Greenwald, no Nation: Com Lula concorrendo, Brasil tem o futuro em suas mãos

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Glenn participa de audiência na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Por que o Brasil ainda é importante

Com Lula elegível para enfrentar Bolsonaro, os brasileiros têm o futuro do mundo nas mãos

Por Glenn Greenwald | The Nation

Enquanto muitos no Ocidente lamentavam a impressionante ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência do quinto país mais populoso do mundo em 2018, o resultado da eleição foi selado cerca de um ano antes. 

Foi quando o presidente de centro-esquerda de dois mandatos do Brasil, Lula da Silva, que havia sido legalmente impedido de um terceiro mandato consecutivo em 2010, apesar de um índice de aprovação de 86% – e que liderava em todas as pesquisas por um retorno na Presidência em 2018 — foi condenado por acusações de corrupção duvidosas e depois declarado inelegível para concorrer. 

Com seu principal obstáculo fora do caminho, Bolsonaro cruzou para a vitória.

O fedor desses eventos intensificou-se muito quando Bolsonaro nomeou o juiz que havia declarado Lula culpado, Sergio Moro, para o cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública, recém criado. 

Até mesmo os aliados mais próximos de Moro na extensa investigação anticorrupção conhecida como Operação Lava Jato ficaram indignados com esse flagrante quid pro quo, que eles perceberam que mancharia seu legado para sempre.

A vitória de Bolsonaro – impulsionada em grande parte pela raiva generalizada contra a classe dominante e sua ideologia neoliberal, bem como pelas múltiplas crises que assolam o país – foi um grande golpe para as esperanças progressistas em toda a América Latina.

 O Brasil era líder na democratização da região desde 1985, quando protestos populares forçaram os governantes militares do país – que haviam exercido o poder de forma selvagem após um Golpe em 1964 no qual os generais depuseram um presidente eleito democraticamente – a voltarem para a caserna, abrindo espaço para o retorno de um governo civil. 

Desde então, não é apenas tabu, mas também ilegal elogiar a ditadura, que exilou, torturou, prendeu e matou milhares de artistas, dissidentes, jornalistas e ativistas.

Mas durante os 28 anos em que foi deputado, Bolsonaro – que havia servido como capitão do Exército durante a ditadura – desafiou esse tabu com abandono. 

Eleito pelo Rio, ele sempre sustentou que o regime militar era uma forma de governo superior à democracia, pediu o retorno dos decretos militares mais repressivos, criticou os governantes militares do Brasil por não matarem gente suficiente e jurou que fecharia o Congresso do país se fosse presidente.

Em maio de 2019, fui contatado por uma fonte anônima que me disse que havia hackeado os dados de telefone e registros de bate-papo das autoridades mais poderosas do Brasil, incluindo o juiz Moro e os principais promotores que prenderam Lula. 

Nossa reportagem, começando com uma série de denúncias no The Intercept em junho de 2019, provou que havia corrupção generalizada entre os líderes do Lava Jato. 

Nossas revelações abriram caminho para a libertação de Lula da prisão em novembro de 2019 e, no dia 8 de março deste ano, a anulação das convicções de Lula. 

Como resultado, os direitos políticos de Lula foram restaurados, o que significa que ele quase certamente será elegível para desafiar Bolsonaro em 2022.

Esse confronto tem consequências enormes, não apenas para o Brasil ou a América Latina, mas para o futuro de todo o planeta.

Não é só que o Brasil tem petróleo. 

As enormes reservas de petróleo do país, incluindo grande parte das chamadas reservas do pré-sal do planeta, são de particular importância geoestratégica e ambiental. 

“Pré-sal” é uma designação geológica para o petróleo extremamente antigo e, portanto, enterrado muito mais fundo na terra do que o petróleo padrão, geralmente sob uma camada de sal. 

Isso torna sua extração mais difícil e cara, mas também oferece muito mais potencial em termos de volume do que a maioria das reservas restantes do mundo. 

A Petrobras do Brasil descobriu as enormes reservas do pré-sal em 2006, mas ainda não se sabe quão grandes são. 

