Cícero Querido: Doutor Krokowski e o homem de perfeita saúde

Tempo de leitura: 3 min
Construído em 1900, o sanatório Berghotel Schatzalp, em Davos,na Suíca, é mencionado no romance “A montanha mágica”, de Thomas Mann. Muitos anos depois acabou sendo transformado em hotel, que funciona até hoje. Foto: Wikimedia Commons

O doutor Krokowski

“No entanto, não será o caráter de antiguidade de uma história tanto mais profundo, perfeito e lendário, quanto mais próxima do presente ela se passar?”
A montanha Mágica, Thomas Mann

Por Cícero Querido*, especial para o Viomundo

Há histórias que precisam ser (re)contadas.

Tomo a liberdade de colocar em palavras escritas uma dessas, anedótica, que escutei ontem de um homem simpático, jovem e, à primeira vista, saudável — se é que cabe à vista, esse nobre porém limitado órgão do sentido, a impossível tarefa de certificar a saúde de outrem.

Preservarei, evidentemente, as identidades em sigilo, tanto a da vítima quanto a do algoz, sobretudo porque é pouco provável que os envolvidos se reconheçam confortavelmente nesta maniqueísta disposição que hoje lhes atribuo.

Fato é que a mim se fez necessário narrar o ocorrido, pois este me remeteu com irresistível força a uma outra história, mais antiga, mais longa, e incrivelmente melhor contada.

Vamos, então, à primeira, tal como a recebi:

“Doutor, você não acredita…certa vez fui levar minha companheira ao hospital, e o médico, após atendê-la, voltou-se para mim e me perguntou: “E essa sua tosse, hein? Tá estranha essa tosse…carregada!”

“Eu estava já há alguns dias com aquela tosse, doutor…mas sem febre, sem nada! O médico imediatamente pediu um raio-x, e logo que eu fiz o exame, xeque-mate: ‘Pneumonia! Olha aqui, eu sabia…Pneumonia, o sr. vai ter que ficar internado’. Minha esposa foi pra casa, doutor, mas eu fiquei…”

Intimamente exasperado, me limitei, com um sorriso mais duvidoso que o diagnóstico do relato, a responder: “Pois é…e o senhor estava bem!”.

Noventa e oito anos separam tal anedota da segunda história, reconvocada pela primeira, com toda força, à minha mente.

Esta foi publicada em 1924, pelo romancista alemão Thomas Mann, que a nomeou tomando de empréstimo uma imagem já utilizada por Nietzsche: “A montanha mágica”.

A narrativa acompanha Hans Castorp, “um jovem singelo”, em sua viagem, de visita, ao primo internado em um sanatório para acometidos por tuberculose, no alto de uma montanha em Davos-Platz.

Para que não se perca a força estética da passagem, transcrevo tal como na tradução para o português o momento em que Hans, em seus primeiros dias no sanatório, se encontra pela primeira vez com um dos médicos da instituição:

— Seja bem-vindo, sr. Castorp! Espero que o senhor se aclimate rapidamente e se sinta bem no nosso meio. Permita-me a pergunta: veio como paciente?

Era comovente ver como Hans Castorp se esforçava por mostrar-se cortês e dominar a sonolência. Sentia-se irritado pelo fato de estar tão pouco apresentável, e com a desconfiada soberba peculiar aos jovens, via no sorriso e na atitude confortante do médico apenas sinais de ironia indulgente.

Respondeu que passaria três semanas ali, mencionou o seu exame e acrescentou que, graças a Deus, gozava a mais perfeita saúde.

— Será? — perguntou o Dr. Krokowski, avançando a cabeça obliquamente, como para caçoar, enquanto o seu sorriso se acentuava.  — Nesse caso o senhor é um fenômeno digno de ser estudado. Eu, pelo menos, ainda não encontrei um homem de perfeita saúde.

Como a passagem permite vislumbrar, não tardará para que o jovem Hans adoeça sob o crivo do discurso médico e do autoritário controle dos corpos que se estabelece montanha acima.

Não é a pretensão e nem seria cuidadoso, aqui, ocupar a famigerada posição de “médico do dia seguinte”, e discorrer a respeito da acurácia dos questionáveis diagnósticos que figuram nas narrativas.

O que interessa, no caráter factual da primeira história ou na força expressiva da segunda, é examinar a questão que delas, dialogicamente, emerge.

Por que a abordagem diagnóstica da Medicina contemporânea ainda guarda tantas similaridades com a abordagem do Dr. Krokowski?

Por que, à revelia do sentido prático de nossas vidas, ainda somos impelidos a quedar nas montanhas mágicas, em suas mais variadas e reconstruídas arquiteturas?

Em que reside a força sedutora desse discurso, que se coloca pervasivamente ao encontro de seus destinatários, reivindicando ao monopólio de seus saberes o único norte capaz de orientar a forma como nascemos, vivemos e morremos?

Para Foucault, tal como colocou o filósofo em conferência realizada no Brasil, em 1974, “o que aparece desde os começos do século XX é o fato de que a medicina pode ser perigosa não na medida de sua ignorância e falsidade, mas na de seu saber, na medida em que ela constitui uma ciência.”

Subi as 957 páginas da Montanha Mágica há mais de 10 anos. Quer seja pela sua incomparável força poética, quer seja pela atualidade de sua crítica implacável, sinto como se dela nunca tivesse descido.

*Cicero Querido é médico especialista em Clínica Médica, mestrando do programa de pós-graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da USP.


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Comentários

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Zé Maria

Já dizia o Médico, que era Hipocondríaco,
(ou seria o Hipocondríaco, que era Médico?):

“Se você é Saudável,
é porque não foi
bem Examinado”.

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