Arlene Clemesha lança livro que resgata a história ‘marxismo e judaísmo’ e o sionismo ocultou

Tempo de leitura: 9 min

Redação Viomundo

Nesta segunda-feira, 05/05, a historiadora e professora Arlene Clemesha lança em São Paulo, capital, o livro Marxismo e Judaísmo, história de uma relação difícil, da Boitempo.

É a segunda edição — revisada, ampliada e atualizada — da obra prefaciada por Jacob Gorender.

Escrita em linguagem acessível e desmistificadora, a autora oferece uma ”excursão notavelmente interessante pelos meandros sinuosos de uma questão nada fácil”, escreve Gorender.

Arlene Clemesha é professora de História Árabe e diretora do Centro de Estudos Árabes da USP.

”A segunda edição chega ao público em um momento de extrema gravidade para o povo palestino, para Israel no Oriente Médio e para o judaísmo mundial, submetido a uma crise de consciência sem precedentes na era contemporânea”, ela observa.

“Um livro extraordinário que rastreia as maneiras pelas quais os marxistas se mobilizaram para compreender e resolver a questão judaica”, afirma Ran Greenstein, professor associado da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul.

”Arlene Clemesha fornece um quadro de referência essencial para entender debates históricos e práticas políticas. Com um foco nos socialistas europeus e russos do final do século XIX e início do XX, a obra conta uma história em perspectiva global que permanece relevante para a nossa compreensão de acontecimentos contemporâneos”, acrescenta Greenstein .

O lançamento será às 19h, na livraria Martins Fontes, à rua Dr. Vila Nova, 309, Vila Buarque. É ao lado do Sesc Consolação. Tem estacionamento vizinho.

Haverá um bate-papo sobre o livro com Arlene Clemesha e Francisco Foot Hardman; mediação de Isadora Sklo.

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Marx, Engels e Lassale nos jornais do Bund, primeiro grande partido operário social-democrata da Rússia ( União Geral dos Operários Judeus da Rússia, Polônia e Lituânia)

“Marxismo e judaísmo”: o resgate da história que a vitória do movimento sionista buscou ocultar

Por Arlene Clemesha, Blog da Boitempo

A segunda edição deste livro chega ao público em um momento de extrema gravidade para o povo palestino, para Israel no Oriente Médio e para o judaísmo mundial, submetido a uma crise de consciência sem precedentes na era contemporânea.

O genocídio do povo palestino, que se estende há mais de quinze meses, é descrito como apocalíptico pelo chefe do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, Tom Fletcher.

Os ataques israelenses são ininterruptos. Ocorrem com o conhecimento de todos, a cumplicidade das principais potências mundiais, e o apoio explícito dos Estados Unidos.

Assassinatos massivos executados com o emprego de inteligência artificial, tal qual o sistema Lavender, somam-se a assassinatos dirigidos, executados por drones contra médicos, jornalistas, agricultores e cozinheiros, entre outros profissionais empenhados em tratar e alimentar a população, para não mencionar os grotescos “massacres da farinha” e centenas de outros casos de ataques mortíferos contra pessoas em busca de alimento.

A fome é criada de maneira proposital e utilizada como arma de guerra. Há uma escassez cruel de água potável, medicamentos e demais itens indispensáveis à vida. Noventa por cento da infraestrutura da Faixa de Gaza foi destruída e o Norte foi ocupado pelo Exército israelense.

A população não aguenta mais os sucessivos deslocamentos forçados. Mais de 2 milhões de pessoas estão desalojadas e simplesmente não há lugar seguro na Faixa de Gaza. O meio ambiente está poluído por metais pesados, mas também pelo esgoto a céu aberto. O ar que se respira carrega o pó dos escombros e as partículas dos explosivos.

Nas palavras do respeitado médico palestino Mustafa Barghouti, há uma guerra química subjacente. Metade da população da Faixa de Gaza, mais de 1 milhão de pessoas, está doente sem que haja tratamento disponível. Doenças de pele e doenças infecciosas se alastram pelos campos.

