Em defesa de uma civilização do não-trabalho

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Em defesa de uma Civilização do Não-Trabalho

Resenha de “Ruptura: anomia na civilização do trabalho”, de Antonio Rezk, por  Marilucia M. Meireles e Marco Aurélio F. Velloso

Trata-se de uma publicação póstuma, de autoria de Antonio Rezk (1933-2005), que registra as reflexões desenvolvidas nos últimos quinze anos de sua vida frente ao impacto da queda do muro de Berlim e da dissolução da União Soviética.

Desde o início da década de 90, Rezk reuniu, em encontros e debates, intelectuais e companheiros de militância política para a troca de ideias sobre o novo cenário internacional. Uma das decorrências desses encontros, inclusive, foi a criação do MHD – Movimento Humanismo e Democracia, em 1992, marcado pela publicação de um manifesto considerado, na época, como uma das primeiras leituras inovadoras do novo quadro político, econômico e social.

O resultado deste esforço vigoroso é o conteúdo do livro que, em decorrência da dedicação da família e de seus amigos, sai agora do prelo.

Rezk, fisgado pela análise da experiência psíquica de exclusão vivida pelos desempregados, engaja-se na investigação das relações entre as estruturas sócio-econômico-políticas do capitalismo contemporâneo — com as ideologias que o sustentam — e o mundo psíquico dos indivíduos sujeitados às vicissitudes e incertezas deste momento histórico.

Nesta exaustiva análise, faz um percurso vigoroso, desnudando a alienação implícita nas relações de trabalho existentes no modo de produção capitalista, desvendando os paradoxos que atravessam a vivência de ostracismo daqueles que estão sendo alijados do circuito da produção e consumo, substituídos cada vez mais celeremente por máquinas.

Denuncia a ideologia de submissão ao trabalho que penetra nosso cotidiano, reproduzindo, no íntimo de nossas mentes, a subserviência ao capital.

Percorrendo sua análise, nem por um instante, cede às tentações fáceis de desacreditar nos homens, na ciência ou na tecnologia. Manifesta uma esperança enorme na História e na Humanidade e sabe que a ruptura final com a civilização do trabalho e do capital resultará do desdobramento das forças produtivas e da aplicação do conhecimento na apropriação do mundo pelos homens.

É por aí que assume corajosamente o papel de defensor da Civilização do Não-Trabalho e passa a nos comunicar suas conclusões, introduzindo-nos nas implicações desta palavra que era, para ele, quase mágica, carregada de múltiplos sentidos: RUPTURA.

A tese central de Rezk, para citar seu próprio texto, está expressa nestes poucos parágrafos:

“Como o trabalho humano é o fulcro da economia política — o trabalhador tanto produz, quanto consome, sendo dela o seu dínamo —, a função econômica do trabalhador precisou ser sacralizada com a ideologia do trabalho. Com isto alimentou-se a auto-estima da massa trabalhadora, ao ponto de ser considerada uma classe, com consciência, cultura e partido próprios. E sacralizada na sua presumida missão libertária.

No entanto, essa consciência, essa cultura e seus partidos políticos nada mais são do que subproduto do modo de produção capitalista, sob o mascaramento da democracia formal, liberalmente dirigida por um simulacro de liberdade: o trabalhador livre.

Pois chegou o tempo do seu desmascaramento, ainda que este desmascaramento seja doloroso ao mundo do trabalho. E um desmascaramento que não se realiza pelo combate ideológico, senão pelo desenvolvimento avançado dos meios de produção — a informática, a robótica e a mecatrônica — que já adquiriram grande grau de independência com relação à energia humana como força de trabalho.

Naturalmente, a decadência do trabalho humano afeta a auto-estima do trabalhador, cuja mente ainda está dominada pela ideologia do trabalho. Subjugado, embora, mesmo assim, o empregado da economia sentia-se parte de um sistema social lógico, embutido na sua mente como algo saudável e próprio da racionalidade humana. Pertencente, pois, a um mundo acabado. É este mundo, configurado na consciência social como algo de extremo valor — o valor da sobrevivência — que o trabalhador sem trabalho (destituído de emprego) perde conclusivamente.

