Marcelo Zero: Enquanto a águia promove guerra e conflitos, o dragão e o urso, mestres no xadrez, distribuem vacinas contra a covid

Tempo de leitura: 5 min
Biden, Xi Jinping e Putin. Fotos: Wikimedia Commons

Enquanto a águia faz guerra, o dragão joga xadrez

Por Marcelo Zero*

Debaixo da plumagem por vezes branca e columbina de “negociações” e de “formação de alianças”, Biden esconde um feroz “falcão” unilateralista e militarista.

Em sua gestão, a águia norte-americana parece querer continuar a tradição de fazer guerra e promover conflitos.

Mal assumiu o governo e Biden já chamou Putin de assassino, acusou chineses de genocidas, bombardeou a Síria, aumentou pressões sobre o Irã e promete intensificar as sanções contra a Venezuela, entre outras coisas.

Nada de novo, é claro.

Quando assumiu, Obama também prometeu uma reviravolta na política externa dos EUA.

Prometeu negociações diplomáticas, políticas de formação de alianças, multilateralismo, etc., mas foi um dos mais belicosos e intervencionistas dos presidentes recentes.

Em sua gestão, foi instituída a nova doutrina de segurança nacional, que coloca a luta pelo poder mundial contra China, Rússia, Irã e aliados no centro da política externa dos EUA.

Biden tentará desesperadamente implementá-la, remendando os danos feitos pelo protecionista Trump, nas relações com antigos aliados.

Tal política, no entanto, parece destinada ao fracasso, principalmente no que tange à China.

E está destinada ao fracasso porque se trata de uma política dirigida para um mundo e uma China que não existem mais.

Com efeito, no complexo jogo de xadrez da disputa geopolítica mundial, a China está 4 ou 5 lances, pelo menos, à frente dos EUA.

Veja-se o exemplo da Europa.

É vital, para os interesses dos EUA, que o continente europeu seja um aliado dos norte-americanos, na disputa pela Eurásia com China e Rússia. Afinal, como dizia Zbigniew Brzezinski, “No Grande Tabuleiro de Xadrez”, quem controlar a Eurásia, controlará o mundo.

Mas, em 30 dezembro de 2020, pouco antes de Biden assumir, a China firmou com a UE um novo acordo de investimentos, que refunda a relação econômica entre esses parceiros.

Trata-se do Comprehensive Agreement on Investments (“CAI”), o mais ambicioso acordo econômico já feito pela China.

Esse acordo, uma vez totalmente concluído e implementado, mudará substancialmente as relações econômicas entre a União Europeia e o gigante asiático.

Com efeito, tal acordo estabelece novas regras para investimentos, principalmente na área de indústria de transformação e serviços.

Há novas regras sobre transparência, concorrência justa, meio ambiente, relações de trabalho, disputas jurídicas entre Estado e investidores etc.

Porém, o mais importante não é isso. O mais importante é que o CAI acaba com a exigência de realização de joint ventures e de transferência de tecnologia para os investidores europeus, nas áreas de grande interesse da UE, como indústria automotiva, eletroeletrônica, etc.

Ademais, o CAI abre, até certo ponto, o protegido mercado chinês de serviços financeiros, saúde privada, telecomunicações e serviços de nuvem informacional, entre outros, para os investidores europeus.

É uma revolução.

Em especial, a extinção da exigência de joint ventures e de transferência de tecnologia muda tudo.

Mas como a China concordou com isso, já que esse era um dos alicerces do modelo econômico chinês?

Simples. A China não precisa mais de tais pré-condições, na maior parte das atividades econômicas.

De fato, a China desta década é completamente diferente da China do início deste século.

Naquela época, a China era basicamente uma grande plataforma de exportação para produtos concebidos e desenvolvidos nos EUA, Europa e Japão.

Esses países se utilizavam da mão-de-obra muito barata e das legislações mais frouxas da China, especialmente na área ambiental, para aumentar a competividade de suas indústrias, nos grandes mercados do mundo.

A China agregava, entretanto, pouco valor a essa produção, notadamente em produtos de tecnologia mais avançada.

No caso dos Iphones da Apple, por exemplo, a China agregava apenas cerca de US$ 2,00 em um produto cujo custo total era de cerca de U$ 40,00.

Além disso, o mercado interno chinês, ainda muito reduzido e restrito, tinha pouca importância nesse ciclo econômico internacional. O consumo era realizado em outros países.

Essa realidade não existe mais. Em apenas 2 décadas, a China conseguiu se desenvolver, em tempo histórico, cerca de um século. A China, de fato, consegue se desenvolver 50 anos em 5, como quis fazer Juscelino no Brasil.