O que está fora de dúvida é que o petróleo tem um valor imenso para um mundo ainda dependente de combustíveis fósseis, mas cujas reservas estão diminuindo.

Além do vasto e inexplorado petróleo do pré-sal, o Brasil controla a vasta maioria dos ativos ambientais que cientistas de todo o mundo concordam ser o recurso natural mais importante, de longe, para evitar mudanças climáticas catastróficas: a floresta tropical amazônica. 

O principal valor da Amazônia está em sua capacidade de absorver dióxido de carbono. 

Como explicou um artigo abrangente da Associated Press sobre a região, “atualmente, o mundo está emitindo cerca de 40 bilhões de toneladas de CO2 na atmosfera todos os anos. A Amazônia absorve 2 bilhões de toneladas de CO2 por ano (ou 5% das emissões anuais), tornando-se uma parte vital da prevenção das mudanças climáticas”.

O contexto para aquele artigo da AP – e milhares de outros semelhantes em todo o mundo – era que, em meados de 2019, o mundo assistia com horror enquanto a Amazônia brasileira pegava fogo. 

O presidente francês Emmanuel Macron falou por grande parte do mundo quando postou o seguinte tweet: “Nossa casa está pegando fogo. Literalmente. A floresta amazônica – os pulmões que produzem 20% do oxigênio do nosso planeta – está em chamas. É uma crise internacional. Membros da cúpula do G7, vamos discutir essa primeira ordem de emergência em dois dias! #ActForTheAmazon”.

Esses incêndios na Amazônia, em grande parte resultado de fazendeiros desmatando ilegalmente a terra, foram globalmente alarmantes precisamente porque significaram uma séria regressão em um momento em que o progresso radical é mais urgentemente necessário. 

Como o artigo da AP detalhou, “os incêndios na Amazônia não significam apenas que a floresta que absorve carbono está desaparecendo, mas as próprias chamas estão emitindo milhões de toneladas de carbono todos os dias”. 

E citou o cientista climático brasileiro Carlos Nobre, que advertiu que “estamos perto de um ‘ponto de inflexão’ que transformaria a densa selva em uma savana tropical”.

Os incêndios sublinharam a importância do Brasil para o mundo, em grande parte porque muitos perceberam que o incêndio não ocorreu devido a causas naturais, mas como resultado direto de políticas e ideologias. 

Especificamente, as políticas e ideologia de um homem: Jair Bolsonaro.

Bolsonaro há muito vem protestando contra as proteções concedidas às tribos indígenas do Brasil e ao território amazônico onde vivem há séculos.

 Junto com sua defesa de todas as formas de violência militar e policial, a exploração agressiva da Amazônia é uma das poucas crenças básicas que Bolsonaro defendeu consistentemente ao longo de suas décadas como político. 

Por essa razão, sua candidatura presidencial foi apoiada pelas indústrias agrícolas e madeireiras extremamente poderosas e ricas do país muito antes de ele ser visto como um candidato viável. 

Na verdade, eles estavam ansiosos para encontrar um presidente que desencadeasse interesses comerciais sem a menor consideração pelo valor ambiental da Amazônia ou pela sobrevivência das tribos indígenas.

Ninguém que prestou muita atenção ao Brasil se surpreendeu com os incêndios na Amazônia, causados pelas próprias indústrias que hoje compõem uma parte tão crucial da base de Bolsonaro.

Conforme explicou Nobre, os pecuaristas e fazendeiros que provocaram o incêndio “acham que a aplicação da lei não vai puni-los”. 

O relato da AP continuou: “Bolsonaro diminuiu o poder e a autonomia das agências de proteção florestal, que ele diz atrapalhar o licenciamento para o desenvolvimento de terras e acusa de serem ‘indústrias de multas’”.

Bolsonaro praticamente fez do desmatamento uma meta explícita de seu governo; sua escolha para ministro do Meio Ambiente, o até então obscuro Ricardo Salles, certa vez apontou as balas como a “solução” para tribos indígenas, ativistas ambientais e sem-teto e “a esquerda” em geral. 

Em sua curta passagem como oficial ambiental local no estado de  São Paulo, Salles foi condenado por improbidade administrativa pelos mapas forjados de propostas de planos de proteção ambiental publicados por seu gabinete e foi impedido de concorrer a um cargo eletivo por três anos. 

