O assalto que expôs os crimes do FBI

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desnudos

De Nova York

Um casal tipicamente norte-americano: quatro filhos, sete netos, casa com quintal, cachorro…

John Raines já tem a cabeça toda branca.

A mulher, Bonnie, com o grisalho mesclado aos fios pretos do cabelo curto, ilumina a sala com um sorriso franco ao fim das revelações mais inacreditáveis. Como se tudo fosse muito normal e corriqueiro.

Essa dupla, hoje idosa, fez parte de um grupo de oito cidadãos norte-americanos que em 1971 decidiu arriscar tudo para acabar com a perseguição e a paranoia impostas pelo FBI a quem discordava da guerra do Vietnã e brigava pela real implementação de direitos iguais para brancos e negros.

Pastor, professor de Religião e Sociedade, John tem convicções de raízes profundas. Imbuído de princípios religiosos e da crença nos alicerces básicos da democracia dos EUA, ele concordou imediatamente quando foi convidado para uma “festa”.

Esse era o código para discutir uma operação de desobediência civil ou a organização de um protesto. Os ativistas tinham certeza que estavam sendo vigiados, tinham os telefones grampeados e informantes sempre às voltas.

William Davidon, importante líder da resistência antiguerra na Filadélfia do fim dos anos 60, propôs que o grupo arrombasse o escritório do FBI para levar todos os documentos e provar, de uma vez por todas, que a organização federal estava agindo fora da lei.

Um dos ativistas, imediatamente, começou a treinar todo tipo de arrombamento. Depois de algumas semanas, se tornou um craque. Bonnie se apresentou como candidata a um estágio, interessada em saber se o FBI tinha vagas para mulheres.

Marcou entrevista e foi ao escritório da polícia federal. Fez de conta que estava perdida lá dentro. Assim, entrou em várias salas, memorizou a distribuição de cômodos, corredores, escadas. Encontrou os arquivos e ainda descobriu uma segunda entrada do prédio que eles não conheciam. Foi a salvação!

Quando a tão esperada luta de boxe entre Muhammad Ali e Joe Frazier foi marcada para o dia 8 de março de 1971, o grupo decidiu. Era hora de partir para a ação já que o guarda do escritório certamente estaria distraído, assistindo a luta, como milhões de pessoas no mundo inteiro. Na hora de arrombar o cadeado da porta principal, o especialista teve problemas.

Não havia meio. Ele já estava quase desistindo quando se lembrou da segunda entrada mencionada por Bonnie. Foi por lá que quatro integrantes do grupo entraram.

Eles passaram uma hora dentro do escritório do FBI. Recolheram, em seis malas grandes, todos os documentos que encontraram e seguiram para o ponto de encontro: uma casa rústica, na zona rural da Filadélfia.

Muito cuidadosos, eles nunca tocaram em nada sem usar luvas. Separaram todos os documentos referentes ao trabalho legal do FBI: investigações de crimes, das atividades da máfia, etc. Esses foram queimados para que não caíssem em mãos erradas. Mas eram apenas 10% do total.

No restante, eles encontraram exatamente o que procuravam. Provas de um programa massivo de vigilância. Agentes infiltrados em todos os pontos de convergência dos afro-americanos: clubes, escolas, igrejas.

Outros contratados como funcionários administrativos das universidades, como carteiros. Longos arquivos sobre a movimentação de todos os ativistas antiguerra mais conhecidos. Escutas telefônicas. Tudo que a lei proibia e todos suspeitavam que estava acontecendo.

A papelada foi foi enviada a três jornalistas. O material que chegou ao New York Times e ao Los Angeles Times imediatamente foi entregue ao FBI. No Washington Post, o envelope foi endereçado a Betty Medsger.

“Eu não sabia se algum outro jornalista tinha recebido os documentos. Mas nunca entreguei o envelope ao FBI porque não sabia se havia ali alguma impressão digital. Tinha que proteger a fonte da informação, mesmo sem saber quem ela era”. Betty fez as primeiras matérias denunciando o COINTELPRO, programa secreto, ilegal, de vigilância da população.