Investigações independentes trazem pavorosas evidências de capturas, manutenção de pessoas em situação de degradação, violência sexual e tortura.

Enquanto isso, soldados israelenses postam suas ações militares nas redes sociais, documentando seus crimes enquanto zombam dos palestinos em vídeos no TikTok.

Como bem disse Edgard Morin, em O mundo moderno e a questão judaica,[1] a relação israelo-palestina é muito simples, há um opressor e um oprimido. Mas ela é também extremamente complexa na medida em que o sionismo projeta no futuro o medo do passado. Através de uma cultura do medo – que instrumentaliza as feridas do Holocausto e dos pogroms –, todas as políticas israelenses expansionistas, de segregação e limpeza étnica, de massacre e genocídio, são justificadas, e a oposição judaica interna é reprimida e silenciada.

De fato, o Estado de Israel, que se autointitula representante dos judeus de todo o mundo e símbolo de redenção após o genocídio judaico perpetrado pela Alemanha nazista, está perpetrando, ele mesmo, o genocídio do povo palestino em nome da segurança do povo judeu.

O assalto do Hamas foi decerto violento, quase 1,2 mil pessoas morreram em decorrência dele, das quais cerca de oitocentas eram civis israelenses.

Uma parte expressiva foi morta pelo Hamas e demais combatentes que participaram do assalto de 7 de outubro de 2024; outra, por fogo amigo e o emprego da Diretiva Hannibal. [2]

Mas há um imenso exagero na comparação desse assalto ao Holocausto. A equiparação, feita pelo governo israelense, ilustra o argumento de Edgard Morin de que o medo é fomentado como maneira de tornar complexa uma relação bastante simples, perpetuar a sombra do Holocausto, e, no contexto colonial palestino, inverter os papéis, tornando os opressores históricos do povo palestino em vítimas eternas.

Como diz Enzo Traverso, “se uma guerra genocida é lançada em nome da ‘luta contra o antissemitismo’, são os nossos valores éticos e normas políticas que saem manchados: os pressupostos da nossa consciência moral – a distinção entre opressor e oprimido, perpetradores e vítimas – correm o risco de serem virados de ponta-cabeça”.[3]

Ou seja, a cultura do medo analisada por Edgard Morin, ou a instrumentalização da memória do Holocausto, passa a configurar o melhor meio para a sobrevivência, não do judaísmo, mas do sionismo. A confusão, ou melhor, a conflação entre os dois – sionismo e judaísmo – é proposital.

Neve Gordon, por sua vez, explica que a instrumentalização da memória do Holocausto e a cultura do medo decorrente disso promovem mais uma inversão de posições, desta vez entre o Estado de Israel enquanto “o protetor” e os judeus enquanto “protegidos”. [4]

Ou seja, não obstante o Estado ter fomentado, desde a sua origem, a ideia de que apenas ele poderia proteger os judeus do antissemitismo, o que acontece na realidade é o inverso. Não é o Estado de Israel que protege os judeus do antissemitismo – que lamentavelmente ainda existe e se expressa seja em grupos neonazistas e neofascistas, seja nas fantasiosas alusões a supostas formas de dominação judaica mundial, ou mesmo quando ressentimentos anti-israelenses transbordam para expressões indevidas e impróprias de raiva contra judeus –, são os judeus individuais que protegem o Estado de Israel de críticas cada vez mais duras (em geral devido à sua atuação cada vez pior contra os palestinos).

Inseridos na cultura do medo, esses judeus protegem o Estado de Israel de críticas, na maioria das vezes bastante objetivas e racionais, como se protegessem seu próprio direito à existência enquanto pessoa judia em qualquer país do mundo. A mencionada conflação entre sionismo e judaísmo é acompanhada pela conflação entre o judeu individual, o judeu coletivo e o Estado de Israel.

Hoje, não há dúvida de que há um genocídio palestino sendo executado em nome da segurança de Israel, que por sua vez se arroga a posição de representante e protetora de todos os judeus do mundo.

