Boff: Dom Romero foi morto por denunciar torturadores e assassinos de pobres e camponeses em El Salvador

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Vaticano News

Da Redação, com informações da CNBB, Vaticano News e Leonardo Boff

Nesse domingo, 14/10, em cerimônia realizada na Praça São Pedro, o Papa Francisco canonizou sete novos santos da Igreja Católica.

O ex-arcebispo de El Salvador, dom Oscar Romero (1917-1980), foi um deles.

Considerado mártir da América Latina e o santo dos pobres, dom Romero foi assassinado em 24 de março de 1980, enquanto celebrava missa na capela do Hospital da Divina Providência, em São Salvador.

Durante o evento, o Papa lembrou que dom  Romero “deixou as seguranças do mundo, incluindo a própria incolumidade, para consumir a vida – como pede o Evangelho – junto dos pobres e do seu povo, com o coração fascinado por Jesus e pelos irmãos”.

Dom Romero foi vítima do fascismo e da intolerância, que não se detiveram nem diante das vestes imaculadas de um sacerdote cujas mãos apenas ofereciam bênçãos e semeava o bem.

No momento em que, no Brasil, o ódio e até a força bruta substituem o debate de ideias, José Graziano da Silva, em artigo publicado neste domingo no Vatican News, propõe uma reflexão sobre o legado de dom Romero e sua cruzada por uma sociedade mais justa, coesa e pacífica.

Graziano foi o responsável pela implementação do Programa Fome Zero, no primeiro governo Lula. Em 2011, foi eleito diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), para um mandato de três anos e meio. Em 2015, Graziano da Silva, reeleito:

Monsenhor Romero pregou sua mensagem de paz numa San Salvador cindida por uma sangrenta guerra civil que durou quase uma década. Nunca se calou diante das barbaridades praticadas por esquadrões da morte contra a população campesina, que reivindicava o direito ao trabalho e à alimentação.

Mesmo em face de reiteradas ameaças de mortes, seus sermões denunciava o arbítrio e a exclusão social. Até que no fatídico 24 de março de 1980, durante mais um apelo contundente pelo fim da violência armada, Romero recebeu um tiro certeiro no peito e veio a falecer dentro da Igreja da Divina Providência. Foi um ato deliberado, profissional, que ficou impune por falta de provas.

Durante seu funeral, cerca de 40 mil salvadorenhos, jovens e idosos, cantavam e oravam naquela derradeira homenagem. Sem piedade alguma, os extremistas de então fizeram explodir uma bomba ao lado da Igreja, para espalhar o pânico.  Em seguida, dispararam tiros na multidão, um massacre que levou com o pastor uma parte de seu rebanho.

As imagens deste massacre transmitidas pelas redes de televisão causaram profundo mal-estar na opinião pública internacional, que passou a acompanhar os relatos das atrocidades com crescente indignação.

(…) Seu engajamento de Romero pela paz e pelos direitos humanos faz ecoar nos corações e mentes aquele que foi associado como o seu grande epíteto: ele era conhecido como a “voz dos sem-voz”.

Em artigo publicado em seu blog há quatro anos, o teólogo Leonardo Boff faz também uma reflexão sobre o papel de dom Romero e reproduz o perfil dele traçado pelo padre José Oscar Beozzo. Seguem na íntegra.

BOFF: DOM ROMERO MORREU POR DENUNCIAR TORTURADORES E ASSASSINOS DE POBRES E CAMPONESES

Leonardo Boff, em seu blog

O Pe. JOSE OSCAR BEOZZO é conhecido como um dos mais sérios historiadores e teólogos brasileiros.

Aqui ele traça o perfil do arcebispo de San Salvador, Dom Oscar Arnulfo Romero, assassinado enquanto erguia o cálice consagrado.

Inicialmente, era tido como um bispo conservador, mas foi mudando ao assistir às matanças indiscriminadas que as forças de repressão de seu pais faziam contra o povo, os camponeses e os próprios membros das comunidades eclesiais de base e mesmo contra religiosas e padres como o Pe. Rutilio Grande.

Transformou-se no grande defensor dos direitos humanos e dos direitos dos pobres que, segundo a Bíblia, são direitos de Deus.

Como estes não têm ninguém para os defender, Deus mesmo os toma sob sua guarda e se coloca do lado deles.

Conheci pessoalmente a Dom Romero, durante os dias da grande assembleia dos bispos latino-americanos (CELAM) em Puebla na Colômbia em 1979.