Duas semanas depois, em dezembro de 2018, Bolsonaro o nomeou ministro do Meio Ambiente. 

O fato de um recurso tão vital como a Amazônia estar agora nas mãos desses dois fanáticos já seria motivo suficiente para o mundo dar atenção ao Brasil.

Mesmo apoiando a destruição da Amazônia, Bolsonaro segue o ethos da ditadura militar que admira. 

Milhares de cidadãos indígenas foram mortos durante aquela época por um regime que pretendia desenvolver e explorar a Amazônia, independentemente dos custos humanos, culturais, ambientais ou outros. 

Na verdade, os líderes do Golpe de 1964 frequentemente falavam da população indígena do Brasil com um nível de desprezo apenas um pouco menos explícito do que o de Bolsonaro.

Na ânsia de destruir a Amazônia para obter lucros de curto prazo é apenas um dos atributos que tornam o Bolsonaro tão perigoso. 

Ele é tão desequilibrado em seu comportamento quanto neofascista em sua ideologia. 

Muito mais arrepiante do que o comportamento adolescente e imprudente de Bolsonaro – como sua zombaria da aparência física da esposa de Macron em resposta ao tweet viral do presidente francês – são suas crenças centrais, que durante anos o relegaram ao papel de palhaço secundário em vez de de um legislador de qualquer importância.

Bolsonaro foi expulso do Exército em 1988 por planejar a detonação de pequenas bombas em instalações militares em protesto contra o que ele considerava os salários injustamente baixos recebidos pelos soldados. 

Ele já havia sido punido pelos militares por publicar um artigo na revista Veja, que denunciava os salários dos militares – um ato que também o transformou em uma celebridade secundária entre os soldados solidários. 

Ele então lançou sua carreira política naquele ano com uma candidatura de sucesso à Câmara Municipal do Rio de Janeiro em uma plataforma pró-militar.

Apesar de sua expulsão do exército, ele permaneceu um ávido fã do regime, defendendo o golpe de 1964 como uma “revolução democrática e popular”, chamando a era da ditadura de “gloriosa” e insistindo por três décadas que o Brasil estava melhor sob despotismo do que sob a democracia. 

Na verdade, Bolsonaro sempre disse que sua única crítica à ditadura militar é que ela não foi longe o suficiente. 

Em uma aparição agora icônica na televisão em 1999, Bolsonaro disse: “Votar não mudará nada neste país. Nada! As coisas só vão mudar, infelizmente, depois de começar uma guerra civil aqui, e fazer o trabalho que a ditadura não fez. Matando cerca de 30 mil pessoas, a começar por FHC [Fernando Henrique Cardoso, então presidente de centro-direita]. Se alguns inocentes morrerem, tudo bem”. 

Da mesma forma, em 2015, Bolsonaro respondeu a um relatório da Anistia Internacional que afirmava que a polícia do Brasil mata mais pessoas do que qualquer outro país, dizendo: “Acho que o que a Polícia Militar tem que fazer é matar mais”. 

Como escreveu o jornalista Vincent Bevins na The New York Review of Books, em 2018: “Bolsonaro não é apenas nostálgico daquela época; ele iria reintroduzir o ethos político da ditadura, preservado e intacto, no Brasil moderno… O que Bolsonaro oferece é um retorno explícito aos valores que sustentaram a brutal ditadura do Brasil”.

Quando sua candidatura presidencial se fortaleceu em 2018, a imprensa ocidental – que nunca deu muita atenção ao Brasil – lutou para transmitir quem era Bolsonaro. 

Eles o apelidaram de “Trump dos Trópicos”, que eles acreditavam ser um apelido insultuoso.

 Na realidade, era muito fofo, provinciano e etnocêntrico para ser outra coisa senão totalmente enganoso. 

Esse apelido também teve o efeito indesejado de normalizar o Bolsonaro no Brasil. 