Mas também chama a atenção que a política de extrema violência israelense parece ter rompido, para muitos judeus, a barreira do medo.

A brutalidade do genocídio palestino vem causando questionamentos, fissuras e o distanciamento de um considerável número de jovens judeus ao redor do mundo em relação ao sionismo. Pode-se dizer, como muitos têm feito, que o judaísmo vive a sua maior crise de consciência desde a criação do Estado de Israel. Crise esta que se manifesta “através de uma rejeição decisiva ao uso dos traumas coletivos do povo judeu para justificar a ocupação e a violência contra os palestinos”.[5]

Os gritos de não em meu nome! e de nunca mais é agora! entoados nas manifestações pró-Palestina revelam não apenas uma oposição absoluta ao genocídio, mas, de maneira mais profunda, uma ruptura radical desses jovens judeus com a cultura do medo cultivada pelo sionismo há décadas como forma de justificar os crimes cometidos contra o povo palestino e manter intacta a adesão dos judeus à ideologia sionista.

O genocídio palestino, em suma, está provocando uma mudança de paradigma em relação à ideia da inevitabilidade do sionismo e da necessidade de todo judeu protegê-lo enquanto garantia da sua própria segurança e sobrevivência.

Mas este livro, publicado originalmente em 1998, nunca teve por objeto o movimento sionista, que àquela altura vivia o ápice da ilusão de paz transmitida ao mundo pelo processo de Oslo.

O movimento sionista só aparece neste volume como parte das disputas políticas e ideológicas entre os vários movimentos judaicos de esquerda na passagem do século XIX ao XX.

Por ter sido minoritário, aparece pouco, como seria de se esperar de uma pesquisa que não tem o sionismo como seu eixo de análise e volta ao passado sem se pautar pelas disputas do presente.

O que faz este livro, em contrapartida, é resgatar a história que a vitória do movimento sionista buscou ocultar, quando, em meados da década de 1950, tentou ressignificar o sionismo como a realização da luta histórica do povo judeu, relegando outras correntes e outros movimentos, de fato majoritários até o entreguerras, a meras notas de rodapé da história judaica.

Este livro descreve, por exemplo, como o combate ao antissemitismo no Império tsarista foi empreendido pelo movimento revolucionário russo, ou como a esquerda judaica e as principais alas da esquerda russa lutaram lado a lado para proteger comunidades judaicas dos pogroms durante a guerra civil que se sucedeu à Revolução de 1917.

Resgata também a vida judaica nos guetos da Europa oriental, onde os trabalhadores judeus formariam os primeiros círculos operários e intelectuais, cujo desenvolvimento daria origem ao Bund, o primeiro grande partido operário social-democrata da Rússia, inicialmente maior que o próprio POSDR, de onde saíram mencheviques e bolcheviques pouco tempo depois.

Analisa os debates entre as corrente judaicas de esquerda a respeito do modelo de emancipação e dos métodos que defenderiam para chegar a ela. Enfim, aborda como, na prática, os judeus engajados viveram seu judaísmo, viram e pensaram sua própria emancipação, a relação dela com a emancipação geral de todos os trabalhadores, e a luta contra o antissemitismo.

No momento da sua primeira edição, em 1998, posso dizer com certa segurança que este livro despertou o interesse de alguns setores minoritários da comunidade judaica.

Pode ser exagero meu falar em setores, talvez tenham sido apenas alguns indivíduos, velhos militantes comunistas, intelectuais, integrantes da esquerda local que conheciam muito bem a história do engajamento dos judeus nos movimentos revolucionários da esquerda mundial.

Nomes tão saudosos como Jacob Gorender, Max Altman, Jacob Guinsburg e Maurício Tragtenberg, entre outros, guardavam na própria pele e em suas trajetórias a história do engajamento judaico nos movimentos de emancipação ao redor do mundo. Este livro, mesmo sem tratar do Brasil, falava diretamente ao legado desses grandes combatentes.