Em primeiro lugar, a China é, há vários anos, o país que mais produz patentes no mundo, bem como o país que mais investe em pesquisa básica.

Os chineses têm hoje domínio pleno de tecnologias avançadas nas áreas portadoras de futuro, como telecomunicações (5G), transporte, eletroeletrônica, robótica, energias limpas, tecnologia da área espacial, tecnologias de defesa etc.

Atualmente, mais de um quarto das startups do mundo estão na China e são empresas chinesas.

Hoje, há várias companhias chinesas que produzem smartphones até mais competitivos que os da Apple.

Em pouco tempo, essas companhias não precisaram mais de tecnologias importadas. Tudo será concebido, desenvolvido e fabricado lá mesmo.

A China é também, há vários anos, líder mundial em economia digital.

O comércio eletrônico na China respondia, antes da pandemia, por 25% das transações totais. Nos EUA, esse número era de somente 11%. Na Alemanha, economia mais desenvolvida Europa, míseros 9%. Em 2018, a China já respondia, sozinha, por mais de 45% das transações comerciais eletrônicas do mundo.

Assim, a estratégia da exigência de joint venture e de transferência de tecnologia tornou-se obsoleta e desnecessária.

Contudo, as mudanças na economia chinesa são mais profundas.

A partir da crise de 2008, a China passou a investir maciçamente na redução de sua dependência externa e, sobretudo, na dinamização de seu mercado interno, mediante políticas de distribuição de renda.

Pois bem, em 2019, o mercado interno chinês movimentou US$ 6 trilhões, um incremento de 42%, em relação a 2015. Isso mesmo, um aumento de mais de 40%, em apenas 4 anos.

No mesmo ano (2019), o consumo interno nos EUA movimentou um comércio de US$ 6, 2 trilhões, somente um pouco mais que na China. Como o mercado de consumo chinês cresce bem mais que nos EUA, prevê-se que, neste ano, a China substituirá os EUA como o maior mercado de consumo do mundo.

A UE e seus investidores estão de olho nesse mercado, que além de ser, agora, o maior e mais dinâmico do mundo, é o de maior potencial do planeta, pois a China tem quase 1,4 bilhão de habitantes, contra apenas 333 milhões, dos EUA.

Firmas europeias e autoridades da UE estão, compreensivelmente, em êxtase com o CAI. Angela Merkel e Macron já deixaram claro a Biden que não participarão de “ações de contenção” contra a China.

Mas essa nova geoestratégia econômica da China não ficará restrita à UE. Os chineses já iniciaram negociações de acordos semelhantes com o Japão e a Coreia do Sul, entre outros, países-chave para o controle do Leste da Ásia.

Combinados com os maciços investimentos da Nova Rota da Seda, tais acordos tendem a produzir um rearranjo das cadeias produtivas globais, nas quais China ocupará, aos poucos, o lugar dos EUA como polo de inovação e de consumo, além do polo da produção.

Não é algo inexorável, mas a China saiu na frente. Vem preparando o terreno para esse grande salto, desde 2008. Como afirmamos, está uns 5 movimentos adiante, no Grande Tabuleiro de Xadrez.

Ademais, a conjuntura pós-pandemia favorece a China, país pouco afetado pela pandemia, que, ao contrário dos EUA e muitos países europeus, controlou muito bem o coronavírus em seu território.

A própria política generosa da China, assim como da Rússia, na produção e distribuição de vacinas contribui para um maior protagonismo do dragão chinês, no atual cenário.

Em contraste, Biden continua preso ao America First de Trump.

O governo norte-americano é detentor da patente de engenharia molecular que possibilita a produção de vacinas de nova geração, baseadas no RNA mensageiro.

Poderia disponibizá-la com o objetivo de gerar um grande esforço internacional para a produção maciça de imunizantes, como pede Lula. Prefere, contudo, aliar-se às suas “big pharma”, que produzem vacinas a preços exorbitantes.

Ao mesmo tempo, dedica-se a demonizar as vacinas dos BRICS. Defende os interesses do Império em crise, e nada mais.

Promove conflitos e problemas; não soluções globais.

A águia norte-americana e seus falcões governamentais são muito bons em fazer guerra, promover sanções e desestabilizar governos não alinhados com seus interesses, mas o dragão chinês e o urso russo são mestres no xadrez.