Lembro-me que, chamando-me de lado, quase como numa súplica, me pediu:

”Padre Boff, ajude-nos a fazer uma teologia da vida, pois no meu país a morte é absolutamente banal; cada dia se mata muita e muita gente inocente”.

Ele sucumbiu à esta banalidade da morte. Morreu por causa da justiça, um dos bens maiores do Reino de Deus.

Não morreu por razões da política local. Mas por causa de sua coragem de denunciar, no seu programa de rádio dominical, os torturadores e assassinos de tantos pobres e camponeses.

O Papa Francisco que vem do caldo cultural desta Igreja que se compromete com os invisíveis e com as vítimas da violência repressiva, entendeu o significado de sua vida.

Abriu as portas para a sua beatificação e posterior canonização.

Dom Romero é um exemplo de profunda santidade pessoal, santidade política (a que busca o bem de todos, especialmente dos deserdados), de um pastor que teve a coragem de dar a sua vida por seus irmãos e irmãs perseguidos: Lboff

OSCAR ROMERO – MÁRTIR DA AMÉRICA LATINA: J.O.Beozzo

Nessa terça-feira, 03 de março, o Papa Francisco declarou que Mons. Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, sofreu martírio por “ódio contra a fé” e que não foi assassinado simplesmente por razões políticas.

A palavra do Papa, quase 35 anos depois que o arcebispo foi baleado e morto, a 24 de março de 1980, enquanto celebrava a missa na capela do Hospital da Divina Providência em São Salvador, abre o caminho para sua rápida beatificação e canonização.

O processo encontrava-se bloqueado em Roma por aqueles que classificavam sua morte como resultado de suas opções políticas e não por causa do seu profético e evangélico testemunho em favor dos pobres e pequenos.

O papa já dera um primeiro passo nessa direção quando logo após sua eleição, a 21 de abril de 2013, ordenara a reabertura de seu processo na Congregação das Causas dos Santos.

Para centenas de milhares de comunidades cristãs do continente, Oscar Romero foi desde o dia do seu martírio considerado santo e invocado como São Romero da América Latina, num profundo e certeiro reconhecimento do “sensus fidelium”de sua santidade e do sentido de sua morte: seu empenho em favor da paz, sua luta contra a pobreza e a injustiça e sobretudo a declarada oposição à infame guerra de “baixa intensidade”.

A guerra, no pequeno El Salvador, na época, com pouco mais de 5 milhões de habitantes deixou mais de 70.000 mortos e 1,5 milhão de refugiados, a maior parte exilados nos Estados Unidos.

Mercedes Sosa, na conhecida canção latino-americana, “Solo le pido a Dios”, canta com paixão:

Sólo le pido a Dios

Que la guerra no me sea indiferente

Es un monstruo grande y pisa fuerte

Toda la pobre inocencia de la gente

E prossegue nas outras estrofes:

Sólo le pido a Dios

Que el dolor no me sea indiferente

Sólo le pido a Dios

Que lo injusto no me sea indiferente

Sólo le pido a Dios

Que el futuro no me sea indiferente

Romero não foi indiferente nem à dor da pobre gente, nem à guerra, nem à injustiça, nem à falta de futuro e esperança que se abatia sobre seu povo.

O bispo poeta de São Felix do Araguaia, Dom Pedro Casaldaliga, no dia seguinte ao assassinato de Oscar Romero, associou prontamente sua morte ao martírio e ao sangue derramado pelo próprio Cristo na cruz, para terminar invocando-o, sem nenhuma hesitação:“San Romero de América, pastor y mártir nuestro”.

Reproduzo na sequência a significativa página do seu diário, “En Rebelde Fidelidad”, do mês de março de 1980:

Día 25

Ayer murió, matado, Monseñor Oscar Romero, el buen pastor de El Salvador. Mientras celebraba la eucaristía. Su sangre se ha mezclado para siempre con la sangre gloriosa de Jesús y con la sangre, todavía profanada, de tantos salvadoreños, de tantos latinoamericanos.

Romero, flor de una paz que parece imposible en esa Centroamérica sufrida.

La impresión que se tiene, sin posible duda, es que lo ha matado el Imperio. Su muerte es una muerte a sueldo, a divisa, a dólar. Era demasiado poderosa y libre su voz y había que apagarla. El lo sabía y estaba preparado para este sacrificio.

Ha sido en la víspera de la Anunciación. El ángel del Señor se ha anticipado para anunciar, con esta muerte, la llegada de un tiempo de vida para El Salvador, para América Central, para todo el Continente.

San Romero de América, pastor y mártir nuestro.