Depois de décadas sendo dito que o Brasil é um “país em desenvolvimento” ou parte do “Terceiro Mundo” ou “Sul Global”, muitos brasileiros sentiram, não sem razão, que se Bolsonaro fosse semelhante ao presidente do país mais rico e poderoso do planeta, ele deve estar fazendo algo certo.

No entanto, por tantos motivos – de sua admiração explícita pela tortura e assassinato à sua mistura única de militarismo, fervor religioso, uma fixação antigay e uma obsessão anticomunista – Bolsonaro é diferente de outros líderes modernos de extrema direita, como Trump, Marine Le Pen, ou os líderes do Brexit no Reino Unido. 

Ele é muito mais sombrio e ameaçador.

 De fato, em mentalidade, disposição, ideologia e visão definitiva, ele está mais para o presidente Rodrigo Duterte, das Filipinas, ou mesmo o general Abdel Fattah al-Sisi, do Egito.

Independentemente do que se possa dizer sobre ele, Bolsonaro é uma figura carismática e é um demagogo talentoso que sabe como atrair a atenção e mobilizar os piores e mais primitivos impulsos das pessoas. 

E ele construiu uma dinastia política: três de seus filhos são proeminentes autoridades eleitas no Brasil. 

O mais velho, Flavio, foi deputado estadual representando o Rio de Janeiro por uma década e acabou eleito com uma votação esmagadora para o Senado Federal na mesma eleição de 2018 que levou seu pai à Presidência. 

O filho mais novo de Bolsonaro, Eduardo, é um deputado federal paulista reeleito em 2018 com o maior número de votos para um deputado na história da democracia brasileira. 

Carlos, o filho político do meio, é um antigo membro do conselho municipal do Rio de Janeiro e o mentor da rede online de fake news do pai e promove ataques de ódio contra os críticos da família.

Evocando a imagem dos filhos do ditador iraquiano Saddam Hussein, Uday e Qusay, todos os filhos de Bolsonaro se parecem com ele, mas de alguma forma são ainda piores. 

Pouco antes da eleição de Bolsonaro como presidente, Eduardo falou  abertamente sobre como seria fácil fechar o Supremo Tribunal Federal (STF) se ele decidisse que a campanha do pai violou as leis eleitorais: “Cara, se você quiser fechar o [Supremo Tribunal], você sabe o que você faz? Você nem mesmo manda um jipe. Basta um soldado e um cabo”.

 Em seguida, acrescentou, de forma ainda mais ameaçadora: “O que é o STF? Ele tira o poder da pena de um ministro do STF. Se você prender um ministro do STF, você acha que vai haver uma manifestação popular a favor do ministro do STF, milhões nas ruas?”

Em 2019, quando a aprovação do governo do pai despencou, Eduardo – que Bolsonaro tentou e não conseguiu nomear como embaixador do Brasil nos Estados Unidos – fez uma ameaça pública. 

Ele disse que se protestos de rua contra Bolsonaro ocorressem no Brasil, da forma como os manifestantes no Chile exigiam o fim das duras medidas de austeridade na época, haveria uma restauração do AI-5 – o terrível decreto que a ditadura militar do Brasil emitiu para abolir sumariamente quaisquer direitos democráticos residuais e estabelecer o Brasil como uma tirania absoluta.

Enquanto isso, quase imediatamente após a eleição do pai como presidente, o senador Flavio Bolsonaro foi envolvido em um escândalo que ainda está se desenrolando, envolvendo ligações estreitas de toda a família com gangues paramilitares violentas. 

Essas milícias, compostas por desonestos e ex-integrantes da Polícia Militar, governam o Rio de Janeiro com táticas que fazem a máfia italiana parecer pacifista.

Outra das armas políticas mais potentes e confiáveis dos Bolsonaros é o fanatismo religioso – uma variante que mistura catolicismo ostensivo com fervor evangélico latino-americano – que toda a família usa para estimular o ódio generalizado contra a população LGBTQ do Brasil. 

Na verdade, o fervor anti-LGBTQ tornou-se um de seus principais problemas: Bolsonaro disse à revista Playboy que preferia um filho morto do que gay, e uma de suas únicas propostas no Congresso foi um projeto de lei para proibir casais do mesmo sexo de adoção de crianças, apesar das dezenas de milhares de crianças brasileiras sem pais que permanecem em abrigos e orfanatos. 