Hoje, quem sabe, é possível que esta nova edição de um livro há muito esgotado desperte algum interesse entre os jovens judeus que desde o início do genocídio em Gaza criticam a política sionista e se engajam em movimentos contrários a ele. Talvez possam encontrar aqui alguma coisa do passado que explica quem eles são e o que os move atualmente.

Afinal, observamos hoje o “ressurgimento de uma esquerda judaica que foi deliberadamente destruída pelo judaísmo oficial entre as décadas de 1950 e 1980” [6].

São jovens que retornam às correntes não sionistas do pensamento crítico que prevaleceu entre os judeus antes da Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, e a criação do Estado de Israel.

Mais que isso, ao afastar-se do sionismo, essa juventude é isolada e segregada da comunidade pelas elites judaicas tradicionais, que temem o seu ativismo e os seus questionamentos.

Como nota Edgar Azevedo, “a ofensiva das organizações oficiais acusa os dissidentes de não serem ‘judeus de verdade’, e a resposta militante, por sua vez, questiona não apenas a legitimidade, mas também a autoridade dessas entidades para determinar a essência da identidade judaica na arena contemporânea”.[7]

A juventude dissidente está, assim, passando por um processo de busca por novos espaços para viver a sua cultura, ressignificando o seu judaísmo e rejeitando o controle que o establishment sionista exerce sobre a comunidade.

É uma crise que abala as relações familiares, reconectando-se, em muitos casos, ao passado reprimido de um judaísmo redentor de esquerda que lutou pela emancipação e contra o antissemitismo, sem deixar de denunciar as armadilhas e os crimes do projeto colonizador na Palestina.

Percebe-se, assim, que não havia como deixar de falar do contexto em que surge esta segunda edição, revisada e ampliada para incluir dois novos capítulos.

Um sobre os judeus nas Brigadas Internacionais da Guerra Civil Espanhola, representando, ao mesmo tempo, o ápice da esperança em derrotar o fascismo e o seu fracasso às portas da Segunda Guerra Mundial; e outro acerca das ideias de Leon Trótski, o único teórico e líder político da esquerda mundial a prever a eliminação dos judeus da Europa.

Hoje, pode-se dizer que o dilacerante genocídio do povo palestino perpetrado em nome da segurança do Estado sionista é mais um capítulo da mesma tragédia que teve o Holocausto como um de seus pontos mais críticos e tristes.

Esperamos, assim, que o contexto lance sua luz sobre a história que buscamos resgatar de maneira abrangente, e o mais fielmente possível, nestas páginas. Certamente, um começo.

Boa leitura.

Notas

[1] Edgard Morin, O mundo moderno e a questão judaica (trad. Nícia Adan Bonatti, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2007). ↩︎

[2] Yaniv Kubovich, “IDF Ordered Hannibal Directive on October 7 to Prevent Hamas Taking Soldiers Captive”, Haaretz, 7 jul. 2024, disponível on-line. ↩︎

[3] Enzo Traverso, Gaza Faces History (trad. Willard Wood, Nova York, Other Press, 2023), p. 52 [ed. bras.: Gaza diante da história, trad. Pedro Fonseca, Belo Horizonte, Âyiné, 2024]. ↩︎

[4] Neve Gordon, “Antisemitism and Zionism: the Internal Operations of the IHRA Definition”, Middle East Critique, v. 33, n. 3, 2024, p. 345-60, disponível on-line. ↩︎

[5] Edgar Azevedo, “A crise da consciência judaica”, em Osvaldo Coggiola (org.), Guerra Israel–Palestina e crise mundial (São Paulo, Livraria da Física, 2024), p. 228. ↩︎

[6] Idem. ↩︎

[7] Idem. ↩︎

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Zé Maria

.
.
Ao menos na Origem Vernacular,

o Árabe é uma Língua SEMÍTICA.