Clara lección para todos los pastores…

No es posible que el Dios de los pobres no recoja esta oblación”.

Outras Igrejas não esperaram este tardio reconhecimento romano para incluir Oscar Romero no seu próprio calendário litúrgico, como mártir, exemplo de vida e santidade e inspiração para seus fieis.

Assim, a Igreja Anglicana da Inglaterra arrolou Romero como mártir, no calendário do seu “Common Worship”. O mesmo aconteceu com a Igreja Luterana da Alemanha.

Quando Bento XVI a 17 de setembro de 2010, adentrou, como primeiro papa a fazê-lo, o imponente portal oeste da Abadia de Westminster de Londres, teve que passar por sob a estátua de Oscar Romero perfilada ao lado do pastor batista Martin Luther King, de Ghandi e de outros mártires do século XX, ali representados.

Artistas renomados e artesões populares não tardaram a retratar Romero como santo.

Adolfo Perez Esquivel, o prêmio Nobel da Paz (1980), ao pintar a Via Sacra latino-americana e o grande painel do “novo céu e a nova terra” para a Campanha quaresmal da Igreja da Alemanha, retratou o Cristo.

Ressuscitado caminhando à frente da multidão daqueles que lavaram suas vestes no sangue do cordeiro, capitaneados por Oscar Romero e por Enrique Angelleli, o bispo mártir de La Rioja na Argentina seguidos pelo cortejo de leigos e leigas, sacerdotes e religiosas, que derramaram seu sangue pela fé e pela justiça na América Latina, nos anos de chumbo das ditaduras militares.

O artista da libertação Cerezo Barredo ao pintar em 1986, o painel por detrás do altar da Igreja dos Mártires da Caminhada em Ribeirão Cascalheira, local do martírio do Pe. Penido Burnier, SJ, o coloca ao lado de Romero e do Ressuscitado e junto com os lavradores assassinados pelo latifúndio, de suas mulheres torturadas pela polícia e de tantos outros mártires anônimos da Igreja latino-americana.

Noutro painel de Romero, Cerezo reproduz as palavras proféticas do arcebispo, pouco antes do seu assassinato: “Se me matam, ressuscitarei no povo salvadorenho”.

Cláudio Pastro, que vem ilustrando a Basílica de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil e sede da V Conferência do Episcopado Latino-americano, em 2007, incluiu no painel de azulejo azul e branco que cobre o coro da entrada principal do templo, ao lado dos mártires dos tempos passados, os de hoje, entre os quais o índio Márçal Guarani, o arcebispo Romero e a Ir. Dorothy Stang, missionária norte-americana assassinada 12 de fevereiro de 2005 na Amazônia brasileira.

Irmã Dorothy foi morta por pistoleiros, por defender pequenos lavradores de um projeto de agricultura sustentável, contra a devastação das grandes madeireiras.

Estas, sob o olhar complacente quando não conivente das autoridades, abatem as árvores para alimentar o lucrativo comércio da exportação ilegal de madeira para a Europa.

Os artistas e o sentimento e piedade popular se antecipam no reconhecimento de novas formas de santidade que vão da luta em favor da vida dos pequenos e injustiçados, da denúncia da ganância do capital e dos impérios, até a defesa intransigente da água, da terra, das florestas, como bens comuns necessários à vida e não apenas “mercadorias” a mais, a serviço do lucro.

Quando o jovem bispo de Ivrea, Betazzi, então bispo auxiliar de Bologna, interveio no Vaticano II, sob nutrido aplauso da Aula conciliar, para pedir a canonização imediata de João XXIII pelos padres conciliares, estava querendo consagrar todo um programa, um projeto e um sonho de nova Igreja e nova humanidade.

Nesse sentido, comentou o Cardeal Lercaro, que essa proposta da imediata canonização de João XXIII pelo Concílio representava a acolhida das decisões conciliares na vida da Igreja.

A proclamação da santidade de João XXIII não era apenas a de “uma santidade exemplar (igual a de outros santos), e sim de uma santidade programática de uma nova época da Igreja, individualizada no santo pastor, doutor e profeta reconhecido como seu antecipador”.

A santidade de Romero é também uma santidade programática que remete à evangélica opção preferencial pelos pobres, a uma fé atuante no mundo e à profecia como inarredável tarefa dos pastores e de todos os batizados, num continente nominalmente cristão, que convive em aparente indiferença, com as seculares desigualdades e injustiças que marcam nossas sociedades dos tempos coloniais até hoje.

Pe. José Oscar Beozzo
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