Em 2018, a campanha presidencial de Bolsonaro apresentou uma alegação de que gays tentavam se infiltrar nas escolas, usando uma ferramenta fictícia, que ele chamou de “kit gay”.

E disse aos pais em todo o país que estava sendo usado por gays e seus professores aliados para doutrinar jovens e transformar seus filhos em gays.

O que tornou a eleição de Bolsonaro particularmente chocante foi que foi uma mudança radical da história política recente do Brasil. 

Desde o fim da ditadura em 1985, o Brasil nunca esteve perto de um país de extrema direita. 

Pelo contrário, as quatro eleições presidenciais antes da vitória de Bolsonaro em 2018 foram todas ganhas pelo Partido dos Trabalhadores, de centro-esquerda. 

Bolsonaro foi precedido pelo fundador desse partido, Lula – operário nascido na extrema pobreza e analfabeto até os 10 anos – e sua sucessora, Dilma Rousseff, uma ex-guerrilheira marxista e primeira mulher presidente do país.

Como o Brasil passou de um país de centro-esquerda que se encaixava confortavelmente na ala ideológica dominante da ordem neoliberal ocidental para um governado por uma figura tão extremada como Bolsonaro? 

Aqui, e somente aqui, a comparação com Trump é útil, uma vez que uma pergunta semelhante pode ser feita – e uma resposta semelhante fornecida – sobre os Estados Unidos: como um país que elegeu Barack Obama duas vezes subitamente enviou Donald Trump à Casa Branca? 

Da mesma forma, como um país tão integrado à Europa como o Reino Unido optou repentinamente pelo Brexit, apesar de todas as evidências claras dos prejuízos que isso resultaria, especialmente para os membros das classes trabalhadoras que votaram nele?

Como tem acontecido em tantos países, o fracasso do establishment do Brasil – e particularmente sua ideologia neoliberal prevalecente – deixou tantas pessoas tão irritadas com o sistema político que estavam dispostas a apostar em qualquer um que pudesse se passar por um inimigo da classe política, que a população (com razão) culpa por tanto de seu sofrimento e privação.

Antes da ascensão de Bolsonaro, uma convergência de crises havia engolfado o Brasil: uma crise econômica que se devia, pelo menos em parte, ao colapso financeiro de 2008 causado por Wall Street; uma crise na segurança pública que veio com o aumento da pobreza e do desemprego; uma taxa de homicídios comparável à de Bagdá no auge da ocupação do Iraque pelos Estados Unidos; e um escândalo de corrupção massivo, revelado pela investigação da Operação Lava Jato, que envolveu quase todos os principais partidos políticos (incluindo o Partido dos Trabalhadores), bem como os oligarcas mais ricos do país e suas empresas mais poderosas (como a Petrobras, outrora o orgulho nacional do Brasil, está no centro de tudo).

Como nos Estados Unidos, a fúria popular generalizada contra o establishment político que impulsionou a vitória de Bolsonaro levou muitos anos para se formar. 

E os tremores podiam ser sentidos por qualquer pessoa que se preocupasse em ouvir o povo brasileiro.

Talvez um dos primeiros sinais da intensidade e ubiqüidade do desgosto com o processo político foram os protestos de rua rancorosos de 2013.

Começaram com uma causa estreita e provinciana: um aumento nas passagens de ônibus e metrô de 20 centavos brasileiros (equivalente a cinco centavos de dólar) em todo o país, que caiu mais fortemente sobre aqueles que menos podiam pagar: os trabalhadores mais pobres do país e a classe média baixa, que usava exclusivamente o transporte público para se deslocar para o trabalho, muitas vezes amontoados em ônibus e trens para horas viajando das periferias empobrecidas das cidades para seus bairros de classe média alta e centros corporativos.

No início, a especificidade do problema fez com que relativamente poucas pessoas comparecessem aos protestos. Mas logo as queixas expressas nos protestos aumentaram; o mesmo aconteceu com o tamanho da multidão. 

