Fátima Oliveira: Uma cultura de ternura

Tempo de leitura: 3 min

A mesa posta para o café da manhã é uma cultura de ternura
Legar esse conforto à descendência é um privilégio

por Fátima Oliveira, em OTempo

Médica – [email protected]

Legar zonas de conforto à descendência é um dever e um privilégio. Há memórias que, quando puxo por elas, fico enternecida. Não é propriamente saudosismo o que se apodera de mim, mas uma zona de conforto e de ternura. Lembrar a mesa posta para o café da manhã é uma delas.

Na casa da vó Maria, com quem eu morava, uma das primeiras tarefas de minha responsabilidade, por volta dos 7/8 anos, foi “pôr a mesa do café” à noite.

Consistia em limpar a mesa da copa, trocar a toalha e colocar um pratinho e, em cima dele, pires, xícara e colherzinha; e, no centro da mesa, uma bandeja com açucareiro, farinheiro, saleiro, manteigueira e uma “faca de mesa” para a manteiga. Ah, e guardanapos de panos!

Na copa havia um móvel de madeira, o lavatório, com uma bacia branca esmaltada, toalha de mão, sabonete e jarra de água, também de ágata. Não havia água encanada. Trocava a toalha, enchia a jarra de água e verificava se a bacia estava limpa. Nos primeiros dias, vovó ou a Albertina, a cozinheira, ficava ao meu lado, ensinando-me. Depois passei a pôr a mesa sem auxílio. De vez em quando, dava uma “esquecida” proposital… Mas vovó era rigorosa: “Acorda, vai cuidar da obrigação!”. Ia para a escola muito cedo, eu tomava café sozinha. Aos sábados e domingos, a família toda tomava café ao mesmo tempo.

O hábito de “pôr a mesa do café” à noite é uma cultura familiar que reproduzi em minha casa. E a responsabilidade foi passando de Maria para Débora, dela para Lívia, para o Biel, que em um belo domingo nos acordou “para tomar café logo, pro misto não esfriar” – e nem completara 7 anos! Pulei da cama imaginando um acidente… Na mesa, uma jarra de suco, um misto-quente para cada pessoa e café fumegando no bule! Desconhecia que ele soubesse acender o fogão! Um baita susto e ele, com sorriso maroto, feliz da vida, apresentando suas estripulias gastronômicas! Desde então, virou o “fazedor de café” oficial da casa.

Por fim, a mesa do café chegou ao Arthur, com quem se perdeu no esvaziamento da casa. Com o ninho quase vazio, o costume de pôr a mesa do café sumiu! Só reaparece quando há visitas.

Mas como “o costume do cachimbo é que põe a boca torta”, às vezes, já deitada, pronta para dormir, levanto-me e ponho a mesa… do café! Olho maravilhada e me dou conta de que, há muitos anos, quando saio para trabalhar, não tomo café. Paro na Mercearia Diniz, bebo um cafezinho, quando muito, como um pão de queijo e toco o carro… É cômodo e compatível com o corre-corre da vida de quem pega no batente cedo.

Ensinei ao neto Lucas, depois à neta Luana, que não demonstraram animação, mas insisto, mesmo correndo o risco de ser uma vó chata. Pasmem! Pôr a mesa do café na casa da vovó é uma imagem doce para ambos e sobre ela falam com muito carinho, assim como da outra cultura de conforto: a cochilada após o almoço.

O Lucas, que uma vez ficou escondido ao lado da geladeira, é tranquilo e acompanha-me na sesta e até cochila, mas a dona Luana de-tes-ta! Embora vá, não vendo a hora em que caio em sono profundo pra se mandar dali: “Ô Lucas, vê se a vovó já dormiu pra gente sair; quero ir pro computador…”. Dei uma sonora gargalhada: “Luana, eu ainda não dormi. Fica quieta!”.

A neta Maria Clara, embora ainda bem pequena, tem muito da pinga-foguice da Luana. Levo-a para a cama depois que almoço e minha sesta é interrompida N vezes pelos seus dedinhos em meus olhos, sinalizando que não está gostando daquilo… A “vozice” teima e teima em cochilar e ela acaba dormindo também… Momentos de ternura.


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Comentários

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Salete da S. Neres

Fátima, depois que comentei lembrei que não escrevi que a coisa que eu mais lembro da casa de minha avó é da mesa posta para o café da manhã. Uma mesona cheia d egente. Só netos na férias erámos dez. Uma ternura antiga que me marcou muito. Na casa dos meus pais a coisa era mais corrida, tanto meu pai quanto a minha mãe trabalhavam e saiam muito cedod e casa, mas sábado e domingo tomávamos o café juntos. Uma de minhas irmãs morria de raiva porque era acordada para tomar café rsrsrssr

Salete da S. Neres

Ternura é uma coisa que se ensina a sentir. Quem não foi ensinado não sabe. Fátima Oliveira tua crônica é pura ternura e o que estás ensinando aos teus netos é reconhecer ternuras.

Mari

Para mim a crônica é uma lição de vida, saudável e de carinho. Comer numa mesa posta é sim sinal de cuidados familiares que todo mundo tem o direito de receber e de dar. Não é frescura.
XXXX
Pular o café da manhã é a marca de um estilo de vida nada saudável e caótico
Catherine Collins, nutricionista

Quem sai de casa sem tomar café da manhã tem um risco maior de desenvolver doenças cardíacas graves, aponta um estudo publicado no American Jounal of Clinical Nutrition…
… Pular a primeira refeição importante do dia pode aumentar as taxas de insulina no sangue, o que pode resultar em diabetes. De acordo com os cientistas, o grupo de risco é formado por adultos que mantêm o hábito de não tomar café da manhã desde a infância – o que significa que, aos 20 anos, a pessoa já começaria a trilhar o perigoso caminho rumo a futuras doenças.
… “Pular o café da manhã é a marca de um estilo de vida nada saudável e caótico”, enfatiza a nutricionista Catherine Collins, que fez parte do estudo.

