Lelê Teles: É preciso fugir das armadilhas do machismo recreativo; vídeo

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Do machismo recreativo

Por Lelê Teles*

o machismo é uma construção cultural que pretende uma hierarquização social por gênero.

essa insolência, consequência da dominação colonial, se estrutura por meio de diversos mecanismos: está presente nas relações familiares, na cerimônia religiosa e no rito do casamento, na formatação das nossas instituições, na pedagogia aplicada aos pequenos, na construção da nossa mentalidade… na nossa formação como sociedade.

assim como desumanizaram as pessoas negras, os machos brancos colonizadores coisificaram as mulheres; o estupro era tão comum como a pilhagem.

o estupro nunca foi um ato erótico; estupro não é sobre sexo, é sobre poder e domínio.

é uma violência que simula a morte simbólica da vítima, onde o pênis faz o papel da adaga, do punhal com o qual o homem estoca o corpo da vítima, violentamente, matando-a diversas vezes, mas ainda deixando ela viva.

não raro, como forma de tortura contra uma mulher, o homem queima ou mutila o seu rosto, que é outra forma de matá-la e deixá-la viva, carregando a humilhante marca do seu agressor.

a morte em vida, sabemos todos, é o mais terrível dos sofrimentos.

mas o machismo nem sempre se mostra com essa cara horrenda e brutal do estuprador e do feminicida, ele tem diversas formas de abordagem, que vão do galanteio romântico e manipulador à alegria fagueira de uma piada.

refiro-me ao machismo recreativo, uma forma sutil de violência e opressão contra meninas e mulheres que se esconde por trás da máscara do humor.

disfarçado de brincadeira, o machismo recreativo é utilizado para reforçar, naturalizar, banalizar e legitimar estereótipos contra mulheres.

é sempre bom lembrar que machismo não é brincadeira, o machismo mata.

quando dizemos que em briga de marido e mulher não devemos meter a colher, estamos a legitimar as agressões domésticas cotidianas, e o agressor encontra em nossa omissão silenciosa um reforçamento conivente.

as piadinhas do dia a dia também são reforçadores.

esse assassino, esse feminicida de hoje, ontem mesmo estava com a gente na mesa do bar gargalhando de uma piada sobre ser mulher e fazer uma baliza no estacionamento.

é preciso ter consciência de que essas microagressões cotidianas que praticamos contra meninas e mulheres, em forma de galhofas, faz com que as vejamos como risíveis e desprezíveis.

assim, passamos a internalizar de forma inconsciente essa imagem, esse conceito, que acaba por se transformar em uma forma consciente de enxergar uma mulher.

uma das formas mais festejadas de machismo recreativo é o homem fantasiado de mulher durante o carnaval; isso em um país que mais espanca, tortura e mata travestis no mundo!

nenhuma mulher se parece com aquela mulher que o homem representa quando se traveste de mulher durante o carnaval: uma caricatura fútil, vulgar e risível.

aquilo não é uma homenagem, é uma ofensa!

não é uma mulher tal qual ela é, é a mulher que existe na formulação mental do homem machificado.

o significante, mulher, nos chega sempre com esse significado: dócil, boba, frágil, manipulável, ingênua, incapaz, tutelável.

os homens costumamos praticar o machismo recreativo todos os dias, e muitos de nós o fazemos sem ao menos nos dar conta disso.

“ah, cara, deixa de ser mulherzinha!”

ser mulherzinha é estar dentro dessa categoria de fragilidade, debilidade, obediência e dependência.

vivemos, e temos que nos lembrar disso todos os dias, na civilização da pater familias, como diziam os romanos, onde o homem é o chefe da família, o senhor do lar.

o pater familias era o mandatário, o sacerdote, e o juiz. era o cabra que mandava na porra toda.

a pátria, não se esqueça disso, é a casa do pai; logo, o patriota é o fidalgo, é o filho do cara.

patriotismo é um playboyzismo bunda-mole.

lembremos também que família deriva da palavra latina famulus, que era usada para designar o escravo doméstico, o empregado do senhor.

só mais tarde essa palavra foi empregada para designar um grupo de pessoas com ligações sanguíneas, que viviam sob o mesmo teto e debaixo da autoridade do senhor supremo daquele núcleo.

dessa forma, a escravidão doméstica ganhou uma nova configuração; o papel da mulher na família ocidental é o papel da trabalhadora do lar, a esposa é uma serva sempre a servir e cujo serviço não serve para ser remunerado.

machismo a gente aprende em casa.

a rua nos ajuda a reforçá-lo.

embora o machista seja um cabra, o machismo é uma estrutura, é uma forma de dominação social que precede a motivação individual.

ele subjuga e subjaz.

está entranhado nas nossas mais variadas formas de interação social, está presente no espaço privado – na hierarquia da família -, no espaço público e no ambiente de trabalho.

a violência contra a mulher pode ser física, psicológica, patrimonial e/ou moral, e tudo isso pode vir na embalagem inofensiva do humor.