Em poucas semanas, os protestos se tornaram as maiores manifestações que o Brasil já viu desde que milhões foram às ruas em 1992 para exigir com sucesso o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, que foi afastado do cargo em um grande escândalo de corrupção.

Os protestos de 2013 rapidamente se tornaram um veículo geral para o registro da raiva: contra o governo de Dilma Rousseff; contra a corrupção, desemprego e aumento do crime violento; contra a lucratividade associada à aproximação da Copa do Mundo FIFA 2014 e do império da transmissão da Globo; e contra a classe política em geral. 

Ao longo dos meses de junho e julho, 2 milhões de brasileiros de todo o espectro político acabaram nas ruas em vários pontos. 

Mesmo com os maiores veículos de mídia do Brasil, liderados pela Globo, denunciando veementemente os manifestantes como vândalos e descontentes ociosos – no processo se tornando os principais alvos de sua raiva – as pesquisas mostraram que mais de 80% da população simpatizava com os manifestantes e suas várias causas indefinidas.

Os protestos continuaram a desafiar categorias ideológicas fáceis, mas virtualmente nenhum centro de poder ou instituição dominante foi poupado. 

Logo a própria Rousseff se tornou um de seus principais alvos – uma amarga ironia para um partido que afirmava representar a própria classe trabalhadora que foi vítima do aumento da tarifa de ônibus.

 As tentativas feias e violentas do governo de reprimir os protestos com violência policial apenas alimentaram seu crescimento.

Os esforços de Dilma e do Congresso para apaziguar os manifestantes, incluindo a rescisão do aumento da tarifa – bem como a retirada de uma série de medidas destinadas a dificultar o julgamento de políticos corruptos – pouco fizeram para aplacar a fúria desenfreada. 

Embora os protestos diminuíssem gradualmente de tamanho, as reverberações se estenderam muito além das próprias manifestações.

A rápida transformação dos protestos de 2013 foi um dos primeiros sinais de que os brasileiros estavam profundamente irritados. 

Mais importante, os protestos mostraram que sua raiva não estava reservada a nenhum partido ou ideologia única, mas a todos que detinham o poder no Brasil.

Nesse aspecto crítico, a ascensão de Bolsonaro ao poder foi impulsionada não tanto pelo acordo com sua ideologia, mas sim por uma aversão generalizada e justificada às instituições governantes e suas ortodoxias prevalecentes. 

O fato de Bolsonaro ter sido expulso dos principais distritos da “decência” e de ser tão claramente temido e desprezado pelas instituições tradicionais tornou-se um de seus ativos políticos mais poderosos. B

olsonaro é um demagogo talentoso que conseguiu transformar o ódio que as instituições de elite nutriam contra ele em seu próprio benefício.

Quem é odiado pelo sistema político que desprezamos e pelas elites que o controlam, e que promete queimá-lo e destruí-lo, deve estar do nosso lado. 

Essa mentalidade também explica o fenômeno de outra forma inexplicável de tantas pessoas nos Estados Unidos votando em Barack Obama em 2008, quando ele prometeu dar início a uma “mudança” substancial e depois em Donald Trump em 2016, quando ele prometeu “drenar o pântano”. 

Esses dois “forasteiros”, apesar de suas óbvias diferenças ideológicas, compartilhavam a qualidade muito mais importante de parecer hostil ao odiado sistema.

 Na verdade, a noção de Trump, o bilionário magnata do mercado imobiliário e estrela da NBC como um “estranho”, é apenas um pouco mais ridícula do que a imagem de Obama ser um outsider.

Bolsonaro, embora não seja um bilionário ou graduado em Direito de Harvard, não é mais estranho do que Trump ou Obama. 

Afinal, ele passou três décadas na política representando o estado mais corrupto do país – o Rio de Janeiro – como membro de oito partidos políticos diferentes, vários dos quais estavam implicados na investigação anticorrupção da Operação Lava Jato. 

Durante sua campanha presidencial de 2018, ele prometeu empoderar Paulo Guedes como seu ministro da Economia, apresentando-o como um acadêmico formado pela Universidade de Chicago que seguiria o modelo Pinochet de privatizar a indústria e cortar benefícios sociais – não exatamente um ícone antiestablishment.