Humberto

Cada pessoa retém na memória o que vivenciou. E pode ter saudades ou alívio disso.

Eugênia Lobato

Memórias bem bonitas, carinhosa e que demonstram um estilo de vida que vinca costumes familiares. parabéns por escrever tão bem e de modo aconchegante

Clara

Que coisa linda. Na minha humilde família não tinha xícaras ou pires, nem mantegueiras ou toalhas limpas todos os dias.

Tinha gente tombando de cansaço, que dormia feito pedra até acordar atrasado pro trabalho no dia seguinte. Ninguém nem lembrava do café.

Minha mãe me ensinou a chamar tudo o que é desnecessário de "frescura". E dá-lhe guardanapos de pano!

As mulheres de antigamente não souberam o que é ter uma vida decente. Imagine, lavar guardanapos de pano?!

Penso eu que não serei uma boa esposa…

Mas acho que posso ser feliz mesmo assim.

    Henrique Amorim

    Também me lembro das minhas manhãs do fim dos anos 80 de forma semelhante à da Clara. Acho que o café verdadeiramente representativo do brasileiro que teve a sorte de tê-lo em sua infância consistia em margarina com pão (da época que custava o correspondente a 10 centavos de real de hoje) e café preto… E também tenho saudades disso. Café preto, pão com "casquinha" e café preto. E do meu pai (cobrador de ônibus) acendendo um Derby com café (no copo americano ou de requeijão) do lado de fora de casa, pois a mãe, "onça brava", não deixava que ele fumasse na cozinha.
    Gostaria de ter lembranças aristocratas do meu café assim, infelizmente, nem todo mundo nasceu no berço da elite rural saudosista.

    Humberto

    Fátima Oliveira da elite rural saudosista? Aristocrática? Desde quando meu amigo? Vá se informar. Eu sou de uma família pobre, pai motorista de ônibus e mãe cozinheira, cuidado por uma tia, mas em minha casa havia mesa posta para as três refeições, dias e dias só arroz com feijão e alguma abóbora e ovo. Carne não mais que uma vez por semana. Mas sempre bebi café em xícara de porcelana. Lembro até a marca. Porcelana Schmidt. Experimenta degustar um café numa xícara de porcelana e compara com um copo de vidro qualquer. Há diferenças. A diferença é de carinho mesmo. Há famílias que se viram pra dar essas coisas aos seus. E dão. Outras são relaxadas mesmo.

    Henrique Amorim

    Um conjunto de café de Porcelana Schmidt custa R$ 800,00. Mesmo hoje, que estou bem empregado como pesquisador, não a compraria. Cada um com suas prioridades, correto?

    Alberto

    Sem dúvida, cada família e cada pessoas define suas prioridades. Mas há famílias que priorizam ternuras

Larissa

O que eu gosto em Fátima Oliveira é essa capacidade de não se perder; de reter suas raízes, um pouco como Sheila Raposo em "A vergonha que não tenho de ser nordestina": … " Sou nordestina. Sou apaixonada pela minha terra, pela minha cultura, pelos meus costumes, pela minha arte, pela minha gente…. Não me envergonho da minha história, não disfarço o meu sotaque, não escondo as minhas origens. Eu sou tudo o que escrevi, sou a dor e a alegria dessa terra."

Larissa

Penso que uma das coisas que perdemos muito na vida contemporânea nos centros urbanos, muito mais nas metrópoles, foram os momentos de sociabilidade familiar das refeições, como tomar café,almoçar e jantar. Fátima nos fala de rituais familiares que conformam momentos de possibilidades do estar juntos, que sem dúvida contribuem para o bem-estar das pessoas. Também entendo que fazem falta, pois constituem momentos de crescimento.

Humberto

Lembro-me bem dos lavatórios de madeira feitos no interior do Maranhão, contendo um lugar para a bacia, abaixo outro lugar para a jarra de água; com porta-toalha e alguns até com espelho, os mais chiques.
Era um móvel essencial e de muita utilidade quando não havia água encanada. Ficava na sala de jantar ou copa, sempre. É incrível, mas não encontrei na internet nenhuma foto de lavatório, como os que conhecemos, feitos pelos antigos marceneiros.
O seu uso, digo, o do lavatório era tão arraigado que com a chegada da água encanada, em muitos lugares todas as casas possuiam uma pia de lavar as mãos na sala de jantar ou na copa. Não era costume lavar as mãos na pia do banheiro!
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Escrevi o comentário acima em 19 de julho de 2011 03:43, no Blog Tá lubrinando, onde a crônica está ricamente ilustrada http://talubrinandoescritoschapadadoarapari.blogs

LULA VESCOVI

Legal.

Alberto

Zonas de conforto é uma terminologia que eu desconhecia, mas achei de muita propriedade e beleza. Também fiquei muito encantado com as conversas sobre seus netos. Feliz de quem tem uma avó tão coruja. Mas principalmente reli a crônica duas vezes porque ela em si é uma zona de conforto, coisa importante na vida agitada que levamos hoje em dia.

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