Poucos meses depois do golpe, dois agentes do FBI bateram na porta de John e Bonnie. Ela não estava em casa. Uma sorte, já que circulava, dentro do FBI, um retrato falado da falsa candidata a estágio, suspeita de envolvimento na operação. John recebeu os agentes, criticou as atividades ilegais do FBI que a imprensa estava denunciando e no fim da conversa, ouviu a pergunta: você teve algo que ver com isso? Com a rapidez de raciocínio e a inteligência aguda que ainda exibe hoje, aos 81 anos, ele disse aos agentes que não iria facilitar o trabalho deles responde perguntas. E ponto.

A denúncia produziu exatamente o efeito que os ativistas desejavam. Indignação do público e debate em Washington que formou uma comissão especial no Congresso e baixou novas normas de conduta e limites para a atuação do FBI. Betty Medsger se mudou para a Califórnia. Manteve de longe o contato com o casal da Filadélfia e quase vinte anos depois, apareceu para jantar. Quando estavam à mesa, John chamou a filha mais nova:

– Mary, você precisa conhecer a Betty. Quando nós tínhamos uma porção de documentos do FBI, foi para ela que enviamos tudo –, recordou às gargalhadas. Foi assim que a filha e a jornalista descobriram que o típico casal norte-americano teve coragem e convicção suficientes para arriscar tudo.

“Nós conversamos com o irmão mais velho do John e com os meus pais. Explicamos que estávamos envolvidos em algo que poderia resultar em algum tempo de cadeia. E pedimos que, nesse caso, cuidassem das crianças”, contou Bonnie.

Betty, amiga dos dois há tantos anos, nunca desconfiou de nada. “Fiquei chocada! Não podia acreditar. Estava doida para a Mary sair da sala porque eu tinham mil perguntas prá fazer. Ficamos conversando até umas duas e meia da manhã”.

Não demorou muito e Betty convenceu John e Bonnie que já era hora de vir a público desfazer o segredo. Eles procuraram os demais integrantes do grupo e todos deram o sinal verde.

O livro de Betty, com todos os detalhes da história, além da investigação do FBI a respeito do arrombamento, foi publicado esta semana e um documentário, já pronto, vai circular nos festivais de cinema este ano. Mas a pergunta é inescapável. Como eles tiveram coragem de ir tão longe?

É com muita tranquilidade e firmeza que John me responde.

– Quando o governo não faz o que tem que fazer para proteger a sua liberdade, só resta mesmo o cidadão. Há momentos em que os cidadãos têm que tomar o destino do país nas próprias mãos e foi o que fizemos.

Ele também cita a história dos EUA como o quarto artigo da constituição, escrito em resposta ao comportamento da coroa britânica que revistava quarteirão por quarteirão da colônia em busca de dissidentes e anticolonialistas.

O novo país, recém-estabelecido, proibiu buscas não justificadas, sem mandado judicial e sem causa provável. É uma liberdade individual sagrada. Mas com o arrombamento, o grupo também feriu a lei. Veterano do movimento de direitos civis, da luta contra a segregação, John explicou:

– No Sul nós violamos a lei constantemente. A lei que garantia a segregação racial. A única maneira de barrar um crime que está sendo cometido com auxílio da lei é desrespeitando a lei. É cometendo um crime. E foi essa lição, do movimento de direitos civis, que nós levamos para o movimento pacifista.

A formação religiosa, no caso de John e Bonnie, também pesou. Ele diz que as religiões católica, judaica e muçulmana são todas baseadas na defesa dos desprovidos, na luta contra as injustiças e quem leva realmente a sério essa herança religiosa é chamado a lutar, em seu próprio teagmpo, contra as injustiças do momento.

Por isso ele apoia a ação de Edward Snowden, o ex-agente da Agência Nacional de Segurança (NSA) que roubou documentos e denunciou o amplo programa de escuta e vigilância do governo americano. John diz que essa briga entre por direitos individuais, contra o poder, sempre vai existir:

– A liberdade nunca é algo que te antecede, que está no passado, ou algo que você tem no presente. A liberdade é sempre uma briga à sua frente.

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