Bruno Beaklini: Cristãos fazem parte, sim, da resistência árabe e palestina

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O estúpido argumento usado desde o tempo das cruzadas

Por Bruno Beaklini (@estanalise), no Monitor do Oriente Médio

O fantasma do pogrom de cristãos do Oriente Médio é um argumento usado com muita frequência para manobrar lealdades de populações inteiras.

Desde os tempos das cruzadas romanas e bizantinas, passando pelas investidas francesa, austríaca e britânica no século XIX, até a forma contemporânea de discurso sionista neopentecostal, a suposta “defesa da cristandade” vem sendo evocada.

A formação do Líbano, da Síria e a própria invasão sionista da Palestina implicam nessa manobra.

Particularmente, assim como milhões de árabe-brasileiros, cresci ouvindo um mito falsificado.

Por parte de pai venho de família libanesa (maronita) e mesmo tendo sido formado politicamente por um avô pan-arabista e pró-Palestina, o discurso da chancelaria francesa entrava no imaginário dos filhos, netos e bisnetos dos mascates da primeira leva que desembarcou do navio imigrante.

Na maturidade (etária ao menos), quando retomo a pesquisa das raízes e da formação do Líbano moderno, redescobri o óbvio.

Além do sectarismo, houve uma luta camponesa de proporções épicas no Monte Líbano.

Antes, uma revolta árabe na Palestina protagonizada por camponeses (fellahs) sela o destino dos povos até a conspiração Sykes-Picot-Sazanov .

Vejamos a confluência da conspiração europeia, a incompleta modernização otomana e a luta justa das famílias camponesas árabe-libanesas.

Sectarismo, revolta camponesa e intervenção europeia

Em 1842, os representantes europeus junto ao Império Otomano convenceram ao sultanato de Abdulmejid I sobre a necessidade da divisão da parte central e norte do território que forma o Líbano moderno em dois governos locais.

O duplo governo, Qaimaqamate, na denominação das autoridades otomanas, antecede o conceito de Mutasarrifate (equivalente ao governo de um conjunto de distritos).

Este seria subordinado a um governo mais amplo, de uma região inteira (como o Levante), denominado de Vilayet (segundo nível mais importante da administração otomana).

Esta denominação, iniciada na reforma administrativa de 1861, marca uma das fases do período Tanzimat — o da modernização otomana – onde já havia uma idealização eurocêntrica nas estruturas decisórias.

O governo de uma microrregião (de distritos) costumava atender tanto o perfil demográfico como a permanência das estruturas de poder territorial, em que a população camponesa garantia obediência aos senhores de terra locais, sob a liderança de uma espécie de consórcio de sheikhs proprietários.

Dois governos locais foram estabelecidos.

Um na parcela norte do antigo Emirado do Monte Líbano, sob um Qaimaqam (governador) maronita e aliado de melquitas.

Outro, mais ao sul, de maioria druza.

Ambos subordinados formalmente ao governo de Sidon, mas na prática sob a tutela militar de Damasco.

Com a divisão em dois governos sectários de estruturas oligárquicas e concentradoras de renda, o campesinato não apenas era explorado na sua força de trabalho, como também devia “obediência” a quem lhe oprimia.

Em 1834, a grande revolta árabe na Palestina, protagonizada por fellahs e alguns chefes de clãs revoltosos gerou o exemplo que a Cananeia e o Levante necessitavam.

Em 1858, o impacto dessa grande rebelião se materializa sob a liderança de Tanyus Shahin, um condutor de mulas e líder nato dos pagadores de tributos aos “nobres Khazen”.

A massa camponesa e suas guerrilhas irregulares conseguiram estabelecer uma República no Distrito de Kersewan (capital Jounieh), de maioria maronita.

Quando a luta se expande para o território de maioria druza, a lealdade sectária supera o interesse de classe.

Não para aí.

No início dos dois Qaimaqam, o governo de maioria maronita tinha relações privilegiadas com a França.

Já o governo druzo era bem relacionado com o Império Britânico e também tinha melhores conexões em Damasco e Istambul.

Desde 1523 havia um “acordo” que assegurava a França como potência “protetora das populações cristãs do Monte Líbano”.

