nunca se preocupou com os deuses passam a se preocupar do que será deles depois da morte. Quem sabe esses cantores resolveram se preocupar e estão optando pelo judaísmo, como garantia de que o Deus único, o deles, dê um pedaço de Israel no outro mundo. O problema é que passar por cima do próximo para isso os coloca no outro mundo como entulhos, onde todos passam por cima.

Elias

Ao ler a carta/súplica de Soraya Misleh publicada no Viomundo, pensei, infelizmente Soraya não será atendida. Porque li também a carta/resposta de Caetano a Roger Waters e concluí que Caetano e Gil não estão dispostos a dizer não ao sionismo. Como se não fosse o sionismo um movimento tão atroz quanto o nazismo ou o apartheid. E Caetano ainda acrescenta; “Charbel (Pedro Charbel, jovem que entregou a Caetano a carta de Water) sabe quantos problemas de produção teríamos no caso de cancelamento de um show que já foi anunciado e completamente vendido. Mas eu desistiria alegremente de tudo se estivesse seguro de que essa é a coisa certa a fazer. Devo pensar por mim mesmo, cometer meus próprios erros.” Enfim, Caetano segue Nietzsche ao pé da letra, “só os idiotas não se contradizem”. Quem curte suas canções há décadas (e as de Gil também, óbvio) até aceita seus “erros”, mas nesse caso, aceito com um nó na garganta.

Dimi Éter

…parabéns Soraya, obrigado pelo seu testemunho!

lulipe

Caetano, Gil, Jô, assim, como Chico Buarque, aquele que tece elogios ao governo Dilma sentado na varanda de seu apartamento em Paris, são os melhores exemplos da esquerda-caviar, e se tiver um “incentivo” do governo melhor ainda….

    FrancoAtirador

    .
    .
    Xô! Ctrl C/Ctrl V do Reinaldo Azevedo.
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    .

marialibia

Esperar o que de um tipo como caetano. J

maria carvalho

Caetano nunca me enganou… debaixo daqueles caracóis do passado nada havia. Pena Gil embarcar nessa pelo vil metal. Pensa Gil ! pertences a outra estirpe!

Francisco

Recomendo que a amiga palestina, a quem me solidarizo, ouça a música de Belchior, magicamente cantada por Elis Regina: “Como nossos Pais”.

Perto do fim a letra canta assim:
“(…) Hoje eu sei
Que quem me deu a idéia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por Deus
Contando o vil metal (…)”. Pois é, contando o vil metal…

FrancoAtirador

.
.
Em 7 Semanas entre Julho e Agosto de 2014,
.
morreram na Faixa de Gaza 2.140 Palestinos,
.
dos quais 1.462 Civis (70%), 1/3 destes Crianças.
.
Além de 73 Israelenses, a Maioria Soldados.
.
Investigadores da ONU apontaram, em Relatório,
.
a Ocorrência de Crimes de Guerra, no Conflito.
.
Israel condenou o Relatório das Nações Unidas.
.
O Hamas elogiou. Afinal, quem é Terrorista?
.
(http://www.ebc.com.br/noticias/internacional/2015/06/onu-israel-e-grupos-palestinos-podem-ter-cometido-crimes-de-guerra-em)
(http://www.ebc.com.br/noticias/internacional/2015/06/israel-condena-e-hamas-elogia-relatorio-da-onu-sobre-guerra-na-faixa)

    Mário SF Alves

    Ora, prezado Franco, que pergunta. É o relatório da ONU, claro.

ana s.

Soraya, tá perdendo seu tempo, querida. Acho que vc sabe disso, né? Mas precisou explicitar sua posição diante das respostas que os dois andam dando por aí. Muito bom seu texto. Toda a minha solidariedade à causa palestina.

Nelia

Comovente e verdadeira manifestação. Espero que chegue aos destinatários, embora não creio que fará diferença para eles.
As explicações do Caetano, em carta endereçada ao Roger Waters, são apenas desculpas para que eles possam fazer seu showzim e receber seu dimdim.
Uma pena que artistas que admiro muito musicalmente me decepcionem moralmente.

    Silas Mó Lá Craia

    Nunca vou esquecer a posse do Gil como ministro, era o único com uma caneta bic, ali se via um venturoso cidadão tomar posse e cabo de uma pasta valiosa para nós brasileiros. Fez bonito e com sobra mas Infelizmente acreditou em quem tanto admirava, o qual dele morria de inveja por conta de um cajuíno passado. Debaixo daqueles caracóis vai ficar essa estória para contar num mundo bem distante. Gil só está mal acompanhado e nem tem mais idade para conjecturar sobre isso, eu amo Gil e o outro ficou mero, que pena.

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