Ângela Carrato e Eliara Santana: Na disputa pelo poder, Globo usa  jornalismo como moeda de troca

Tempo de leitura: 8 min
Reproduções de vídeo

por Ângela Carrato e Eliara Santana*, especial para o Viomundo

As manifestações contra o corte de recursos das universidades públicas levaram mais de um milhão de pessoas às ruas de todo o Brasil na última quarta-feira.

Comparáveis às manifestações em defesa das eleições diretas-já para presidente da República, nos idos de 1984 e 1985, elas têm, desde agora, lugar assegurado na história como 15M, o dia em que a população disse um basta ao governo do ultraliberal Jair Bolsonaro.

Nesta mesma quarta-feira, por volta das 13h30, um ruidoso grupo de estudantes que se dirigia, em passeata, à praça Raul Soares, em Belo Horizonte, onde haveria o encerramento formal da manifestação, acabou parando, por alguns minutos, na porta de um bar.

Os jovens foram atraídos pela cobertura que o Jornal Hoje, da TV Globo, fazia, ao vivo, das manifestações.

Quando apareceram no vídeo imagens do ato na capital mineira, com as informações de que o centro da cidade estava tomado por jovens com cartazes e bandeiras críticas a Bolsonaro, explodiram aplausos, gritos e palavras de ordem.

Houve até quem garantisse que, a partir daquele momento, o governo não tinha mais o apoio da família Marinho.

Os estudantes estão certos ao perceberem que a TV Globo acabava de dar uma guinada na postura que vinha mantendo em relação a Bolsonaro.

Mas ainda é cedo para dizer que a família Marinho desembarcou do projeto que ele representa.

A TV Globo, como se sabe, foi fundamental para que Bolsonaro chegasse ao poder, mesmo o capitão estando longe de ser o candidato dos seus sonhos.

O que a Globo queria e, nesse quesito, obteve muito sucesso, era impedir o retorno do PT ao poder e a retomada de um dos projetos de inclusão social mais bem-sucedidos no mundo.

Como temos procurado mostrar nesta pesquisa sobre o Jornal Nacional, que estamos realizando há mais de um ano, trabalhar com um objeto multifacetado como a televisão se constitui em permanente desafio.

Para se ter ideia da complexidade desse tipo de pesquisa, basta lembrar os ensinamentos do filósofo italiano Antônio Gramsci (1893-1937) sobre a atuação dos jornais como partidos políticos.

Referindo-se à imprensa italiana do início do século XX, foi ele quem primeiro chamou a atenção para esse fato.

Nos dias atuais, já é praticamente consenso entre estudiosos da mídia e da ciência política que a mídia vem, historicamente, substituindo os partidos políticos em algumas de suas funções tradicionais, como a construção da agenda pública (agenda setting), geração e transmissão de informações políticas e fiscalização das ações do governo.

Segundo Gramsci, os jornais exercem na sociedade papel semelhante ao dos partidos políticos na medida em que têm interesses e lutam por eles, ao mesmo tempo em que procuram convencer o público de que essa luta é importante para o conjunto da sociedade.

O filósofo italiano lembra igualmente que os meios de comunicação procuram intervir nos planos ideológico-cultural e político com o intuito de disseminar informações e ideias que concorrem para a formação e a sedimentação do consenso em torno de determinadas concepções de mundo.

No caso do JN, o consenso pretendido diz respeito primeiro aos interesses da própria família Marinho de continuar dando as cartas na comunicação no Brasil, passando pela conservação de privilégios históricos para uma parcela mínima da sociedade.

O que Gramsci aponta torna-se mais grave ainda no Brasil, porque aqui prevalece a mídia corporativa, e não há regulação que coíba abusos no setor.

A vontade e os interesses da família Marinho, a “primeira família brasileira”, têm sido quase leis há várias décadas.

Diante disso, cabem muitas indagações:

*quais razões levaram a emissora da família Marinho a mudar de postura em relação ao governo Bolsonaro?

*A mudança envolve a pessoa de Bolsonaro ou se estende ao projeto político e econômico, o ultraliberalismo conservador, que ele representa?

* Trata-se de uma mudança circunstancial ou algo de maior profundidade?

CRÍTICAS E ELOGIOS

Sendo um conglomerado de mídia que conta com jornais, revistas, rádios, TVs aberta e por assinatura, além de portal na internet, a margem que o Grupo Globo possui para atuar é enorme.

Essa abrangência permite que a linha editorial desses veículos não seja exatamente a mesma. O que se traduz em muitas possibilidades para negociar seus interesses.

