Dalva Garcia: Reforma do ensino médio visa diminuir desigualdades ou é mistificação das massas?

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A BNCC: cultura ou mistificação das massas?

por Dalva Garcia*, especial para o Viomundo

E tudo é uma parcela do diverso
Cristal dessa memória, o universo.
Jorge Luis Borges

O ato de educar pode adquirir diversos significados: formar, sociabilizar, ensinar, clarear, modelar, conscientizar, integrar, moldar.

São tantas as implicações dessa ação, ao mesmo tempo simples e complexa, que constantemente nos perguntamos pelo seu sentido como se não fosse mais possível reconhecer o traçado no entrecruzamento das linhas de um bordado.

Do universo caótico do avesso vai, aos poucos, se configurando as formas no lado direito.

A linha que fura o tecido busca o caminho como quem procura um objetivo que só pode se revelar gradualmente num processo criativo.

Exatamente por isso que educar é também criar. Ação que exige cuidado, intencionalidade, mas que, sobretudo, transcende a si mesma desvelando a riqueza múltipla do humano.

Machado de Assis, cronista perspicaz, trata com requinte o tema em O espelho – esboço de uma nova teoria da alma humana, pequeno conto que busca investigar as agruras da essência humana.

No conto, o personagem Jacobina — homem humilde de 45 anos, que subiu na vida por conta de nomeação a um posto militar — é convidado a participar de uma acirrada discussão metafísica sobre a existência da alma.

Por princípio, avesso por princípio a debates, ele afirma existir a alma humana. Só que não uma, mas duas: uma, que olha de dentro para fora; e outra, que olha de fora para dentro.

A alma exterior poderia ser um espírito, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação ou mesmo um simples botão de camisa e tem por ofício transmitir a vida, assim como a interior.

Muda de natureza e estado de modo que a alma de alguém pode ser, nos primeiros anos, um chocalho ou um cavalinho de pau e, mais tarde, um título em uma associação.

Esta descoberta se deu quando Jacobina fora nomeado alferes da guarda nacional.

A nomeação causara o orgulho na família e vizinhos e havia conduzido uma tia, que morava em um sítio, a levar o sobrinho e a farda com ela.

Jacobina passou a ser chamado de Sr. Alferes pela tia, amigos e escravos.

O entusiasmo da tia a leva ao ponto de mandar instalar um grande espelho no quarto do jovem, obra rica e magnífica que destoava do resto da casa.

Os caprichos no tratamento faziam a consciência do homem esmorecer e a do alferes se tornar mais viva.

Certo dia, a tia é obrigada a deixá-lo para acudir uma filha doente.

Abandonado na solidão graças à fuga dos escravos do sítio, o personagem diante do “cochicho do nada” se entrega ao sono: sonhava estar no meio da família e dos amigos exibindo sua farda.

Amigos ofereciam o posto de tenente, capitão, major… Em depressão, sem fome, depois de oito dias, nosso amigo se olha no espelho e não é capaz de ver uma figura inteira, mas uma sombra vaga e esfumaçada.

Com medo da loucura, Jacobina tem uma inspiração inexplicável: lembra-se de sua farda.

Veste-se, arruma-se e reaparece diante do espelho a figura integral; o ente autômato torna-se novamente animado.

O ritual da farda diante do espelho  ajuda-o a suportar mais seis dias de solidão sem senti-los.

Machado de Assis nos coloca diante do espelho humano, da representação da imagem que só pode se configurar com os outros.

Sendo assim, não podemos negar que toda ação educacional envolve valores que se projetam. Aquilo que esperamos cada jovem seja capaz de reconhecer no espelho de sua existência.

Todavia, é preciso cuidado.

Embora um projeto educacional exija dos envolvidos a clareza do que se quer e só ganhe sentido na própria ação, a ação educativa transcende o que a motivou.

Não estaríamos correndo o risco de limitar as identidades às molduras de nossos espelhos?

ENTRE MOLDES E MOLDURAS 

Educar é quase sempre perguntar qual ser humano queremos formar.

Formar é colocar na forma, moldar.

Se analisarmos a própria dimensão humana, perceberemos que há jeitos de dar forma que vão além das formas (dos moldes).

Foi assim que, no contato com tradição cultural, conseguimos dar formas diversas e múltiplas ao mundo.

E não apenas dar e criar formas, mas atribuir-lhes sentido. Transmitir formas e sentidos (informar), transfigurá-las.

A transformação só é possível, pois no humano reside a possibilidade de repensar os valores que criamos.

Como educar para valores, se a desonestidade é entendida como ordem natural de um moralismo hipócrita? Se a desigualdade guia a ação da justiça?

A perplexidade e a indignação que envolvem essas questões podem conduzir à tendência de se resgatar princípios universais que imaginamos estarem esquecidos ou adormecidos na educação dos jovens e crianças, tais como solidariedade, honestidade, protagonismo, flexibidade.

