O dia em que até a onça dispensou Gerson Carneiro

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Na foto, o garoto que a onça fez questão de não comer está de short com o zipper quebrado, com uma mão na cintura. Sem perceber, copiando a postura do pai, que está à sua esquerda Gerson CarneiroFoto: Arquivo pessoal

LEMBRANÇAS

por Gerson Carneiro, especial para o Viomundo

Quando eu era criança eu gostava de entrar no galinheiro e ficar lá com as galinhas como se uma  fosse.

Passava horas lá dentro. Ciscava e batia os braços encolhidos como se asas fossem.

Também fazia rocinha de milho e feijão no quintal.

E construía casinhas com barro e pedaços de telhas quebrados como se tijolos fossem.

Ou fazia tijolinhos de barro usando a forminha quadrada de caixas de fósforo.

Também brinquei empurrando pneu com dois cabos de vassoura cruzados dentro dele.

Pesquei. Andei de canoa.

Andei pelo mato em um pé de serra.

E numa dessas andanças dei de cara com uma onça sussuarana. Ela me olhou e seguiu caminho.

Mas, eu era tão magrelo, que ela deve ter pensado: “Ah, eu quero é carne.”

Também nessas andanças no pé da serra catava cascas de bala de fuzil. Eram muitas.

Falava-se que havia tido uma guerra entre duas famílias. Os Horácio de Matos contra os Militão Coelho.

Lembro também que eu subia em um pé de umbu cujos galhos invadiam o espaço aéreo de um curral.

E,  lá de cima dos galhos, eu cagava na cabeça do gado. Coisa que foi revitalizada e voltei a fazer.

Saía à tarde para “caçar passarinho”. Eu era ruim de mira e ficava ansioso pra disparar o badogue.

Jamais consegui matar um mas gostava da fantasia de ser caçador de passarinho.

Eu matei lagartixa com flecha que eu fazia. E quase aleijei um porco com uma paulada nas cadeiras dele.

Mas eu me assustei e pensei que Deus iria me castigar. Morri de remorso.

No domingo fui à missa e entrei na fila da hóstia três vezes, tentando me purificar daquela culpa. Fiz primeira comunhão aos dez anos de idade.

Segunda-feira à noite era dia de me juntar à molecada e ir jogar pedra no telhado do cinema.

Era dia de exibição de filme pornô e, óbvio, criança não entrava.

Então, a gente se vingava tirando a concentração de quem estava lá dentro tentando ter orgasmos.

Quando ia para a escola, íamos em bando caminhando.

A diversão era passar na rua do brega. As moças brincavam com a gente e a gente se sentia paquerado.

Também passávamos por uma casa que estava sempre com a janela aberta.

Nos aproximávamos em silêncio e gritávamos na janela e saíamos correndo.

Um dia a dona nos esperou com um balde d’água. Ainda bem que estudávamos à tarde e no sertão da Bahia o sol cuidou de enxugar a farda antes de chegar na escola.

No caminho de volta, no finalzinho da tarde, o solzinho amarelinho caindo para o marrom clarinho e o som dos auto-falantes nos postes anunciando os filmes no cinema e tocando músicas italianas (Roberta/Io che non vivo senza te), que nunca saíram da minha memória.

Eu queria ser o Terence Hil. Não era forte como o Bud Spencer, mas era astuto e engraçado.

Vencia todas com bom humor e inteligência. Tinha um garoto na turma que era fortão e queria ser o Bud.

Mas me embriaga a lembrança de que, em determinada época do ano, a pequena cidade era invadida por uma panapaná de borboletas amarelas.

Atravessavam a cidade em um só sentido. Eu fechava os olhos e abria os braços. Por longo tempo sentia elas se chocando contra meu corpo. O mais puro estado de êxtase que o mundo adulto jamais me proporcionará.

Eita, infância rica!

Eu só chorava, solitário, e tinha medo, quando sentado na calçada na esquina da casa observava os funerais gelados, em silêncio e lentamente, se aproximando do cemitério que ficava também no pé da serra.

O pensamento de saber que um dia vou morrer, um dia serei eu dentro daquele caixão, me apavorava muito.

O filho do prefeito era o único que tinha Atari na cidade. Jamais foi a ele permitido brincar na rua com a molecada. Faleceu há uns 15 anos envolvido com tráfico de drogas.


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Comentários

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Marco

Beleza pura! Senti-me no interior da velha Bahia.

Cleds Fernanda Brandão

Um texto que caberia perfeitamente em prefácio ou primeiro capítulo de um lindo livro infantil…

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