Eis alguns exemplos.

A tônica da cobertura do Jornal Hoje e do Jornal Nacional, na quarta-feira, 14, foi praticamente a mesma: protestos em todo o país contra os cortes de recursos na educação.

Já a rádio CBN, também do Grupo Globo, dividiu a cobertura entre os protestos e o péssimo desempenho da economia.

Ao longo do dia, foram várias notícias e reportagens que enfatizavam a necessidade de que a reforma da Previdência proposta por Bolsonaro fosse aprovada o mais rápido possível.

Comentaristas como Carlos Alberto Sardemberg, Merval Pereira e Míriam Leitão se revezavam para lembrar ao ouvinte que, se a reforma da Previdência não for aprovada, será “o caos” e que “a retomada do crescimento econômico depende dela”.

Os três criticavam ainda o governo Bolsonaro pela falta de articulação política no Congresso Nacional, o que estaria atrasando a tramitação da reforma e colocando em risco a sua aprovação.

Merval Pereira chegou a observar que se a reforma for “muito desidratada” pelo Congresso, não resolverá os “gravíssimos problemas do país”.

Assim, ao mesmo tempo em que uma emissora do grupo Globo critica a ação e a postura do atual ocupante do Palácio do Planalto, outra desse mesmo grupo deixa claro que sua discordância não é em relação à essência do projeto que está sendo implementado pela dupla Bolsonaro/Paulo Guedes.

A discordância em relação ao governo se direciona aos riscos da não aprovação desse projeto.

Vale lembrar que, se parte do Grupo Globo tem criticado Bolsonaro e alguns de seus ministros, como Damares Alves, Ernesto Araújo e Abraham Weintraub, outra parte não mede elogios exatamente ao “super comandante” da Economia, Paulo Guedes, o representante dos interesses ultraliberais, da supremacia do mercado.

Figura que, aliás, aparece pontualmente no noticiário, em momentos estratégicos e com falas muito bem recortadas.

Se, de acordo com a lei da física, dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar, a família Marinho não cansa de tentar desafiá-la, especialmente em momentos de crise.

E é exatamente nesses momentos que ganham relevância as chamadas “pautas para negociação”.

JORNALISMO NO BALCÃO DE NEGÓCIOS?

No jargão jornalístico, pauta é a orientação que os repórteres recebem. Ela descreve o tipo de reportagem que deverá ser feita, detalhando com quem deverão falar, onde e como.

Aqui, no entanto, a mídia, Globo à frente, está inovando e acaba de “aperfeiçoar” com a pauta “para negociação”, uma modalidade que, mesmo não sendo tão nova assim, ganhou contornos específicos neste momento de desdemocratização do país.

O objetivo da pauta “para negociação”, como o nome indica, não é propiciar ao leitor/ouvinte/ telespectador conhecimento sobre determinado assunto.

Por outro lado, é importante que o assunto-alvo seja de grande relevância, para que possa ser negociado da maneira mais conveniente aos interesses dos donos da mídia.

Essas pautas envolvem, na maioria das vezes, temas ligados à política e à economia, mesmo não sendo exclusividade dessas áreas.

Na pesquisa que estamos realizando, identificamos muitas dessas pautas no JN na sequência das ações de silenciamento por parte da emissora da família Marinho.

É importante destacar que essas pautas diferem do silenciamento, da censura e da autocensura que, com muita frequência, a TV Globo ou mesmo seus profissionais se impõem.

Um exemplo de pauta “para negociação” de que se valeu o JN foi a primeira entrevista que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva concedeu, depois de mais de um ano preso, sem provas, na carceragem da Polícia Federal, em Curitiba.

A entrevista teve a maior repercussão internacional, mas os veículos do Grupo Globo fingiram que ela não existiu.

Jornalisticamente falando, seria um excelente contraponto ouvir Lula sobre as propostas econômicas que o governo Bolsonaro quer colocar em prática.

Só que isso não interessa à família Marinho que, em termos econômicos, têm os mesmos interesses de Bolsonaro, mesmo que envoltos em roupagem mais palatável.

A repercussão que a Globo não fez da entrevista de Lula pode ser entendida como uma “pauta para negociação”, uma espécie de demonstração de boa vontade, que rende dividendos aos herdeiros de Roberto Marinho junto ao próprio Bolsonaro ou eventualmente junto ao seu vice, Hamilton Mourão, caso o capitão não consiga se sustentar no poder.

Ao não dar divulgação à entrevista de Lula, a Globo confirma que ela e os ultraliberais falam a mesma língua, estão do mesmo lado.