Como Obama e Trump, porém, Bolsonaro estava longe o suficiente dos círculos políticos de elite para poder se descrever de forma convincente como seu adversário. E todos os três falaram com sucesso sobre a raiva e a sensação de traição de dezenas de milhões de pessoas.

Muitos brasileiros votaram em Bolsonaro – incluindo muitos amigos meus e do meu marido David Miranda, alguns dos quais são negros, alguns dos quais são da classe trabalhadora ou moradores de favelas, e alguns dos quais são LGBTQ ou amigos próximos da comunidade LGBTQ. 

Eles o fizeram não por causa de sua história de comentários odiosos e extremistas, intolerância e apoio à tirania, mas apesar deles. 

Eles fizeram isso por desespero.

Quando você não consegue encontrar um trabalho que forneça um salário mínimo, quando seus filhos não têm acesso a cuidados de saúde ou água potável, quando você tem motivos razoáveis para se preocupar a cada dia que seus filhos vão para a escola, não voltar para casa vivo por causa da violência indiscriminada nas ruas.

No mínimo, as pessoas que enfrentam tal privação serão altamente suscetíveis a bodes expiatórios raivosos e soluções fáceis: matar todos os criminosos, restaurar a moralidade pública por meio da religião, acabar com a corrupção. 

Essa é a fórmula usada por incontáveis demagogos de direita durante o século passado para tomar o poder – e foi o que funcionou de forma tão eficaz para o Bolsonaro em 2018.

Quanto mais as estrelas da Globo perfeitamente penteadas em seus estúdios reluzentes no Rio e em São Paulo – ou os membros “respeitáveis” da elite política brasileira – expressavam seu horror aos últimos pronunciamentos de Bolsonaro, mais seus apoiadores ficavam encantados com o sofrimento e a chateação que ele provocava. 

Essa é uma dinâmica que deve soar familiar para os eleitores americanos, e também é cada vez mais familiar para os europeus ocidentais enquanto assistem ao Brexit e ao surgimento de partidos de extrema direita antes impensáveis. 

Como Noam Chomsky observou em muitas ocasiões, o desprezo popular por instituições de elite e membros políticos está conduzindo esses resultados eleitorais em todo o mundo democrático.

O que torna o Brasil diferente é a velocidade da transformação – e a profundidade da descida ao regime autoritário.

O rápido progresso de Bolsonaro para o palácio presidencial foi acompanhado por uma onda de extrema direita que varreu vários corredores do poder uma manada de figuras anteriormente obscuras. 

O partido de Bolsonaro, que mal existia antes de 2018, elegeu o segundo maior número de membros para o Congresso Nacional, apenas uma cadeira atrás do Partido dos Trabalhadores, há muito dominante. 

Os brasileiros foram dormir antes das eleições de 2018 em um país aparentemente estável e firmemente democrático – e acordaram no dia seguinte em um país onde os valores democráticos permanecem ameaçados e a viabilidade das liberdades cívicas essenciais ainda está em dúvida.

Mas essa reversão, embora repentina, não aconteceu da noite para o dia. 

Em vez disso, foi o culminar de tendências que cresceram ao longo de décadas, tornando uma população que passou a acreditar que todos os políticos eram corruptos e que as eleições nada mudariam, pronta para explodir o sistema político que consideravam responsável pelas muitas crises do país. 

O Brasil é importante por causa de seu tamanho, seus vastos recursos ambientais e sua influência política e cultural em todo o mundo. Mas também importa como exemplo. 

Cidadãos de países atualmente democráticos que são tentados a ignorar os perigos quando as elites exibem seu desprezo pelas pessoas comuns – ou responder, em meio a alegações de que os níveis atuais de desigualdade e miséria generalizada são insustentáveis, que tais coisas “não podem acontecer aqui” – é necessário apenas que se olhe para o Brasil. Porque aconteceu aqui.

Este artigo foi adaptado de Securing Democracy: My Fight for Press Freedom and Justice in Bolsonaro’s Brazil (Garantindo a democracia. Minha luta por liberdade de imprensa e Justiça no Brasil de Bolsonaro), de Glenn Greenwald, publicado pela Haymarket Books.


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