Remonta há Mais de 4 Mil Anos.

https://www.britannica.com/topic/Semitic-languages
https://www.superprof.com.br/blog/evolucao-lingua-ismael/
.
.

Zé Maria

.

“A Concepção do Estado Israelense teve Caráter

Exclusivista Religioso Judeu e Não Multiétnico”

ARLENE CLEMESHA
https://youtu.be/sC4kFUeilX0
Historiadora e Professora do Departamento de
Letras Orientais da Universidade de São Paulo (USP), onde fundou e dirige o Centro de Estudos Palestinos. Mestre e Doutora em História Econômica pela USP,
foi Pesquisadora visitante na University of Michigan
at Ann Arbor (2001) e Representante da Sociedade
Civil Brasileira na Rede de Coordenação Internacional
das Nações Unidas pela Palestina entre 2005 e 2015.

Entrevista ao Programa Provocação Histórica (ICL):

https://youtu.be/r1KU1jQ5T9c

.

Zé Maria

https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/a-linguagem-do-imperio-152411

Livro

A LINGUAGEM DO IMPÉRIO
Léxico da Ideologia Estadunidense

Autor: DOMENICO LOSURDO

Tradução: Jaime A. Clasen

Trecho Inicial do Livro:
https://blogdaboitempo.com.br/wp-content/uploads/2023/03/antiamericanismo_losurdo.pdf

.

Zé Maria

Excerto

Como diz Enzo Traverso, “se uma guerra genocida
é lançada em nome da ‘luta contra o antissemitismo’,
são os nossos valores éticos e normas políticas que
saem manchados: os pressupostos da nossa
consciência moral – a distinção entre opressor e
oprimido, perpetradores e vítimas – correm o risco
de serem virados de ponta-cabeça”.
.
.
[A destruição de Gaza lembra a ‘era de ouro’ do colonialismo,
quando o Ocidente perpetrou genocídios na Ásia
e na África em nome de sua ‘missão civilizadora’.

Seus pressupostos essenciais permanecem os mesmos…

Ao lado das declarações rituais sobre o direito de Israel
de se defender, ninguém jamais menciona o direito dos
palestinos de resistir a agressões que duram décadas.

Mas se uma guerra genocida for desencadeada em nome
do combate ao antissemitismo, são nossos próprios
valores éticos e normas políticas que são manchados:
os pressupostos de nossa consciência moral — a distinção
entre opressor e oprimido, perpetradores e vítimas —
correm o risco de ser invertidos.
(…)
Se a guerra em Gaza terminar em uma segunda Nakba,
a legitimidade de Israel ficará permanentemente
comprometida.

Nesse caso, nem as armas americanas [dos EUA], nem
a mídia ocidental, nem a memória distorcida e ultrajada
do Holocausto serão capazes de redimi-la.

ENZO TRAVERSO
“Gaza Davanti Alla Storia”
(https://www.laterza.it/scheda-libro/?isbn=9788858155837)
[“Gaza Faces History”,
Trad. Willard Wood,
NY, Other Press, 2023.]
(https://otherpress.com/product/gaza-faces-history-9781635425543/)
[“Gaza Diante da História”, (ed. bras)
Trad. Pedro Fonseca, Belo Horizonte,
Âyiné, 2024]
https://ayine.com.br/catalogo/gaza-diante-da-historia/)

https://otherpress.com/product/gaza-faces-history-9781635425543/excerpt/#content
.
.
“O Fenômeno da Nova Direita”

“O neoliberalismo é o império do cosmopolitismo cultural”

“As elites econômicas se acomodam a qualquer coisa,
a qualquer regime político, sempre que esse regime
defenda seus próprios interesses, claro.”

“O neoliberalismo tem uma força tão grande,
que é mais do que tudo.
O neoliberalismo se ajusta a Xi Jinping, a Bolsonaro,
à social-democracia europeia, seja ao que for.
O neoliberalismo se mostrou capaz de assimilar tudo
e não existe nada que demonstre que no futuro possa
deixar de fazer isso.
O capitalismo se acomoda a tudo, é o que a história ensina.”