Como afirmado acima, a revolta camponesa quando chegou ao território da “montanha druza” aumentou a tensão sectária e acionou as lealdades externas.

No ano de 1860, uma correlação de forças sectárias desfavorável levou ao grande massacre de 1860, tendo como alvo a população cristã.

A França foi vista como a única saída dos “católicos do Oriente”.

No século XIX, Napoleão III fez a mesma demanda, deixando evidente que o tratado informal de proteção assegurava garantias para a população maronita e suas estruturas de poder.

Resultado: em agosto de 1860 mais de 12 mil soldados europeus invadem o Levante, sob o aval do 31º sultão otomano.

Vale observar um “detalhe”.

Quem mais incentivou a divisão do Emirado do Monte Líbano em dois governos sectários foi o ministro de relações exteriores do Império Austríaco (casa dos Habsburgos), o chanceler Klemens von Metternich.

O sectarismo prevaleceu, além da injustiça no controle de terra, tributação e alistamento para campanhas de guerra ou defesa dos nobres Khazens.

A revolta camponesa é derrotada em 1861, mas deixa o seu exemplo.

Já o fantasma da intervenção de cruzados no Levante permanece operando como um estúpido discurso de legitimação do imperialismo. O Emirado do Monte Líbano, dissolvido para dar lugar aos qaimaqan maronita e druzo, embora mantivesse o poder da “nobreza levantina”, tinha relações de suserania com Istambul e na última fase, era regida pela dinastia Shihab, clã não sectário.

Como sempre a manobra se repete.

Quando as tropas de Bush Jr. entraram em Bagdá, no ano de 2003, uma das primeiras metas era romper o tecido social composto de mais de um milhão de famílias com credo religioso plural.

Estimular o sectarismo e tentar a vinculação dos cristãos de origem árabe como apoiadores dos invasores europeus é parte da linha do inimigo imperialista.

A população de credo cristão no Líbano, Síria e Palestina é fundamental na resistência

Não podemos negar a história do Grande Oriente Médio, Levante e Palestina.

Seria incorreto afirmar que jamais houve conflito sectário, assim como é um absurdo o argumento sionista de que a Palestina seria “uma terra despovoada”.

O mesmo se dá na pertença dos ritos e comunidades cristãs do Oriente.

Data do ano 1000 após o assassinato por Roma do profeta Issa (o brimo Jesus, palestino), logo nem a ortodoxia bizantina e nem o apostolado romano são mais antigos do que a cristandade que depois se torna arabizada.

A imensa maioria da colônia árabe no Brasil tem origens levantinas e cristãs, e o mesmo se dá na América Latina, incluindo a vigorosa comunidade palestina no Chile.

Este baluarte palestino ao sul do mundo, carinhosamente chamada de “los baisanos”, igual apelido do glorioso Club Deportivo Palestino, é alvo de permanente campanha externa tentando associar as famílias imigrantes da Palestina exclusivamente às fugas da perseguição e dos pogroms sectários.

Como já afirmado em artigos anteriores, o movimento nacional árabe, o nacionalismo árabe e a defesa intransigente da Palestina livre são ideias visceralmente ligadas às lideranças de origens cristãs do Oriente Médio.

Ser de origem cristã não é sinônimo de apoiador do imperialismo europeu, embora, infelizmente, exista uma relação histórica do falangismo libanês com a potência francesa e, em tempos recentes, com os anglo-saxões.

Antes de terminar esse texto descobri a série libanesa Tharwat Al Fallahin (Rebelião Camponesa ou Peasants Rebellion, https://www.lbcgroup.tv/episodes/1154/thawrat-alfalahin/en) da produtora Eagle Films, disponível em algumas plataformas de conteúdo, incluindo o YouTube aberto.

A obra de 2018, da autora Claudia Marchalian, é uma dramatização da luta camponesa no Monte Líbano da década de 1850 e deveria ser assistida por toda a descendência árabe latino-americana.


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Comentários

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Aracelis Garagnani

Pois é. A comunidade árabe brasileira é tão significativa para nós e nossas origens desde a tomada árabe da península ibérica por quase 1000 anos. Atualmente desde finais do século 19 e novamente , nos últimos 30 anos. É interessante saber desse jogo imperialista que desinforma sobre o papel de árabes cristãos na política local do oriente médio.

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