Michael Hudson: EUA não gastaram R$ 3 trilhões no Afeganistão, mas com a Raytheon, a Boeing e o fanatismo da Arábia Saudita

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Biden perde sua vitória no Afeganistão ao defender os conselheiros do Estado Profundo

Por Michael Hudson, no Counterpunch

O presidente Biden fez um pacote embrulhado com bandeiras para justificar a retirada forçada dos Estados Unidos do Afeganistão.

Era como se tudo isso estivesse seguindo as próprias intenções de Biden, não uma demonstração das garantias incompetentes da CIA e do Departamento de Estado, da última sexta-feira, de que o Talibã estava a mais de um mês de entrar em Cabul.

Em vez de dizer que o enorme apoio público à substituição dos Estados Unidos pelo Talibã expôs a arrogância incompetente das agências de inteligência — o que por si só teria justificado a decisão de Biden de completar a retirada rapidamente — ele dobrou a defesa e a mitologia do Estado Profundo.

O efeito foi mostrar o quão drásticos são seus próprios equívocos e como ele continuará a defender o aventureirismo.

O que pareceu tentativa de recuperar-se no jogo das relações públicas se transformou numa demonstração da fantasia dos Estados Unidos na Ásia e no Oriente Médio.

Jogando todo o seu peso na propaganda que tem guiado os EUA desde que George W. Bush decidiu invadir, após o 11 de setembro, Biden desperdiçou sua maior chance de estourar os mitos que levaram às suas próprias decisões erradas de confiar nos oficiais militares (e seus contribuintes de campanha).

Sua primeira afirmação foi de que invadimos o Afeganistão para retaliar contra o ataque à América em 11 de setembro. Esta é a mentira fundadora dos EUA. O Afeganistão não nos atacou. A Arábia Saudita, sim.

Biden tentou confundir a questão dizendo que “nós” fomos ao Afeganistão para lidar com (assassinar) Osama Bin Laden — e depois dessa “vitória”, decidimos então permanecer e “construir a democracia”, um eufemismo para criar um Estado cliente.

(Qualquer estado desse tipo é chamado de “democracia”, o que significa simplesmente pró-americano, no vocabulário diplomático de hoje.)

Quase ninguém pergunta como os EUA entraram lá.

Jimmy Carter foi sugado pelo ódio polonês dos russos de seu assessor Brzezinski e criou a Al Qaeda para atuar como legião estrangeira da América, posteriormente expandida para incluir o ISIS e outros exércitos terroristas contra países onde a diplomacia dos EUA busca mudança de regime.

A alternativa de Carter ao comunismo soviético era o fanatismo wahabi, solidificando a aliança da América com a Arábia Saudita.

Carter disse de forma memorável que pelo menos esses muçulmanos acreditavam em Deus, assim como os cristãos.

Mas o exército do fundamentalismo wahabi era patrocinado pela Arábia Saudita, que financiou a Al Qaeda para lutar contra muçulmanos xiitas e, desde o início, contra o governo afegão apoiado pela URSS.

Depois de Carter, George W. Bush e Barack Obama financiaram a Al Qaeda (em grande parte com o ouro saqueado na destruição da Líbia) para lutar pelos EUA, com objetivos geopolíticos e petróleo, no Iraque e na Síria.

O Talibã, por sua vez, lutou contra a Al Quaeda.

O medo, portanto, não é de que eles possam apoiar a legião estrangeira wahabi dos Estados Unidos, mas que façam um acordo com a Rússia, China e Síria para servir como um elo comercial do Irã com o oeste.

O segundo mito de Biden foi culpar a vítima, alegando que o exército afegão não lutaria por “seu país”, apesar de garantias dos EUA de que usariam dinheiro para construir a economia. Ele também afirmou que o exército não lutou, o que ficou claro no fim de semana.

A polícia também não lutou. Ninguém lutou contra o Talibã para “defender seu país”, porque o regime de ocupação dos EUA não era “seu país”.

Repetidas vezes, Biden disse que os Estados Unidos não poderiam salvar um país que não se “defendesse”. Mas o “próprio” era o regime corrupto, que simplesmente embolsava dinheiro dos EUA. Dinheiro de “ajuda”.

A situação é muito parecida com a que foi expressa na velha piada sobre o encontro do Lone Ranger com o indígena, cercados por inimigos.

“O que nós vamos fazer, Tonto?”, perguntou Lone Ranger.

“O que você quer dizer com ‘nós’, homem branco?”.

Essa foi a resposta do exército afegão aos EUA.

Seu objetivo é sobreviver em um novo país, enquanto em Doha a liderança do Talibã negocia com a China, Rússia e até mesmo com os Estados Unidos para alcançar um modus vivendi.

Portanto, tudo o que a mensagem de Biden significou para a maioria dos americanos foi que não perderíamos mais vidas e dinheiro lutando em guerras em defesa de uma população ingrata.

O presidente Biden poderia ter eliminado a culpa dizendo: “Pouco antes do fim de semana, fui informado por meus generais do exército e conselheiros de segurança nacional que levaria meses para o Talibã conquistar o Afeganistão e, certamente, assumir o controle de Cabul, o que supostamente seria uma luta sangrenta.”

Ele poderia ter anunciado que está removendo a liderança incompetente enraizada por muitos anos e criando um grupo de assessores baseado na realidade.

Mas, é claro, ele não poderia fazer isso. O Deep State neoconservador se baseia na falsidade.

Biden não iria explicar que “é óbvio que eu e o Congresso fomos mal informados e que as agências de inteligência não tinham idéia do país no qual estavam trabalhando nas últimas duas décadas”.

Ele poderia ter reconhecido que os afegãos deram as boas-vindas ao Talibã em Cabul sem lutar.