Nessa mesma linha, vale destacar como o JN tem se mostrado absolutamente favorável à privatização irrestrita das principais empresas estatais brasileiras, a exemplo do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal e até da Petrobrás.

O crescente aumento no preço dos combustíveis, com a gasolina encostando em R$5,00 o litro, é atribuído, segundo o JN, exclusivamente à política de preços da estatal.

Não é feita qualquer menção ao atrelamento desse preço ao mercado internacional, num projeto de desmonte por parte do governo para justificar a privatização da empresa.

Vale lembrar ainda que a proposta de privatização de oito refinarias da Petrobrás, desejada por Bolsonaro, não é sequer mencionada nos noticiários do Grupo Globo, em que pese seu enorme impacto político, econômico e social.

Esse silêncio também pode ser entendido como pauta negociada.

Qualquer matéria sobre o assunto, por mais superficial que fosse, não deixaria de mostrar o grau de entrega do patrimônio nacional contido numa proposta cujo objetivo final é o de tornar o Brasil dependente da compra de gasolina e demais derivados de petróleo do exterior.

Isso depois do governo ilegítimo Temer ter vendido a preço de banana grande parte do pré-sal a empresas multinacionais e de Bolsonaro e seu vice serem favoráveis a que se desfaça do que restou e da própria Petrobras.

Os exemplos poderiam continuar se sucedendo, mas o importante é perceber que a compreensão dos movimentos da mídia, especialmente de um grupo poderoso como a Globo, exige observação atenta e acompanhamento ao longo do tempo.

Acompanhamento que tecnicamente é chamado de longitudinal, pois não só situa o objeto no contexto como também num tempo mais dilatado.

A Globo, que apoiou Bolsonaro para impedir uma possível volta do PT, é a mesma que agora parece considerar que o capitão não é mais útil aos seus interesses e aos interesses ultraliberais.

Não é a primeira vez que isso acontece. No passado, a Globo foi fundamental para o “caçador de marajás”, Fernando Collor, se tornar presidente e depois lhe puxou o tapete.

Aos olhos dos donos da Globo, aliás, o fato de, naquele momento, a população brasileira ter acordado para o que representava o governo Collor, parece mero detalhe, nota de pé de página.

Nesse mundo da mídia, de sutilezas nem sempre sutis, é imprescindível não se deixar enganar pelas aparências.

A julgar pela trajetória do JN, pelo que tem ido ou ar e também pelo que não é notícia, a família Marinho parece ter chegado à conclusão de que fazer coro com o “fora Bolsonaro” é a melhor maneira de garantir que os seus interesses e o projeto econômico ultraliberal seja mantido.

A Globo está mudando para manter tudo igual.

“NÚMERO ZERO”

No último romance que publicou em vida, “Número Zero” (editora Record, 2015), o consagrado jornalista, filósofo, bibliófilo e romancista italiano Umberto Eco (1932-2016) denunciou com ironia e humor o lamentável caminho que a mídia comercial passava a trilhar em seu país e no mundo.

O “Número Zero”, que dá nome ao livro, nada mais é do que um jornal diário fictício criado para nunca ser publicado.

A jogada de seu proprietário (chamado apenas de Comendador ou Acionista de Referência) é mandar apurar determinados assuntos (pautas) e fazer saber aos interessados que tais pautas poderiam virar notícia caso não fosse contemplado.

Eco, italiano como Gramsci, mostrou como a mídia corporativa, que tanto prega a liberdade de imprensa, transformou-se num balcão de negócios no qual o interesse público não tem mais vez, se é que algum dia teve.

E se isso é verdade na Itália, a situação é muito pior no Brasil da desdemocratização desses tempos de Bolsonaro.

Umberto Eco morreu extremamente pessimista em relação ao futuro da mídia.

Pessimismo que ele mesclava com uma enorme dose de ironia.

No Brasil, o pessimismo começa a ser “sacudido” pela voz indignada das ruas.

Será que partirá daqui uma reação também contra o uso do jornalismo como moeda de troca?

Ou podemos aguardar novas e poderosas pautas de negociação envolvendo impeachment, Flávio Bolsonaro e milícias?

Façam suas apostas e aguardem, muito atentos, as cenas dos próximos capítulos…

*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

*Eliara Santana é jornalista, doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes.


