Fátima Oliveira: Racismo impede a santificação de negros no Brasil

Tempo de leitura: 3 min

Mulundus

São Raimundo Nonato dos Mulundus (DUKE)

O racismo é impedimento à santificação de negros no Brasil

Fátima Oliveira, em O TEMPO

Médica — [email protected] @oliveirafatima_

Estou virando santeira, restrita a santas e santos negros, que o povo canonizou, a quem o Vaticano não reconhece a santidade; todavia, não se recusa a ganhar rios de dinheiros em nome deles.

A supremacia numérica dos santos brancos é asfixiante num mundo que tem o branco como padrão, até para a santidade! Há pessoas negras que, embora as declarações de “milagres” sejam exuberantes e confirmadas pela fé e pela devoção popular, não são reconhecidas pela Santa Sé como santas! O catolicismo popular é uma coisa, e o oficial, outra, não apenas no Brasil, onde as nuances de racismo são explícitas sobre a santidade negra, o que despertou minha atenção.

Caso da beata Nhá Chica (1810-1895), mineira de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, que foi para Baependi (MG) ainda criança. Era negra, e a imagem dela para a beatificação foi embranquecida. Fui averiguar se ela era negra. Era! (“Nhá Chica é uma santa negra que nasceu escrava?”, O TEMPO, 14.5.2013; e “A santa Nhá Chica é uma mestiça descendente do estupro colonial”, O TEMPO, 30.7.2013).

Em Baependi, há uma fábrica de dinheiro, o Santuário da Imaculada Conceição, que engloba a igrejinha de Nhá Chica (onde ela está sepultada), a casa e o Memorial de Nhá Chica – feitos com o dinheiro dela, que não era pobre, apenas praticava a simplicidade voluntária!

Há a Irmã Benigna Victima de Jesus (1907-1981), mineira de Diamantina, negra que comeu o “pão que o diabo amassou” nas mãos das freirinhas brancas da congregação Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade. Hoje é considerada santa – o processo de beatificação está no Vaticano desde 26.1.2013.

Na senda da santidade negra, relembrei são Raimundo Nonato dos Mulundus, vaqueiro preto escravo, sobre o qual há um capítulo em meu romance “Então, Deixa Chover” (Mazza Edições, 2013); e escrevi “Mistérios e farsas sobre são Raimundo Nonato dos Mulundus” (O TEMPO, 12.7.2016). Não há processo de beatificação do santo vaqueiro, pois não é do interesse da arquidiocese encaminhar!

Não descobri o ano de sua morte. Em 1858, já era rezada a novena, e havia uma capela de palha para o santo vaqueiro, a partir da qual foi erguido o Santuário de são Raimundo Nonato dos Mulundus, de rara beleza; e entre 1901 e 1908, o padre Custódio José da Silva Santos, de Vargem Grande, celebrava a festa em Mulundus.

Escreveu a professora Dolores Mesquita: “Apesar do abandono em que vive, o altar onde celebram as solenidades religiosas permanece firme, sendo resistente ao sol e à chuva; diz o povo que não cai porque são Raimundo protege aquele santo lugar”.

As perseguições do oficialato católico ao santo vaqueiro beiram a insanidade e a ganância. A arquidiocese de São Luís, em 1930, declarou o festejo profano! Em 1954, o arcebispo dom José Delgado, acoitado pela polícia, “mudou”, como se fosse dono de uma obra popular, o Santuário de Mulundus para Vargem Grande, dando-lhe novo nome: Santuário de São Raimundo Nonato, bispo espanhol da ordem dos mercedários (1204-1240), santificado! Os romeiros não arredaram de Mulundus!

A arquidiocese decidiu disputar com Mulundus e dividir a fé do povo: “Comprou 180 hectares da fazenda Paulica, a 7 km de Vargem Grande, e fez uma capela para onde os romeiros em procissão conduzem a imagem de são Raimundo Nonato (o bispo espanhol) no dia 22 e a trazem de volta para a igreja no final do dia” (professora Dolores Mesquita).

Apelo ao governador do Maranhão, Flávio Dino, que restaure as ruínas do Santuário de São Raimundo Nonato de Mulundus, que é um patrimônio do povo negro do Maranhão, e o devolva ao povo!

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Comentários

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Fátima Oliveira

Muito grata pela leitura e comentários.
Abaixo um link, onde encontrarão várias fotos feitas por Pierre Verger, em 1948, no Santuário de São Raimundo Nonato de Mulundus, durante os festejos do santo vaqueiro em 1948, em Mulundus, Vargem Grande Maranhão
(basta passar o cursor em cada foto que aparecerá a identificação)
Fotos de Pierre Verger sobre o Maranhão
http://www.museuafro.ufma.br/site/index.php/fotos-de-pierre-verger-sobre-o-maranhao/

alexandre

milagres na igreja não são como nas seitas midiaticas onde um aleijado entra empurrado e
apos um cuspe sai andando.
milagres são um acontecimento raro, uma interferencia divina no curso da vida.
sua prova merece intença pesquisa para sua aprovação.
muitos dos ditos santos populares teem seus milagres apenas ditos de tradição oral
não ha provas dos mesmos e muitos destes santos populares são pessoas de fé que foram
benzedores que pela força de sua fé promeveram curas comuns baseadas na fé mas nada
milagrosa
eu ja fui curado por benzedeira por ter cortado a mão profundamente com faca,
outra vez por ter espirrado em meus olhos a seiva de comigo-ninguen-pode que é uma planta
venenosa, curado pela fé de benzedeiras , mas sem milagres.
peço a articulista mais parcialidade e mais estudos.

Lukas

Uns se contentam apenas a ensinar o padre a rezar a missa, a Fátima Oliveira quer ensinar ao Vaticano a como canonizar os santos.

Não é pouca coisa não.

    Fátima Oliveira

    Lukas, obrigada pela leitura e pelo comentário!

    Nunca tive a pretensão de ensinar vigário a dizer missa, e nem ao Vaticano a canonizar santos (Aliás, vc conhece as regras/rituais para beatificação e canonização? São bem interessantes!)

    Ocorre que malfeitorias e vigarices são da conta de todo mundo! Como cidadã tenho o direito e o dever de falar sobre tais práticas que considero abusivas e no caso do santo vaqueiro, racistas!

    Espero continuar merecendo a sua leitura.

    Não escrevo para agradar as pessoas. Sou uma livre-pensadora que escreve para “tocar” as pessoas.

    E “tocar” as pessoas possui diferentes significados, alguns favoráveis e outros nem tanto, mas todos importantes: eu contribuo para que elas pensem e assim possam elaborar suas próprias opiniões.

    Repito: escrevo para tocar as pessoas, porque é verdade. E fico feliz por você ter sido tocado, assim poderá refletir mais.

    Lukas

    Lendo seu texto fiquei pensando que, se o que impede a santificação de negros é o racismo, o que impediria a santificação de brancos brasileiros? Há quantos santos brancos brasileiros?

    Lembrando sempre que, apesar do racismo da igreja católica que impediria a santificação de negros, a padroeira do Brasil é uma das muitas Nossas Senhora negras.

Allan Patrick

Lembro ainda da beata Maria Araújo de Juazeiro. Não é menor o fato de que por ser ela negra a Igreja não tolerou reconhecer o milagre da hóstia, quando havia reconhecido para acontecimentos semelhantes na Alemanha.

    Fátima Oliveira

    Obrigada, Allan. Não conhecia a beata Maria Araújo de Juazeiro. Vou pesquisar sobre ela

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