Marcelo Zero: Beto foi linchado na frente de testemunhas indiferentes. Quanto vale a vida de um negro no Brasil?

Tempo de leitura: 3 min
Fotos: Reprodução de redes sociais e arquivo pessoal

Manchinha e Beto

Por Marcelo Zero*

Manchinha era uma simpática vira-lata que vivia nas imediações de uma loja do Carrefour, em Osasco.

Abandonada pelo dono, Manchinha vivia no Carrefour há muito.

Dócil e sociável, Manchinha era alimentada por clientes e funcionários. Segundo os que a conheciam, não incomodava ninguém.

Parece, no entanto, que essa não era a opinião da gerência do Carrefour, em Osasco.

No dia 28 de novembro de 2018, um segurança do Carrefour, munido de uma barra de ferro, golpeou Manchinha de forma selvagem.

Vomitando sangue, Manchinha foi encaminhada para o Centro de Zoonoses, mas não resistiu. O Carrefour tinha eliminado o animal que ameaçava lucros.

Houve grande comoção.

O assassinato de Manchinha teve forte repercussão nacional. Saiu em toda a mídia e provocou uma onda de protestos contra o Carrefour.

No dia 8 de dezembro de 2018, uma manifestação levou cerca de 2.000 pessoas à loja de Osasco, que teve de fechar as portas durante o ato.

Não ficou só nisso. Houve consequências práticas e jurídicas.

Além de sofrer com boicotes, o Carrefour foi obrigado, pelo Ministério Público de São Paulo a depositar R$ 1 milhão de reais em um fundo criado pelo município de Osasco para a proteção de animais.

Desse modo, a vida da cadela Manchinha foi monetizada em R$ 1 milhão de reais.

Se a vida de um cachorro vale R$ 1 milhão, quanto vale a vida de um homem negro?

A pergunta é pertinente.

Dois anos após o assassinato de Manchinha, João Alberto Silveira Freitas, mais conhecido como Beto, homem negro de 40 anos, foi assassinado, na véspera do Dia Nacional da Consciência Negra, por um segurança e por um PM temporário, fora de serviço, num supermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre.

Beto foi linchado, aos socos e pontapés, ante a indiferença de testemunhas.

Beto foi assassinado por ter tido um “desentendimento” com uma caixa do supermercado.

Não sei nada sobre Beto. Não sei se ele era “simpático e sociável” como Manchinha. Não sei qual foi o “desentendimento” que provocou a fúria dos seguranças.

Sei, entretanto, que ele era negro. E isso explica tudo.

Sei bem que, se Beto fosse um branco de classe média, a história teria sido bem diferente.

Provavelmente, a caixa teria sido advertida, após o “desentendimento”.  Afinal, clientes (brancos) têm sempre razão, reza a regra dos comerciantes. Com toda certeza, um cliente branco não teria sido linchado.

Sei bem que, nos últimos 10 anos, mais de 650 mil pessoas negras foram assassinadas no Brasil. Conheço o fato aterrador de que os negros são quase 80% dos mortos pela polícia.

Estou consciente de que, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil.

No dia em que Beto foi linchado, 62 jovens negros foram assassinados. Esses 62 permaneceram vítimas anônimas do genocídio negro no Brasil.

É certo que autoridades se apressarão a minimizar o linchamento.

Mourão, provavelmente um descendente de escravos, se apressou a declarar que o trágico incidente não tem nada a ver com racismo, pois não existe racismo no Brasil. Isso é coisa “importada”.

Falou isso no Dia da Consciência Negra, linchando a memória de todos os combatentes negros do Brasil. Assassinou a história de Zumbi e Dandara.

Bolsonaro talvez deva estar pensando que Beto pesava muitas arrobas e que não servia mais nem para procriar.

Com certeza, não se comoverá com a história e não manifestará indignação, pesar ou solidariedade à família da vítima. Não faz isso nem com os milhares de brancos que morrem de Covid pela omissão de seu governo, por que haveria de fazê-lo com o Beto?

Para o capitão, vidas não importam. Nem brancas e, muito menos, negras.

Apesar da prisão dos seguranças e da comoção em alguns meios, acho provável que o Carrefour venha a sofrer menos com o linchamento do Beto do que com a morte de Manchinha.

Afinal, vidas negras, no Brasil, não valem nada. Importam menos que as vidas de cachorros.

Em seu discuro de hoje (20/11), Lula afirmou que:

“Sem igualdade étnica e racial, assim como sem igualdade de gênero, não há democracia de verdade, não há cidadania efetiva e não haverá desenvolvimento. Com racismo, não há sequer soberania. Um Brasil racista será sempre pobre, injusto, pequeno e frágil.”

Tem toda razão. Esse Brasil racista, esse país do genocídio contra negras e negros, nunca será um grande país, uma grande democracia, pois a escravidão e racismo estão na origem da nossa abissal desigualdade.

Estão na origem do ódio e do preconceito, que tanto nos debilitam.  Estão na origem da nossa violência cotidiana. Estão na origem da nossa grande tragédia social.

Assim, o Brasil racista será sempre um país injusto, dividido e vira-lata. Um país com uma imensa e feroz mancha de vergonha.