Entrevista com ENZO TRAVERSO,
Concedida a Horacio Bernades,
publicada por Página/12, 07-03-2022;
A tradução é do Cepat; Via IHU On Line.

P12: Em seu livro [“Las Nuevas Caras de la Derecha”
(“As Novas Faces do Fascismo”, na edição em
português da editora Âyiné)], você faz uma
diferenciação entre os neofascismos e os pós-fascismos,
termos que às vezes se confundem.

Enzo Traverso: Os neofascistas são herdeiros do fascismo clássico e se reivindicam herdeiros desta tradição.
Não tentam esconder nada.
Esses neofascismos existem em quase todas as partes do mundo.
Contudo, são movimentos minoritários, não são o coração dessa nova onda de direita radical, de extrema direita, que atravessamos atualmente, e que é um fenômeno global, que encontramos representado tanto pelos seguidores de Trump, que tentaram tomar o Capitólio, como por líderes políticos como Matteo Salvini,
na Itália, Viktor Orbán, na Hungria, ou por Narendra Modi,
na Índia.

P12: Na Argentina, temos um novo, Javier Milei,
uma espécie de clone de Trump.

Enzo Traverso: O fenômeno se espalha.
É uma onda muito significativa de novas forças,
que não têm problemas em se definir como de direita
radical, mas que não têm esse vínculo genético com
o fascismo clássico.
Não admitem sua herança em relação a essa ideologia
e, inclusive, podem até reagir raivosamente quando
assim são tratados.

É um fenômeno novo, que é necessário identificar
e eventualmente diferenciar.
Daí a ideia de pós-fascismo, um conjunto de tendências
em boa medida sucessoras do fascismo clássico,
mas não exatamente uma continuidade direta.
Note que a necessidade de diferenciar não implica
em estabelecer hierarquias, como se o pós-fascismo
fosse menos perigoso do que o neofascismo.
Não.
Apenas é o caso de compreender as diferenças
para poder identificá-los com clareza.

P12: Na verdade, esse “novo” não é uma simples astúcia
política de alguns políticos neofascistas, que em
determinado momento compreenderam que para
conquistar eleitores era preciso se atualizar?

Enzo Traverso: Em alguns casos, certamente existe
um cálculo político que consiste em uma operação
de maquiagem.
Mas não acredito que essa seja a explicação, e
o exemplo da Frente Nacional na França é significativo.
Eu acredito que Marine Le Pen rompeu com seu pai
Jean-Marie, que reivindicava o regime de Vichy ou
a guerra colonial da Argélia porque era contemporâneo
deles e os sentia como próprios.
Mas sua filha pertence a outra geração, possui outra
distância em relação a isso.
Dessa distância deriva outra abordagem ideológica
e política, e não acredito que isso possa ser explicado
simplesmente em termos de cálculo político.
Penso que existe uma transição que é real.
Repito, não para enfatizar que Marine Le Pen é melhor
ou mais aceitável do que seu pai, mas para destacar
que é algo diferente, representa um movimento político
novo, e esse fenômeno é a direita radical.
Outra coisa: Jean-Marie Le Pen era antidemocrático
e sua filha se define como republicana.

P12: Bom, se for assim, aqui, temos cada “republicano”!…

Enzo Traverso: O que quero dizer é que essas novas
direitas radicais não querem destruir as instituições
democráticas.
Querem conquistar o poder por dentro do sistema,
para mudá-lo depois, mas sem a dimensão subversiva
que caracterizava os fascismos clássicos.
De qualquer modo, recordemos que tanto Hitler como
Mussolini não chegaram ao poder por golpes militares,
mas com base em mecanismos institucionais pré-
estabelecidos.

Nesse ponto, existe algo muito importante para ser
destacado:
esses pós-fascismos são um fenômeno de transição.
Não são o mesmo que o fascismo, mas também
não significa que não compartilhem com o fascismo
determinados valores.
Eventualmente, essas diferenças podem ser diluídas.