Todavia, nenhum princípio moral, por mais bem intencionado, fundamentado e sedimentado que seja, poderia transformar por si mesmo as ações.

Por quê? Pelo simples fato de que tais valores não são entidades, mas criações que surgem da necessidade do homem de pensar  a si mesmo.

Não é à toa que os elementos filosóficos que permitiriam delinear um conceito de cidadania está presente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada no dia 04 de dezembro pelo Conselho Nacional de Educação, de caráter normativo, sem necessidade de passar por votação no Congresso ou sanção presidencial.

O documento retoma os princípios da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e fixa como finalidade do Ensino Médio, etapa final da Educação Básica, a consolidação e o aprofundamento do conhecimento adquirido no Ensino Fundamental.

Também a preparação para o trabalho e cidadania do educando, a fim de que ele aprenda e seja capaz de se adaptar com flexibilidade às condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores.

Não é preciso muita atenção para perceber que o cenário de indefinições enfrentado pelo Ensino Médio, desde o breve período de redemocratização do país, acaba por se desenhar com clareza nestes tempos de obscurantismo: o jovem deve ser capaz de se adaptar  às  condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores.

O que significa essa educação?

Não  visa ao acesso  do jovem  à universidade, mas educação para o mercado de trabalho. Esta é a  finalidade essencial da reforma por decreto.

Ainda no mesmo documento pode-se ler:

“Para atingir essa finalidade é necessário assumir a firme convicção de que todos os estudantes podem aprender e alcançar seus objetivos, independentemente de suas características pessoais, seus percursos e suas histórias”.

Ouso afirmar que o apelo à diversidade se converte na lógica de uma identidade abstrata que, entre moldes e molduras, entende que educar é moldar ou, na letra da norma educacional, ser capaz de se adaptar.

Adorno e Horkheimer já afirmavam na Dialética do Esclarecimento:

“O mito converte-se em esclarecimento e a natureza em mera objetividade.

O preço que os homens pagam pelo aumento do seu poder é a alienação daquilo sobre o qual exercem o poder.

O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta como os homens.

Este os conhece na medida em que pode manipulá-los… Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato da dominação”.

Se na lógica de Bacon “saber é poder”, no suposto dinamismo das políticas públicas de educação no Brasil, ‘sabe quem manda e obedece quem tem juízo.’

Nesse contexto, a fórmula de Bacon se traduz de forma mais perversa, uma vez que instituições bancárias e empresariado, protagonistas e propagandistas da BNCC, não só detêm o poder, mas são aqueles que devem saber educar os que não podem e não sabem se guiar pela lógica da produtividade.

Na contramão dos propagandistas da reforma educacional pergunto:

*Trata-se de delinear um currículo elementar comum a todos os brasileiros com o objetivo de diminuir desigualdades ou trata-se de um plano para equalizar o conhecimento e planificar possibilidades?

*Trata-se de um  projeto de mistificação das massas em nome da educação e do esclarecimento?

Respondem Adorno e Horkheimer:

“.. não só as qualidades são dissolvidas no pensamento, mas os homens são forçados a real conformidade.

O preço dessa vantagem, que é a indiferença do mercado que nele vêm trocar mercadorias, é pago por elas mesmas ao deixarem que suas possibilidades inatas sejam modeladas pela produção de mercadorias…

Os homens receberam o seu eu como algo pertencente a cada um, diferente dos outros, para que ele possa com tanto maior segurança, se tornar igual”.

Não é à toa que a BNCC permite aos jovens traçar “seu caminho” ou, mais precisamente, percorrer 5 possíveis itinerários oferecidos, com 30% de sua educação à distância,

São os itinerários: linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica profissional.

Seria, por fim, eliminada a forma disciplinar no novo currículo?

Não, essa fórmula se mantém na obrigatoriedade de língua portuguesa e matemática para a Educação Básica e Ensino Religioso para o Fundamental.

Quais seriam as condições para a livre escolha da mercadoria oferecida nomeada de educação básica?

O MEC já as delineou: escolas com mais de 2 mil alunos, funcionando em tempo integral, deverão oferecer dois itinerários.

E as demais? As escolas que não atingem esse número de alunos? As que não funcionam em tempo integral, pois atendem as necessidades do aluno trabalhador?

A esses alunos cabe a distância da escola e a aproximação com a cultura digital formatada por Instituições mantidas pelo capital financeiro.

Afirmam os pensadores da escola de Frankfurt: a cultura é mercadoria paradoxal. Ela está tão completamente submetida à lei da troca que não é mais trocada. Ela se confunde tão cegamente com o uso que não se pode mais usá-la. Quanto mais destituída de sentido, mais toda poderosa se torna.

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Comentários

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dja

Esse artigo é de um prolexismo desnecessário. Um articulista de educação deve também ir à escola. Lá a realidade é outra. Educar criticamente é nos primeiros anos, isso é fato. Enquanto houver ilusão, o Brasil não vai progredir exponencialmente.

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