O exército afastou-se e a polícia afastou-se. Parecia haver uma festa comemorando a retirada americana.

Restaurantes e mercados estavam abertos e Cabul parecia estar aproveitando a vida normal — exceto pelo tumulto no aeroporto.

Suponha que Biden tivesse dito o seguinte: “Dada essa aquiescência em apoiar o Talibã, eu estava obviamente correto em retirar as forças de ocupação americanas. Ao contrário do que foi dito ao Congresso e ao Poder Executivo, não houve apoio dos afegãos aos americanos. Agora percebo que, para a população afegã, os funcionários do governo que os Estados Unidos instalaram simplesmente pegaram o dinheiro que demos a eles e colocaram em suas próprias contas bancárias, em vez de pagar o exército, a polícia e outros setores da sociedade civil.”

Em vez disso, Biden falou sobre ter feito quatro viagens ao Afeganistão e o quanto ele conhecia e confiava nos representantes dos EUA. Isso o fez parecer ingênuo.

Até mesmo Donald Trump disse publicamente que não confiava nas informações que recebia e queria gastar dinheiro em casa, nas mãos de seus próprios colaboradores de campanha, em vez de no exterior.

Biden poderia ter dito: “Pelo menos há um lado positivo: não gastaremos mais do que os US $ 3 trilhões que já afundamos lá. Agora podemos nos dar ao luxo de usar o dinheiro para construir infraestrutura nos EUA.”

Mas, em vez disso, o presidente Biden dobrou a aposta no que seus conselheiros neoconservadores disseram, o que repetiram nos canais de notícias da TV o dia todo: o exército afegão se recusou a lutar “por seu país”, ou seja, a força de ocupação apoiada pelos EUA, como se isso fosse realmente autogoverno afegão.

A mídia está mostrando fotos do palácio afegão e um dos escritórios do “senhor da guerra”.

Fiquei surpreso, porque a mobília luxuosa/miserável se parece com a mobília de U$ 12 milhões que Barack Obama tem em sua casa de Martha’s Vineyard.

Na emissora MSNBC, John Brennan avisou Andrea Mitchell ao meio-dia que o Talibã poderia agora apoiar a Al Qaeda em uma nova desestabilização e até mesmo usar o Afeganistão para organizar novos ataques aos Estados Unidos.

A mensagem foi quase palavra por palavra o que os americanos ouviram em 1964: “Se não lutarmos contra os vietcongues em seu país, teremos que lutar contra eles aqui.”

Como se qualquer país tivesse força grande o suficiente para conquistar uma nação industrial no mundo de hoje.

Todo o elenco do esquadrão americano dos chamados “bombardeios humanitários” estava lá, inclusive as organizações de fachada do Partido Democrata, criadas para cooptar as feministas para pedir que o Afeganistão seja bombardeado até que trate melhor as mulheres.

Só podemos imaginar como a imagem de Samantha Power, Madeleine Albright, Hillary Clinton, Susan e Condoleezza Rice, sem falar em Indira Gandhi e Golda Maier, fará com que o Talibã tente criar sua própria geração de mulheres educadas e ambiciosas como estas.

Biden poderia ter se protegido das críticas republicanas lembrando que Donald Trump já havia pedido a retirada do Afeganistão na primavera passada — e agora, em retrospecto, que o Estado Profundo estava errado em aconselhar contra isso, mas Donald estava certo.

Em vez disso, Brennan e os generais trotaram diante das câmeras de TV e criticaram Biden por não prolongar a ocupação até o outono, quando o clima frio impediria o Talibã de lutar.

Brennan afirmou no noticiário de Andrea Mitchell que Biden deveria ter adotado uma manobra trumpiana, a de quebrar uma promessa.

Atraso, atraso, atraso. Essa é sempre a postura dos que se recusam a ver a resistência se acumulando, esperando tomar o que puderem pelo tempo que puderem — “eles” sendo o complexo militar-industrial, os fornecedores de forças mercenárias e outros recipientes do dinheiro que o Sr. Biden curiosamente diz que gastamos “no Afeganistão”.

A realidade é que não foi gasto muito desses U$ 3 trilhões lá. Foi gasto na Raytheon, Boeing e outros fornecedores de hardware militar, nas forças mercenárias e nas contas dos agentes afegãos dos EUA, manobrando para usar o Afeganistão para desestabilizar a Ásia Central no flanco sul da Rússia e no oeste da China.

Os EUA estão agora (20 anos após o momento em que deveriam ter começado) tentando formular um Plano B.

Seus estrategistas provavelmente esperam alcançar no Afeganistão o que ocorreu depois que os americanos deixaram Saigon: um vale-tudo econômico que as empresas norte-americanas podem cooptar, oferecendo oportunidades de negócios.

Por outro lado, há relatos de que o Afeganistão pode processar os Estados Unidos por reparações, pela ocupação ilegal.

Tal afirmação, é claro, abriria as comportas para processos semelhantes do Iraque e da Síria — Haia, na Holanda, já se mostrou um tribunal canguru da OTAN.

Eu esperaria que os novos amigos do Afeganistão na Organização de Cooperação de Xangai apoiassem tal processo em um novo tribunal internacional, nem que seja para bloquear qualquer esperança de empresas dos EUA de conseguir, por meio de alavancagem financeira, o que o Departamento de Estado, a CIA e o Pentágono não conseguiram militarmente.

Em qualquer caso, o tiro de despedida de Biden vai convencer a nova liderança do Afeganistão a solidificar suas negociações com vizinhos regionais próximos, contra qualquer promessa de “restaurar a democracia”.

O mundo já viu o suficiente da mitologia política na qual a política externa de Biden se baseia.



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