E têm paciência, muita paciência.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Darcy Brasil Rodrigues da Silva

A análise de Marcelo Zero é bastante semelhante àquelas que vem postando na mídia digital Pablo Escobar. Todas projetam uma China ultrapassando os EUA em, no máximo, uma década. Porém, não em todos os campos, ou melhor, menos no terreno militar, apesar do extraordinário avanço dos equipamentos militares chineses e russos que, atuando de forma combinada, poderiam derrotar a força bélica dos EUA, assim especulam a maioria dos especialistas, incluindo experts ianques. Entretanto, a análise de Zero, para ser correta, pressupõe que as condições objetivas e subjetivas atualmente existentes se manterão sem serem perturbadas no tempo que a realização das projeções demanda para serem efetivadas. A ultrapassagem dos EUA pela China equivaleria, para a plutocracia financeira ianque, um desastre de proporções infinitamente maiores que a quebra da Bolsa de Nova York em 1929. A Grande Recessão foi um marco histórico para os norte americanos, a inauguração de uma série de acontecimentos que levariam à consolidação e ampliação de sua hegemonia avassaladora a partir do pós Segunda Guera. O momento da sua ultrapassagem pela China seria, ao contrário, o início de uma era de aceleração de sua decadência continuada, com a distância relativa em relação aos chineses se tornando cada vez maior. Uma coisa é olhar pelo retrovisor da história e perceber a aproximação da China, ocupando ainda a 1ª posição no ranking das nações; outra coisa bem diferente, é ser ultrapassado e passar a ver a China se afastando cada vez mais do seu campo visual. Esse ponto de viragem histórica representaria a constatação de uma derrota, ou melhor, de uma bancarrota, que, talvez, a plutocracia financeira ianque tivesse que ver acontecer para acreditar. No momento em que China se colocasse à frente dos EUA em quase todos indicadores, a única vantagem que os EUA ainda poderiam ter sobre a nação chinesa seria o seu aparato de guerra, espalhado pelos quatro cantos do mundo. O que fazer, então, com essa parafernália militar altamente sofisticada, com esse gigantesco capital imobilizado, ocioso, com altíssimo custo de manutenção, quando se deixou de ser a maior potência econômica do mundo, o que significa que a própria máquina de guerra tenderá a se tornar obsoleta face a dos seus concorrentes em pouquíssimo tempo? A Terra possui mais de 7 bilhões de habitantes, isso equivale a cerca de 7 vezes a população de nosso planeta no tempo de Marx, e um pouco menos de 7 vezes, no tempo de Lênin. Eliminar, digamos, 4 a 6 bilhões de seres humanos, transformando o mundo em escombros, seria um investimento com grandes perspectivas de retorno para uma sociedade capitalista enredada em sua fase financeira, que não consegue mais crescer, produzir, a não ser capital fictício, porque, para crescer produtivamente, teria que deixar de ser capitalista , cedendo lugar a outro modo de produção. A opção por deflagrar a temida 3ª Guerra Mundial seria extremamente tentadora para a burguesia financeira ianque, que poderia, a partir da destruição massiva das forças produtivas do planeta, reiniciar o sistema em um ponto que encontraria amplas condições para voltar a crescer virtuosamente, em que passaria a ter novamente um mundo inteiro a reconstruir após a maior guerra de destruição em massa de todos os tempos, e em condições bem melhores até que as que conheceu no pós Segunda Guerra (a não ser que extrapolasse a destruição para o apocalipse pós nuclear que tanto se teme). Como disse o próprio Marcelo Zero, “a águia norte-americana e seus falcões governamentais são muito bons em fazer guerra”. Por isso que análises que tentam projetar a evolução do capitalismo e do sistema de poder mundial, pretendendo que tudo ocorrará como se cumprissem um destino natural, inelutável, não me empolgam. A aproximação do dia em que a China superará os EUA traz embutida uma ameaça à paz mundial. Os que consideram que no mundo de hoje deixaram de existir as condições para um conflito mundial e para as revoluções sociais se equivocam. Por causa dessas convicções equivocadas, passaram a produzir análises e projetos de reformas políticas, econômicas e sociais que acreditam na transformação evolucionista de sociedades capitalistas em sociedades pós-capitalistas, com pouquíssimas baixas e danos, que resultaria de reformas paulatinas no sistema econômico e social, respaldadas por conquistas da hegemonia obtidas em disputas pela opinião pública (o conceito de “opinião pública” substituiu o de luta de classes nessa concepção utópica de luta contra o capitalismo). O descaso é tão grande que a propaganda em defesa da paz, a denúncia de uma ameaça de guerra mundial sequer consta na ordem do dia. O avanço da China sobre as posições dos EUA levará a parte da plutocracia internacional que se filia ao imperialismo ianque a constatar que não lhe resta mais nada a perder, que a única possibilidade para impedir a ultrapassagem da China é uma guerra, que é precisamente aquilo que os EUA “são muito bons em fazer”.

Henrique Martins

Por favor avisem ao Boulos e ao deputado Paulo Pimenta que foi enviado emails urgentes para o emails deles.

Deixe seu comentário

Leia também