A decadência econômica da mão de obra e da inteligência servil joga bilhões de seres humanos na insegurança do seu devir. Torna ineficiente a organização política da massa trabalhadora.

Aquilo que chamamos de “massa trabalhadora” está perdendo força, em todo o mundo, nos seus embates políticos. O proletário não luta mais por melhores salários e melhores condições de trabalho. Nem por ampliar os seus direitos políticos — que ele está perdendo. Busca qualquer emprego, por qualquer salário.

(…)

Por outro lado, a decadência do trabalho humano também afeta as razões de dominação da economia política e de seus arautos, que passaram séculos impondo e louvando a ética do trabalho, enquanto o desenvolvimento do próprio sistema realizava a sua precariedade.” (p. 217)

Para chegar até aí, vai tecendo, com toda a paciência, a trama de seus argumentos, buscando nos autores clássicos os fundamentos para a sustentação de suas idéias.

Rezk, como um homem de paz, corajoso e intelectualmente independente, tinha muito ainda a contribuir para a abertura de novas perspectivas para os que desejam a civilização e não a barbárie.

Comprometido com o avanço da História e da Humanidade, procurou descortinar rumos novos, estrategicamente viáveis no cenário controverso da civilização da anomia que assola nosso mundo atual.

No umbral de novas crises que nos dias atuais se caracterizam como efetivamente globais, suas ideias antecipam muitos dos paradoxos que dominarão a luta política e a busca de novas formas de organização social e de luta revolucionária pela superação das desigualdades extremas criadas pelo capitalismo contemporâneo.

Marilucia M. Meireles

Marco Aurélio F. Velloso


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Comentários

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rogeriomaestri

Sou extremamente burro, eu não entendi como funciona esta tal de civilização sem trabalho. Quer dizer ninguém come, ninguém veste, ninguém mora, pois até segunda ordem para se fazer o pão se precisa do trigo, e para ter o trigo alguém tem que plantar.
Não sei como se fará isto. Talvez robôs faram os serviços, porém quem projetarão os robôs.
Me parece que os Europeus estão caindo nesta civilização sem trabalho, eles deixam para os asiáticos, os africanos e os latino-americanos esta coisa chata que se chama trabalho.

    abolicionista

    Tem razão, você é extremamente burro.rs

Leo V

O principal produto que o capitalismo deve produzir é o próprio trabalho, na forma de emprego. É o alíbi social do crescimento econômico. Estar desempregado é a morte acelerada, estar empregado é a morte lenta, a sobrevivência, a não-vida.

Por que uma certa esquerda toma como bandeira estratégica sua e horizonte a criação de empregos? Pior ainda, a de qualquer emprego?

E S Fernandes

Já ouvi dizer que no atual desenvolvimento das forças produtivas, apenas 17 minutos de trabalho por dia já seriam suficientes para manter a humanidade. Todo o trabalho a mais seria sobretrabalho, mais valia, que expande o Capital.

LULA VESCOVI

Óbvio que a glorificação do trabalho só serve a classe dominante.A mecanização e a robótica tem que estar a serviço da emancipação da espécie humana e não para criar uma massa de imprestáveis.O homo sapiens só tem a crescer com a redução do trabalho.99,99999% do trabalho humano é alienante.Essa de que temos que achar um trabalho prazeroso é uma baita enganação.

DonGiovanni43

Alguém ja ouviu falar no Movimento Zeitgeist?

Acho que o caminho para um futuro mais satisfatório e feliz para a humanidade está nas proposições alí contidas. O trabalho deveria existir apenas na proporção em que fosse vital para a produção de todo o necessário para a manutenção responsável e sustentável da nossa existência e de todo o planeta.
http://movimentozeitgeist.com.br/index

Uma existência mais feliz é possível para todos nós. Se não agora, pelo menos num futuro não tão distante.

DonGiovanni43

A força e a perpetuação desse sistema servil mercantilista, patrimonialista está em nosso consentimento.

