Breno Altman: A cultura do espetáculo, na FLIP

Tempo de leitura: 3 min

FLIP consagra cultura do espetáculo

por Breno Altman, no Opera Mundi

A Festa Literária Internacional de Paraty, que realiza sua oitava edição entre 4 e 8 de agosto, transformou-se em acontecimento marcante da vida cultural brasileira. Considerada um dos principais festivais mundiais do gênero, atrai milhares de participantes, atenção da imprensa e convidados ilustres. Nas devidas proporções, é um pequeno Woodstock das letras, que anualmente toma de assalto a aprazível cidade fluminense.

Apesar dos perrengues, pois a infraestrutura do município-sede costuma sucumbir ao excesso de visitantes, a diversão é garantida. Quem gosta de livros e ideias tem a chance de conviver com uma penca de bons autores e usufruir de opiniões sobre os mais diversos assuntos. Não é todo dia, afinal, que intelectuais renomados descem à planície e transitam entre o distinto público.

Mas há outras abordagens possíveis sobre a FLIP, além do entretenimento. Uma delas, quase irresistível, é comparar atividades nas quais essa intelectualidade antes se envolvia com seu papel atual, na era do avassalador predomínio da indústria cultural. A acareação talvez seja ilustrativa da reviravolta de sua função social após a crise dos projetos-mundo, no poente da Guerra Fria.

Escritores e artistas normalmente se reuniam, até então, para se posicionar diante de situações que alarmavam a sociedade e afetavam o mundo da cultura. Suas ferramentas eram congressos, simpósios e conferências que articulavam os intelectuais como agente coletivo. Os produtos dessas iniciativas – resoluções, manifestos ou declarações – buscavam a comunicação com outros setores sociais. O objetivo era utilizar talento e prestígio para construir vontades públicas.

Os exemplos brasileiros mais conhecidos, nesta lógica, foram o I Congresso Brasileiro de Escritores (1945) e as diversas reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência durante os anos 70. Mas são inúmeros os eventos que, durante décadas, expressavam o esforço autônomo da intelectualidade para forjar conexões com a sociedade, vertebrados por entidades representativas.

Marketing como ciência

Mesmo movimentos de ordem estética, como a Semana de Arte Moderna (1922), cuja estrutura era semelhante a um festival, faziam parte do reposicionamento político-cultural e procuravam um discurso criativo que se fundisse a determinados programas de país. Esse também foi o caso dos Centros Populares de Cultura, do Cinema Novo e do Tropicalismo, para falarmos de outras experiências notórias.

A intelectualidade e os artistas eram, como hoje, produtores de bens culturais, inseridos no mercado e concentrados em conseguir o ganha-pão através da comercialização de suas obras. Mas a esfera de cidadania, política ou estética, era razoavelmente protegida contra o assédio das razões mercantis, graças a uma rede de instituições estatais, partidárias e associativas que respaldava a cultura orgânica.

No entanto, o predomínio das ideias liberais, chancelado com o colapso do socialismo no Leste Europeu, foi limando essa blindagem e criando as condições para que o mercado estendesse seus tentáculos sobre espaços outrora salvaguardados. Apenas deveriam sobreviver criações que pudessem ser transformadas em mercadoria rentável, submetidas à lógica do espetáculo e regidas pelas normas do marketing, a principal ciência social dos novos tempos.

Darwinismo cultural

Ainda que diversas organizações, ligadas à arte e à ciência, continuem a promover encontros relevantes, essas realizações são cada vez menos divulgadas pela imprensa. O jornalismo cultural, aos poucos, também terminou capturado pelos interesses empresariais, que demandam aval midiático para acelerar a rotação de seus estoques.

O ímpeto dessa mudança mergulhou artistas e intelectuais em uma espécie de darwinismo cultural, marcado pelo medo de sucumbir em um ambiente no qual somente os escolhidos pelo mercado poderiam sobreviver. A competição e o individualismo derivados desse temor acomodatício acabaram por minar formas coletivas de organização e a própria integração da intelectualidade ao processo histórico.

Assim chegamos à FLIP. No lugar de entidades do ramo, o comando cabe a uma organização não-governamental alimentada com recursos de editoras e seus patrocinadores. Os escritores, de protagonistas, viraram atração. Cada autor ou cada patota em seu quadrado, opiniões e inspirações são exibidas à assistência, e acaba por aí a sinergia com os plebeus.

Casamata do liberalismo

Tudo é bem pensado. Não há estandes emporcalhando as ruas de Paraty. O festival é como um showroom a céu aberto: os produtores e suas obras podem ser vistos, ouvidos e tocados, mas não comprados. O mercado toma conta da cultura, porém preserva seu verniz de forma elegante, de tal sorte que os diletos visitantes não se sintam consumidores, mas personagens.

O simbólico dessa edição da FLIP talvez esteja no convite a Fernando Henrique Cardoso para fazer a palestra de abertura. Um dos maiores intelectuais da história brasileira, antigo cardeal do pensamento crítico, havia antes se convertido em presidente da República para fazer reformas pleiteadas por forças de mercado. Na feira de Paraty, colocou sua biografia e inteligência a serviço da indústria cultural.

O país vive mudanças econômicas, sociais e até políticas de relevância. A duras penas, a soberania pública tenta recuperar o terreno perdido ao espaço privado nos anos 90. Mas o mundo da cultura, cujo centro de gravidade deslocou-se para o eixo formado por empresas e mídia, aparece ironicamente como casamata de um liberalismo agonizante. Ainda que, nas calçadas paratienses, esse conservadorismo moderno transborde de charme, beleza e erudição.

