Antônio David: A transexual crucificada na Parada Gay e as contradições de um cardeal
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As contradições do cardeal
por Antônio David, especial para o Viomundo
Dois dias depois da Parada Gay de São Paulo, o arcebispo de São Paulo, cardeal Dom Odilo Scherer, postou nas redes sociais:
“Muitas pessoas me questionaram sobre a imagem de um transexual na cruz durante a Parada Gay. Entendo que quem sofre se sente como Jesus na cruz. Mas é preciso cuidar para não banalizar ou usar de maneira irreverente símbolos religiosos, em respeito à sensibilidade religiosa das pessoas. Se queremos respeito, devemos respeitar”.
Não demorou para uma legião de furiosos questionarem o arcebispo pela sua suposta “fraqueza”. O leitor pode conferir abrindo o link acima.
Em meio a uma enxurrada de críticas, não faltaram pérolas, como esta:
“Querido Dom Odilo, quando o senhor fez votos, não cortou os bagos. Portanto, devia mostrar que os tem”.
No facebook, passaram de mil os comentários e respostas a comentários. Houve quem defendesse que “nessa hora não tem que ponderar, tem que descer o pau”:
Mais de cem pessoas “curtiram” o comentário.
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Houve até mesmo quem questionasse a autenticidade da declaração do cardeal:
“quem administra a página de Dom Odilo? As declarações aqui veiculadas são endossadas pelo cardeal?”.
E houve quem ficasse espantado com os comentários que leu:
“Caramba pessoal, vcs realmente são católicos? Não concordo tbm com as atitudes realizadas na parada gay… Foi uma tremenda falta de respeito. Mas, a maneira q a maioria das pessoas estão falando, não parecem q são católicos, parecem ate mesmo ditadores ou algo parecido”.
Por mais conservador que seja, não duvido que o cardeal tenha fico chocado com a reação. No dia seguinte e sem demora, Dom Odilo postou:
“Ouvistes o que foi dito: dente por dente, olho por olho… Eu, porém vos digo: amai os vossos inimigos! Orai pelos q[ue] vos perseguem e caluniam”.
O tom conciliador não mudou, mas a frase parece ter sido escolhida a dedo para contemplar a fúria da quase totalidade dos fiéis que comentaram dois dias antes. Afinal, nela é empregado o termo “inimigo”.
“Inimigo” não é uma palavra qualquer. Caberia ao cardeal dizer quem é, no caso, o “inimigo”. Ele não disse. Ficou a cada um a tarefa de inferir o que quiser.
Não foi suficiente. Pressionado pela raiva de uma multidão de fiéis – raiva essa que, vale sempre lembrar, ele próprio alimenta –, no dia 11 de junho o cardeal divulgou uma nota da Regional Sul I da CNBB “sobre o uso de símbolos religiosos na Parada Gay de São Paulo”, assinada por ele, na condição de presidente da Regional, e por dois outros bispos.
Chamam a atenção os pontos 2 e 3 da nota:
2) Lembrar que todo ato de desrespeito a símbolos, orações, pessoas e liturgias das religiões constitui crime previsto no Código Penal: “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso” (Art. 208 do Código Penal).
3) Apelar aos responsáveis pelo Poder Público, guardiães da Constituição e responsáveis pela ordem social e pelo estado democrático de direito, que defendam o direito agredido.
A alusão ao Código Penal e o apelo à “defesa do direito” não são fruto do acaso. Trata-se exatamente de um esforço de contemplação da sanha de vingança dos fiéis que alguns dias antes chamavam o cardeal de fraco.
Boa parte parece ter sido contemplada com a nota da Regional.
Um deles afirma:
“Enfim uma posição firme, como esperada de um cristão. Critiquei na outra postagem, nesta venho elogiar. Parabéns!”
Esse é o tom da maioria.
Mas houve quem não tenha sido totalmente contemplado:
“mas haverá processo judicial, para que a justiça possa punir e dar exemplo para nao mais acontecer tamanho desrespeito?”
“Uma pergunta: entraram com alguma ação legal? Ou só a carta?”
O que o cardeal talvez não tenha percebido é que, ao dar uma resposta ao ódio da maior parte dos fiéis que se pronunciaram sobre o assunto, ele caiu em contradição. Não apenas em uma, mas em duas. Senão, vejamos.
Ao evocar o código penal, o cardeal está obviamente se referindo ao trecho que diz “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.
O cardeal espera, enfim, que as autoridades tomem providências contra o “vilipêndio”.
Segundo o dicionário Houaiss, vilipendiar significa “tratar (algo ou alguém) com desprezo ou desdém; considerar (algo ou alguém) como vil, indigno, sem valor; aviltar, rebaixar; ultrajar por meio de palavras, gestos ou atos”.
É disso que se trata?
Afinal, por que o objeto cruz foi utilizado na Parada Gay de São Paulo? Qual é o sentido dessa utilização?
Na cruz, lia-se “Basta Homofobia GLBT”.
O que tem a ver homofobia com crucificação? Tudo.
Não é preciso ser cristão para saber que crucificação representa sofrimento. A transexual “crucificada” representa o sofrimento de milhões de lésbicas, gays, bisexuais, transexuais e travestis que sofrem todo tipo de opressão física e psicológica diariamente no Brasil. Não é demais lembrar que o Brasil lidera o ranking da violência contra homossexuais.