"A servidão moderna é uma escravidão voluntária, aceita por essa multidão de escravos que se arrastam pela face da terra. Eles mesmos compram as mercadorias que lhes escravizam cada vez mais. Eles mesmos correm atrás de um trabalho cada vez mais alienante, que lhes é dado generosamente se estão suficientemente domados. Eles mesmos escolhem os amos a quem deverão servir. Para que essa tragédia absurda possa ter sucedido, foi preciso tirar desta classe, a capacidade de se conscientizar sobre a exploração e a alienação da qual são vítimas. Eis então a estranha modernidade da época atual. Ao contrário dos escravos da Antiguidade, aos servos da Idade Média e aos operários das primeiras revoluções industriais, estamos hoje frente a uma classe totalmente escrava, que no entanto não se dá conta disso ou melhor ainda, que não quer enxergar…"

Assim começa "A servidão moderna", que é um livro e um documentário de 52 minutos produzidos de maneira completamente independente por Jean-François Brient e Victor León Fuentes.
http://www.youtube.com/watch?v=ibLDSYMACq4 -Da Servidão Moderna

Vale a pena ver.

Somos escravos, isso é certo, portanto, pelo menos, devemos de inicio tomar consciência disso para podermos tomar as atitudes necessárias se quisermos um futuro melhor para nós e nosso filhos e netos.

FrancoAtirador

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Parte 1

Excerto da introdução à edição brasileira do livro 'O Direito à Preguiça', de Paul Lafargue

Por MARILENA CHAUÍ

A preguiça, todos sabem, é um dos sete pecados capitais.
Ao perder o Paraíso Terrestre, Eva e Adão ouvem do Senhor as terríveis palavras que selarão seus destinos.
À primeira mulher, Deus disse: “Multiplicarei as dores de tua gravidez, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te levará ao homem e ele te dominará.” (Gn. 3:16). Ao primeiro homem, disse Jeová: “Maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua vida (…). Com o suor de teu rosto comerás teu pão, até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás.” (Gn. 3:17-19).

Ao ócio feliz do Paraíso segue-se o sofrimento do trabalho como pena imposta pela justiça divina e por isso os filhos de Adão e Eva, isto é, a humanidade inteira, pecarão novamente se não se submeterem à obrigação de trabalhar.
Porque a pena foi imposta diretamente pela vontade de Deus, não cumpri-la é crime de lesa-divindade e por essa razão a preguiça é pecado capital, um gozo Cujo direito os humanos perderam para sempre.

O laço que ata preguiça e pecado, é um nó invisível que prende imagens sociais de escárnio, condenação e medo.
É assim que aparecem para os brasileiros brancos as figuras do índio preguiçoso e do negro indolente, construídas no final do século XIX, quando o capitalismo exigiu a abolição da escravatura e substituiu a mão-de-obra escrava pela do imigrante europeu, chamado trabalhador livre (curiosa expressão numa sociedade cristã que não desconhece a Bíblia nem ignora que o trabalho foi imposto aos humanos como servidão!).
É ainda a mesma imagem que aparece na construção, feita por Monteiro Lobato no início deste século, do Jeca Tatu, o caipira ocioso devorado pelos vermes enquanto a plantação é devorada pelas saúvas.

Nesse imaginário, “a preguiça é a mãe de todos os vícios” e nele vêm inscrever-se, hoje, o nordestino preguiçoso, a criança de rua vadia (vadiagem sendo, aliás, o termo empregado para referir-se às prostitutas), o mendigo – “jovem, forte, saudável, que devia estar trabalhando em vez de vadiar”.
É ela, enfim, que força o trabalhador desempregado a sentir-se humilhado, culpado e um pária social.

Não é curioso, porém, que o desprezo pela preguiça e a extrema valorização do trabalho possam existir numa sociedade que não desconhece a maldição que recai sobre o trabalho, visto que trabalhar é castigo divino e não virtude do livre arbítrio humano?

http://elogioapreguica.com.br/?page_id=101

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