o humor, sabemos todos, é uma poderosa ferramenta de crítica social e política.

sabemos, também, que o humor é fartamente utilizado como forma de opressão, agressão, humilhação e desprezo.

o machismo recreativo é uma maneira de afirmar a inferioridade da mulher, de confirmar a sua alegada natureza frágil e dependente, de exibi-la incapaz e impotente, de objetificá-lá, em uma palavra, fazendo-a mero joguete para deleite masculino.

o humor, nesse caso, é usado para demonstrar superioridade de um grupo em relação ao outro; é uma forma brincante de desprezo.

o bullying, geralmente, se apresenta como uma forma de sarcasmo coletivo que submete uma vítima indefesa ao escárnio geral no pátio da escola: a pessoa gorda, a pessoa negra, a pessoa feminina ou feminizada, a pessoa com deficiência…

o padrão macho branco, heterossexual, cisgênero, colocou o grupo que se encaixa nesse perfil como o chicote do mundo.

e sob a chibata estão mulheres brancas, homens negros, mulheres negras, homens e mulheres indígenas etc.

é importante salientar que quando fazemos de uma forma de opressão uma alegada brincadeira, a gente chama as crianças para o nosso entretenimento, formando assim uma pedagogia da opressão.

é a violência lúdica contra as mulheres: “joga pedra na geni”.

a pedagogia da opressão é tão sutil que uma pessoa que se enquadra na categoria de oprimível, ou seja, qualquer uma que não seja um macho branco e heterossexual padrão, pode passar a oprimir.

as mulheres riem das piadas contra elas, porque estão condicionadas a aceitarem o papel dominador do homem e, no final das contas, acabam por reproduzir a discriminação em outras mulheres: a branca faz piada contra a preta, a rica esnoba a pobre, a magra caçoa da gorda, a patroa humilha a empregada…

o machismo estrutural também se vale da linguagem para gerar microagressões sutis que servem para complementar as piadinhas; como os chavões, por exemplo: “ah, só podia ser mulher!”

dessa forma, alegre e descontraída, o homem vai se machificando e encontrando justificativas para manter o seu domínio, o seu controle.

o feminicida é um monstro criado no laboratório do machismo estrutural, ele está convicto de que aquela mulher que ele violentou era propriedade sua, era um objeto seu.

a mulher foi tratada como cidadão de segunda classe desde sempre, a ela foi negado o direito de voto por séculos, a elas eram proibidas diversas atividades laborais e ainda hoje recebem menos que os homens para fazerem o mesmo trabalho; é preciso manter a dominação econômica, porque ela gera a dependência.

o corpo da mulher esteve e está sempre sendo vigiado, ele tem um status diferente do corpo masculino, elas não podem ficar sem camisa e nem amamentar em espaços públicos.

os mesmos homens que criticam as mulheres por sensualizarem em suas performances de palco, aplaudiam o elvis presley por balançar o saco na frente das meninas.

o bonitão era chamada de elvis the pelvis, sua performance era toda sexualizada, como erotizadas eram as performances da maioria dos cantores de rock, do the doors ao led zeppelin.

todo mundo acha lindo o rebolado do mick jagger, com aquela boca erótica e a língua de fora, mas se uma mulher sacode a bunda… ah, isso aí é uma vergonha pra música brasileira.

o corpo da mulher precisa passar pelo controle masculino, ela não deve ter autonomia.

não faz muito tempo, um presidente conservador estava nas praias cariocas medindo o tamanho do biquini das meninas.

a desumanização da mulher, a sua putificação, associada à pornificação dos afetos, faz dela menos que um ser humano: ela é uma buceta ambulante.

a expressão cretina “não mexa com a mulher dos outros”, dita de homem pra homem, é o reforçamento de um pacto de cavalheiros que assegura que uma mulher, sendo propriedade de outro homem, não deve ser invadida.

sem não tiver uma cerca, é terra de ninguém.

os piropos, as cantadinhas cafajestes de rua, sempre seguidas das risadas reforçadoras de outros cafajestes, estão sempre impregnadas de sexismo e se afiguram como brincadeiras.

o homem ora quer controlar os corpos femininos e domesticá-los, tornando-os objetos abjetos a serviço do lar; ora querem torná-los libidinosos e libertinos a serviço da multidão.

é preciso fugir das armadilhas do machismo recreativo.

sorrir de piadinhas nada inocentes contra mulheres em um país que estupra, tortura e mata meninas, mulheres, travestis e mulheres trans a torto e a direito, é um comportamento perigoso.

o programa pânico na tevê, que tratava as panicats como gostosas sem cérebro e as humilhava todos os dias, para deleite dos machos, é um exemplo de machismo recreativo vulgar e desumanizador exercido livremente em uma concessão pública de televisão.

a pedagogia da opressão sempre contou com o apoio do estado, porque é parte da ideologia.

palavra da salvação.

*Lelê Teles é jornalista, publicitário e roteirista

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Zé Maria

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Zé Maria

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