A cruz na Parada Gay é, portanto, uma metáfora. É como se fosse um recado: “nós sofremos”.
Muitas outras metáforas poderiam ter sido usadas. A escolha evidentemente não foi casual. Num momento em que se discute a criminalização da homofobia no Brasil, a crucificação na Parada Gay é um recado dirigido à vanguarda dos que não querem que a homofobia seja criminalizada: o fundamentalismo religioso.
Por ter um destinatário muito preciso, a preocupação do cardeal com a “sensibilidade religiosa das pessoas” é infundada. Pois as pessoas verdadeiramente religiosas sabem que a cruz não representa outra coisa senão sofrimento. A cruz na Parada Gay não banaliza nada, antes reafirma e fortalece a sensibilidade religiosa dessas pessoas.
É o que atesta o depoimento de um dos fiéis que comentou, na contramão da maioria:
“Parece que a atriz transexual não usou a cruz em sentido diverso do que nós, católicos, lhe atribuímos: sofrimento. Ela não desvirtuou, deslegitimou ou desprezou um símbolo religioso (como os cartunistas do Charlie ou como aquele pastor que chutou N. S. Aparecida na década de 90). Ao contrário, ela tomou o símbolo pelo seu sentido mais comum, mais convencional. Tenho dificuldade em identificar irreverência quando alguém usa um símbolo com o sentido convencional. “Quem sofre se sente como Jesus na cruz”, como V. Exa. precisamente apontou: era só essa a mensagem. Qualquer vítima de violência poderia legitimamente aparecer numa cruz para denunciar violência, sobretudo uma violência que o Estado brasileiro não pune”.
O interessante é que, mesmo tendo externado sua reprovação à utilização da cruz, o próprio cardeal reconheceu, em sua primeira declaração, que a cruz na Parada Gay é metáfora do sofrimento: “Entendo que quem sofre se sente como Jesus na cruz”.
Bingo, cardeal! Foi exatamente isso que a cruz representou na Parada Gay.
Claro que, conservador que é, o cardeal não poderia terminar a frase aí. Ele teve de afirmar na sequência que “é preciso cuidar para não banalizar ou usar de maneira irreverente símbolos religiosos”. Um no cravo, outro na ferradura.
De todo modo, apesar de entender que houve banalização e irreverência, o importante é o reconhecimento de que aquele ato representava algo: sofrimento. Graças a esse reconhecimento, o cardeal foi bombardeado pela ira, ódio e desejo de vingança de fiéis.
Que certos fiéis tenham se sentido vilipendiados, não parece haver dúvida. Contudo, se esse sentimento nasceu do uso do objeto cruz, isso ocorreu porque, para essas pessoas, a cruz não representa sofrimento. O sofrimento da transexual, representando o sofrimento de todos os GLBTTs, é invisível a eles. Trata-se de um sofrimento para o qual eles se recusam a olhar. Daí terem vociferado contra as palavras do cardeal.
Convenhamos: a maneira como essas pessoas viram o objeto cruz na Parada Gay revela uma “sensibilidade religiosa” – para usar as palavras do cardeal – muito peculiar. Para essas pessoas, ser religioso não é praticar o bem e promover o amor, a amizade e a concórdia; é o exato oposto.
Onde, afinal, reside a contradição?
Ora, ao reconhecer que “quem sofre se sente como Jesus na cruz” para, em seguida, após ser criticado por fiéis exatamente por ter dito isso, evocar o Código Penal e falar textualmente em vilipêndio, o cardeal caiu em contradição. Pois a frase “quem sofre se sente como Jesus na cruz” exclui qualquer traço de vilipêndio. Se há vilipêndio, não pode haver comparação possível entre o sofrimento de “quem sofre” – no caso, GLBTTs – e o sofrimento de Jesus na cruz.
Mas não foi apenas para essa contradição que os fanáticos fundamentalistas arrastaram o cardeal.
Pois, se vilipendiar é “tratar (algo ou alguém) com desprezo ou desdém; considerar (algo ou alguém) como vil, indigno, sem valor; aviltar, rebaixar; ultrajar por meio de palavras, gestos ou atos”, não há ultraje maior à cruz do que separar dela aquilo que ela representa – o sofrimento. Eis o verdadeiro vilipêndio: olhar para a transexual crucificada na Parada Gay e não só não ver o sofrimento representado ali, como sentir ódio dela pelo fato de ela expor seu sofrimento através da cruz, objeto que simboliza não outra coisa senão o sofrimento.
Ver uma cruz e não enxergar o sofrimento é considerá-la sem valor, aviltá-la, rebaixá-la. Quem, afinal, realmente vilipendiou a cruz não foi a Parada Gay; foram estes “fiéis”.
Contra eles, a transexual bem poderia evocar o Código Penal, se quisesse. Por vilipêndio público de objeto religioso. Mas, obviamente, ela não fará isso. Não pelo fato de o poder judiciário ser infestado de conservadorismo, mas porque o Código Penal nada pode contra o sequestro da sensibilidade religiosa.
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