Breno Altman é jornalista e diretor editorial do sítio Opera Mundi (www.operamundi.com.br)


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Comentários

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Marcia Noemia

Bater palmas de pé para um ex-presidente que chamou os aposentados do Brasil de "vagabundos". Me poupe! As pessoas estão em estado de amnésia? FHC não pediu para esquecermos o que ele tinha escrito? Então para que ouvi-lo?

Fernando

O colonista Ancelmo Gois transformou FHC num homem do povo:

A caminhada de FH

Quarta à noite, em Paraty, depois da palestra sobre Gilberto Freyre, na Flip, onde foi aplaudido de pé por uma plateia de umas 2 mil pessoas, FH deixou a Tenda dos Autores e seguiu caminhando, sem qualquer segurança, no meio do povo.
Foram 300 metros de passos lentos, atravessando a ponte sobre o Rio Perequê-açu e a Praça da Matriz.

Caminho que segue…

No trajeto, ouviu de tudo. Uma moça pediu para FH falar no celular com sua mãe, no Maranhão. Outra disse que o candidato devia ser ele e “não Serra”.
Mas uma mulher cortou um pouco o barato. Quando uma pessoa ao lado gritou “presidente, presidente”, ela interveio, contrariada: “Presidente não! Ex-presidente!”

Mas…

A maioria se comportou como fã diante de celebridade.

    leosfera

    ex-presidente também é chamado de presidente. é a convenção.

Gerson Carneiro

Essa glamourização repetina da FLIP pelo PIG não passa de uma tentativa de contra ataque com o intuito de minimizar a importância do I Encontro Nacional dos Blogueiros Progressistas. É isso mesmo, o PIG já está sabendo.

carmen silvia

Desde que manifestações artisticas e culturais se metamorfosearam em produto encontros desse tipo estão ficando cada vez mais parecidos com uma feira de um produto qualquer

ZePovinho

http://www.4shared.com/document/LTnRH76Z/Judt_Ton
http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-morte-

A morte de Tony Judt
Enviado por luisnassif, sab, 07/08/2010 – 17:20

Por Hari da Silva Seldon

O mundo perdeu um grande historiador. O livro do Judt sobre a Europa no pós-guerra é leitura obrigatória para todos interessados em história contemporânea. No último livro, reflexões sobre o um século esquecido, a parte sobre o meio-século norte-americano também é muito boa.

07/08/2010 – 13h43

Historiador e autor britânico Tony Judt morre aos 62 anos

DE SÃO PAULO

O historiador e autor britânico Tony Judt, morreu na sexta-feira (6), segundo o jornal americano "The New York Times".

Ele estava com 62 anos e era vítima desde 2008 de uma doença neuromuscular que paralisava seu corpo. Mesmo assim, ele continuava a publicar artigos e livros em que atacava o pensamento conservador e a crescente desigualdade econômica na Europa e nos EUA.
href="http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/779485-saiba-mais-sobre-o-historiador-britanico-tony-judt.shtml">Saiba mais sobre o historiador britânico Tony Judt
Leia texto do historiador Tony Judt no qual ele fala sobre a doença que o vitimou

A morte foi anunciada em um comunicado da Universidade de Nova York, onde ele dava aulas.

Formado em instituições-símbolo da academia europeia –a Universidade de Cambridge e a Escola Normal Superior, em Paris–, Judt era um dos principais intelectuais social-democratas em atividade.

Muitos desses artigos, escritos antes do diagnóstico, estão em "Reflexões Sobre um Século Esquecido", lançado em maio no Brasil.

zeca

nada mais coerente FHC abrindo o mercado cultural.
Já Lou Reed preferiu não vir…
Por que será?

    Christian Schulz

    E o Robert Crumb veio para cuspir impropérios ao seu país de origem, o que a Folha tratou de esconder ao máximo e tratar como mau humor folclórico.

    Mas a internet não deixou barato… foi bem engraçado ler alguns parvos a recomendar a Crumb se mandar dos EUA, se ele desgostava tanto de lá! Estilão "Ame-o ou Deixe-o"! Mera coincidência?

    Mas é claro que não!

Pedro

Cara, o texto do jornalista Altman diz respeito ao que quisermos, menos à cultura, aliás, como essa tal Flip: meros negócios, para não dizer negociata. A citação do FHC, então, beira ao ridículo: parca produção, contestada, inclusive. Lastimável esse "release".

Gerson Carneiro

Próximo encontro dos Blogueiros vamos nos vingar: vamos convidar o Lula pra lançar o livro dele "Manual do Torneiro Mecânico – como sair do chão de fábrica e tornar-se o melhor Presidente".

E nas ruas vai ter barraquinhas com acarajé, churrasquinho de gato, cerveja… vamo fazer a farra.

    Christian Schulz

    Sem esquecer a Tapioca, a Pamonha e o Ministério da Segurança Pública!

    Ed.

    Êpa!…Acarajé dá galho! …
    O Estadão vai mandar repórteres para investigar…

    Gerson Carneiro

    Bem lembrado. Aí ele, o Zé Hannibal, vai dizer que foi ele quem fez. Que é continuação do Ministério que ele criou.

Gerson Carneiro

Fernando Henrique Cardoso para fazer a palestra de abertura???
Que falta de cuidado. Deu cupim. Dessa forma não há como preservar elegantemente quaisquer verniz.
Aí emporcalhou tudo. Eu prefiro estandes nas ruas de Paraty.

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