Manuela Carneiro da Cunha: Sem alarde, Dalmo Dallari deixou um enorme legado aos povos indígenas

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Oficina sobre Convenção nº 169 da OIT, na TI Tenondé Porã, 2012. Foto: Carlos Penteado/Comissão Pró-Índio de São Paulo

Dalmo Dallari e os direitos indígenas na Constituição

Por Manuela Carneiro da Cunha*, Comissão Arns

Dois artigos na Constituição Federal de 1988 são decisivos para os direitos indígenas.

Ambos foram de inspiração de Dalmo Dallari. Ele nos deixou no dia 6 de abril, quando oito mil indígenas estavam justamente reunidos em Brasília para defender a letra desses dois artigos.

O artigo 231 reconhece que os direitos dos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam são originários.

Originários significa que são anteriores a qualquer lei.  Eles, portanto, não são concedidos pela Constituição, são reconhecidos por ela.

Isso foi o que nos explicou Dalmo, que na ocasião nos deu um exemplo exótico: os cantões suíços guardaram seus direitos anteriores, originários ao se unirem para formar o Estado suíço. 

A União, continua o artigo 231, tem o dever de proteger essas terras e para tanto, demarcá-las.

O governo Bolsonaro procura inverter os termos e fazer crer que os direitos dos índios às suas terras dependem da conclusão do (longo) processo de demarcação. Não dependem.

O Supremo já se pronunciou clara e reiteradamente sobre isso.

Mas essa aberração tem justificado um aumento inédito da grilagem de terras indígenas e a tentativa da atual FUNAI de se eximir de seus deveres.  

O artigo 232 também foi formulado por Dalmo. Foi fruto de experiência em acompanhar conflitos e prejuízos que povos indígenas tentavam ajuizar.

No mais das vezes, os juízes não admitiam a capacidade dos indígenas entrarem com ações. Alegavam que era a FUNAI, e não eles, quem devia ingressar com a ação. Ora, era frequente que a FUNAI fosse justamente a autora ou pelo menos conectada aos autores dos prejuízos. Não iria entrar em juízo contra si própria. 

É notável que os indígenas já tinham assegurados direitos importantes.

Mas o diabo está nos detalhes. De que valiam esses direitos se os indígenas não tinham acesso direto à justiça, sob o pretexto absurdo de que eram tutelados?

Ao longo da década de 1970, Dalmo já havia protestado que o Código Civil havia instituído a capacidade relativa dos índios como uma proteção negocial, mas que a tutela estava sendo, nos tribunais, interpretada contra eles.

Nada mudou, porém. Para resolver esse obstáculo, Dalmo Dallari veio com uma solução elegantíssima no artigo 232: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.

Esse artigo não só trouxe o auxílio do MPF, mas mudou da água para o vinho o acesso dos indígenas à justiça.

Ninguém o contestou na Assembleia Constituinte.

De uma só tacada, os indígenas e suas formas de organização, tanto tradicionais quanto inovadoras, tinham capacidade jurídica reconhecida, e não precisavam de nenhum CNPJ.

Esse foi um dos argumentos que permitiu à APIB, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, ser legitimada como autora no STF da notável ADPF 709 de 2020 que procurou defender os povos tradicionais da COVID-19. 

Dalmo deixou, sem alarde, um enorme legado aos povos indígenas.

Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga, membro da Academia Brasileira de Ciências e membro da Comissão Arns.


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Zé Maria

Dalmo Dallari foi um ‘Homem Humano’
preocupado com os Direitos Humanos.
Com o Passado, o Presente e o Futuro.

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