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Comentários

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Zé Maria

Hoje, quando ainda não esfriou o Cadáver do Homem Negro
Brutalmente Assassinado por seguranças dentro do Carrefour,
todos são contra o “Racismo Estrutural”, inclusive os Órgãos do
Poder Judiciário.
Queremos ver, no entanto, essas manifestações antirracistas
refletidas nas decisões dos Juízes e dos Tribunais em todas as
instâncias, com punições severas aos Racistas e às Empresas
que contratam Funcionários, inclusive Policiais, Racistas, para
matar Negros dentro das Lojas, sob qualquer pretexto fútil.
Não há Patrimônio Material que supere o Valor de uma Vida.

Zé Maria

”A gente gritava estão matando o cara,
mas continuaram até ele parar de respirar”

Vizinho da vítima, Paulão Paquetá contou à reportagem ter testemunhado
o espancamento e morte de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos,
em um supermercado Carrefour de Porto Alegre na noite desta quinta-feira [19].
“Estava chegando no local na hora das agressões.
Eu estava a uns 10 metros quando começou.
Tentamos intervir, mas não conseguimos”,
relata.

Paulão diz que a esposa da vítima, um homem negro,
também viu o espancamento, mas foi impedida de intervir.
“Ela viu o marido sendo morto”, lamenta.

Segundo ele, cerca de OUTROS OITO SEGURANÇAS ficaram no entorno da área,
impedindo a aproximação das pessoas que tentavam parar com as agressões.

“Não pararam. A gente gritava ‘tão matando o cara’, mas continuaram
até ele parar de respirar, fizeram a imobilização com o joelho
no pescoço do Beto, tipo como foi com o americano (George Floyd,
morto por policiais neste ano nos Estados Unidos).”

Presidente da Associação de Moradores e Amigos do Obirici,
Paulão estima que as agressões duraram cerca de sete minutos.
Ele diz que alguns motoboys que filmaram a violência
tiveram os celulares tomados para não registrar toda a ação.

“Quando viram que ele parou de respirar, eles [os assassinos] se apavoraram.
Chamaram a Brigada (Militar), que isolou ali, e a Samu tentou reanimar.”

Segundo o líder comunitário, a vítima morava no IAPI,
bairro nas proximidades do supermercado.

“Não é primeira ocorrência do tipo. É a primeira de óbito.
Todo mundo sabe que são agressores (os seguranças do local) mesmo.”

“É muito difícil. Revolta pela maneira que ele foi morto brutalmente.
Ser humano nenhum merece ser agredido daquela jeito,
ter a vida ceifada de maneira tão brutal, tão animal.”

https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADcia/a-gente-gritava-est%C3%A3o-matando-o-cara-mas-continuaram-at%C3%A9-ele-parar-de-respirar-1.523901

Nelson

PM Temporário é uma das excrescências originadas de uma das tantas excrescências que os tucanos impingiram ao povo brasileiro. Um absurdo que a excrescência que sucedeu a governadora tucana aqui no Rio Grande do Sul não acabou.

Assim, com uma profusão de excrescências assumindo o comando de cidades, Estados e da União, será que nosso Brasil deveria ou poderia estar em um estágio melhor que o atual?

Zé Maria

Desde o início do Espancamento que matou o Jovem Negro no Carrefour,
havia uma pessoa em pé, assistindo sadicamente o Homicídio. Foi quem,
inclusive, mudou o direcionamento da Câmera de Segurança da Loja,
enquanto os Assassinos consumavam o Homicídio Doloso. Foi partícipe.
(https://youtu.be/pMH-rTN5dx8)

    Zé Maria

    Vê-se que um dos dois seguranças do Carrefour,
    que mataram o homem negro no supermercado,
    utilizou um objeto lancinante pontiagudo que
    chegou a cair no chão e foi logo recolhido.
    https://youtu.be/moiruomkIhg

    Zé Maria

    Entre 10s e 13s do vídeo acima (Independente)*, aparece claramente um
    dos Assassinos curvando-se para pegar o objeto que brilha no chão.
    *(https://youtu.be/moiruomkIhg?t=9)

    Mas o que á mais estranho é que não surgiu até agora qualquer vídeo
    que evidenciasse a Vítima agredindo quem quer que seja no Carrefour.

    Zé Maria

    A dúvida que a delegada alega ainda precisar esclarecer não existe
    para o Procurador de Justiça aposentado, professor de Direito,
    Cézar Roberto Bitencourt, Doutor em Direito Penal pela
    Universidade de Sevilha, Espanha:

    “Aquela funcionária não é simplesmente testemunha do crime. Pelo contrário.
    Ela é coautora do crime. Ela coordenou a agressão. Ela chamou os seguranças,
    mandou retirarem (o cliente), acompanhou e comandou, inclusive empurrava,
    botava as mãos nas costas. Note que ela está do lado, ela era chefe. Ela poderia
    ter dito, parem! Chega! Acabava. Porque ela tinha autoridade sobre os
    seguranças, poderia interromper. Ela tinha o domínio do fato.
    Por isso ela não é simples partícipe, não era meramente participante.
    Ela é coautora do homicídio. Tem que ser indiciada e denunciada
    por homicídio qualificado, em concurso com os outros dois“.

    “Assassinato de João Alberto tem mais responsáveis”

    “Quem não impediu também responde pelo Crime”

    Jornalista Marcelo Auler, no Desacato

    http://desacato.info/assassinato-de-joao-alberto-tem-mais-responsaveis/

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