P12: Quais são essas continuidades históricas?
Uma delas é o racismo?

Enzo Traverso: O fascismo se sustenta em um elemento essencial,
constitutivo: na ideia de criar uma nação homogênea
no sentido político, ideológico, mas acima de tudo sobre
bases étnicas e raciais.
Essa ideia implica necessariamente a busca de um bode
expiatório.
Para definir a comunidade nacional dessa maneira,
é preciso estabelecer um inimigo que ameaça sua
existência.

O que varia do fascismo clássico ao pós-fascismo é
a identidade do bode expiatório.
O fascismo clássico tinha dois inimigos:
o judeu e o comunismo, que eventualmente se fundiam
em um: o judaico-comunismo, todo um fantasma fascista.
O mesmo com os anarquistas, os sindicatos etc.

P12: Quais são os bodes expiatórios do pós-fascismo?

Enzo Traverso: O lugar que antes era ocupado pelo antissemitismo,
agora, passa a ser ocupado pelo ódio ao expatriado,
o refugiado, o muçulmano.
Do antissemitismo se passa à islamofobia.
O terrorista muçulmano, a invasão islâmica, uma
incompatibilidade geral entre a civilização judaico-cristã
e a muçulmana.

P12: Há um tema aparentemente paradoxal:
as ultradireitas parecem não ter um plano econômico
próprio, razão pela qual acabam assumindo o do
neoliberalismo.

Enzo Traverso: A ultradireita contemporânea é uma
constelação política e ideológica e o tema econômico
não é igual em todos os casos.
Tomemos o caso de Bolsonaro.
Sua relação com o neoliberalismo é evidente, e sua
relação com o fascismo também, na medida em que
reivindica a ditadura militar brasileira, e no cultural
é contra todos os movimentos de inclusão, políticas
de gênero etc.
O mesmo acontece com o Vox, na Espanha, que pratica
uma política de acomodação política: reivindica o
franquismo, mas também o neoliberalismo, sendo que
a política econômica franquista se parecia mais com
a de Mussolini.

P12: E o que acontece no resto da Europa?

Enzo Traverso: Quando falamos da Frente Nacional
na França, das movimentações pós-fascistas na Itália
ou Alemanha, eu seria um pouco mais reservado
no tocante à sua relação com o neoliberalismo.
E mais, penso que um dos elementos que mais
explicam a popularização do pós-fascismo é
sua oposição ao neoliberalismo [na Europa].

Assim como Pablo Stefanoni aborda no livro
“La Rebelión se Volvió de Derecha?” (Siglo XXI, 2021),
os movimentos da direita radical estão sendo capazes
de representar, de hegemonizar, de canalizar uma
revolta, um mal-estar e talvez uma resistência ao
neoliberalismo.

P12: E Trump?

Enzo Traverso: Algo muito semelhante.
Trump conseguiu conquistar os votos de camadas
populares muito duramente golpeadas pelo
neoliberalismo, como os dos operários que assistiram
ao fechamento de suas fábricas ou dos moradores
do Rust Belt, do Meio-Oeste.
É claro que as alternativas que todos esses movimentos
propõem é uma alternativa regressiva, reacionária, não é
uma que supere o neoliberalismo.

O neoliberalismo é o império do cosmopolitismo cultural.
Eles querem voltar às raízes culturais, às identidades
nacionais tradicionais.
O neoliberalismo é o mercado, e os pós-fascistas querem
voltar às políticas econômicas protecionistas.
Essa é também a política de Trump nos Estados Unidos.

P12: Falamos sobre direitas de todos os tons.
O que acontece com a esquerda?

Enzo Traverso: Essa é uma das chaves que explicam a ascensão da direita radical:
a derrota da esquerda ou a incapacidade da esquerda
de oferecer uma alternativa credível ao neoliberalismo.
Esse é um diagnóstico histórico.

Com a queda do Muro, o comunismo desapareceu e morreu [na Europa], e a social-democracia se
transformou em um componente a mais da sociedade
liberal.
Hoje, a social-democracia é um componente do capitalismo.
Quando se pensa em um político social-democrata,
o primeiro que vem à mente é Tony Blair (no Reino Unido). Ou Bill Clinton (nos EUA) [Ou FHC no Brasil?].

P12: Qual é o futuro dessa nova direita?

Enzo Traverso: É um tema que está para ser visto.
As camadas dominantes, as elites econômicas,
financeiras, não escolheram os políticos de
extrema direita como seus representantes.
De forma alguma.
Os representantes do neoliberalismo são a União
Europeia, a Comissão Europeia, Angela Merkel,
na Alemanha, e seu sucessor social-democrata,
Draghi, na Itália (que foi um banqueiro, vindo do Banco
Central Europeu), Macron (outro banqueiro) etc.

Nos Estados Unidos, Donald Trump jamais foi o
candidato de Wall Street. A candidata foi Hillary
Clinton primeiro, Joe Biden agora.

As elites econômicas se acomodam a qualquer coisa,
a qualquer regime político, sempre que esse regime
defenda seus próprios interesses, claro.

P12: Agora, sim, estamos falando do verdadeiro poder, não é?

Enzo Traverso: Claro. Antes, falamos do racismo da ultradireita.
Mas há outro racismo, mais dissimulado, que é o do neoliberalismo.
Como se manifesta esse racismo?
Por meio de uma divisão do trabalho em nível global,
na qual existem multinacionais desterritorializadas
que produzem lucros gigantescos explorando a mão
de obra, a força de trabalho dos países do Sul.
Esse é o racismo do neoliberalismo.

Mas se você for à Califórnia, a uma fábrica da Amazon ou às centrais da Apple, Microsoft ou a qualquer megacorporação, irá encontrar paquistaneses, indianos, africanos, latino-americanos, europeus de países pobres. Para as multinacionais, não é um problema que sejam brancos, negros, asiáticos, heterossexuais ou homossexuais. O problema é para os ultradireitistas, que com sorte poderiam alcançar a construção de algum tipo de poder cultural ou ideológico. Mas para os que mandam de verdade, nada disso.

P12: Qual é o poder dessas novas direitas, tão barulhentas,
diante do poder multinacional do capitalismo?

Se algum partido de direita radical chegasse ao governo, se veria forçado a aceitar um compromisso com o neoliberalismo.
E então, quanto restaria de seu discurso supostamente subversivo?
É difícil que o grupo ultradireitista ‘Alternativa para a Alemanha’ [AfD] chegue ao governo, mas consideremos que consigam.
Matteo Salvini chegou ao cargo de primeiro-ministro
na Itália.
Marine Le Pen pode ser presidente na França.
Orbán já é na Hungria.
Vox está muito longe de ser [na Espanha].
Modi já é na Índia.
O que vão fazer?
Vão estabelecer um regime de autarquia econômica,
vão romper com a União Europeia?
Vão abolir o euro, voltar ao franco e à lira?
Se até a Alemanha e Rússia dependem mutuamente
do gás que a Rússia envia para a Alemanha, como
ficou claro nesses dias de conflito desencadeado
pela guerra com a Ucrânia.

O que aconteceria, se alguns desses partidos chegassem ao poder, é que estabeleceriam políticas muito mais autoritárias, xenófobas ou racistas (não há dúvida disso).
Contudo, o neoliberalismo tem uma força tão grande, que é mais do que tudo. O neoliberalismo se ajusta a
Xi Jinping, a Bolsonaro, à social-democracia europeia,
seja ao que for.

O neoliberalismo se mostrou capaz de assimilar tudo
e não existe nada que demonstre que no futuro possa
deixar de fazer isso.
O capitalismo se acomoda a tudo, é o que a história ensina.

Íntegra em:
https://www.ihu.unisinos.br/categorias/616703-o-fenomeno-da-nova-direita-entrevista-com-enzo-traverso
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