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Comentários

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EdgarRocha

Como já estamos sabendo, um dos chefões da Globo acaba de ter uma conversinha com o coiso. Já sabíamos que isto estava para acontecer. Resta imaginarmos qual seria verdadeiramente a pauta. Não é difícil adivinhar: prioridade total à Reforma da Previdência; inevitabilidade da saída de Bolsonaro, o que nos leva às outras questões: em quais termos se darão a saída? Renúncia, ou impeachment? Alguma saída minimamente honrosa ou a fritada em panela grande de todo o clã Bolsonoraro com a história das milícias, dos funcionários-fantasma e da morte da Marielle Franco?
Hildegard Angel, em seu artigo no GGN apresenta a articulação profissionalíssima em torno do Mourão, com dois acadêmicos de Humanas (!) lhe assessorando constantemente, enquanto se prepara o terreno para a fase 2 do (des)governo bolsonaro: retirada do mesmo, restauração da imagem governamental, retomada de toda a pauta de destruição de direitos e do patrimônio nacional… Tudo isto e muito mais, agora com o peso do apoio das Forças Armadas e, pelo jeito, da grande mídia, empenhada no golpe desde seu início.
Angel alerta para uma luta em infinitas frentes contra o desmonte do Estado brasileiro. Dizer que não vai ser fácil é de um eufemismo quase cruel.
Como o realismo costuma ser abandonado em períodos de desespero, a jornalista termina com uma dose de esperança e um chamado para a luta. A mídia de esquerda nos induz a acreditar que a queda do coiso se configurará a numa vitória das forças progressistas. Ao menos, ela não se atreve a tanto.
Não é de hoje que aqueles que são contrários ao projeto funesto do coiso tem feito um enfrentamento puramente reativo. Acontece primeiro, vai pra rua depois e aquilo que se conseguir bloquear será com certeza uma grande vitória. Tentar travar a roda do rolo compressor ultraliberal tem sido insuficiente para a reversão do projeto.
A chance de se conseguir algo mais que apenas aquilo que a Globo deseja que aconteça está em definir a própria pauta e lutar, sobretudo, para impedir que esta não chegue aos ouvidos do grande público ou seja eclipsada pela enxurrada de mentiras globais e das fake news da internet. É por este meios que a ultra-direita tem avançado em suas conquistas. As próximas manifestações (a anti-coiso do dia 26 e a “Direitos Já” seguinte) precisam fixar na cabeça do cidadão sua pauta anti-reforma da previdência e anti-fascismo, bem como reafirmar o Estado Democrático de Direito.
O fiel da balança, no entanto, está nas mãos do judiciário. Antes de qualquer alvo, é preciso pressionar como nunca os tribunais Federais para a retomada da defesa da Constituição, exigindo balizamento integral das decisões vindouras sobre questões diletas do conservadorismo. Questões estas que jamais poderiam ser propostas sob a luz da Lei e do Estado de Direito. Todas as outras frentes de luta enumeráveis estão atreladas diretamente às posições do Judiciário.
O que na minha opinião, faz falta neste momento, são estratégias capazes de acionar as instâncias jurídicas em favor do cumprimento da Lei, com a agilidade esperada, logicamente. Seria forçar o STF a romper com o ciclo de procrastinação por conveniência ao qual este se propôs a cumprir, sem resistência alguma. Com a retomada do império da Lei e a ação rápida da Justiça (tão rápida quanto no caso Lula, lamentavelmente para atropelar a Constituição), todo o resto das pautas conservadoras se encontrará debilitada, a não ser que o uso da força seja viável à quadrilha verde-oliva que se arrogará salvadora da pátria com a entrada do cretino do Mourão. Contra isto, o mero cheiro de ditadura militar saindo da cozinha do golpe e invadindo a opinião pública estrangeira, os fariam mais mansos do que o usual. Seria uma questão de tempo para que vozes poderosas lá fora se mostrassem moralmente legitimadas a anular os boqueteiros do Trump.

a.ali

como sempre é um toma lá e dá cá!

Zé Maria

O Projeto (Anti)econômico do Guédes, que a Globo apoia, não é do Bolsonaro.
Jair Bolsonaro nunca teve projeto algum. É uma Nulidade. É sim do Mourão 2
que já demonstrou em diversas ocasiões que é adepto da doutrina neoliberal.
Continuarão a PEC da Defórma e os Cortes na Educação e na Saúde Públicas.
O impíxi do Mito imbecil só trará Benefícios à População com Eleições Diretas.

Vitor Coelho

Pessoal,

não adianta falar em Gramsci e escrever transmição. Meu comentário pode ser moderado, não precisa aparecer publicamente.

“Nos dias atuais, já é praticamente consenso entre estudiosos da mídia e da ciência política que a mídia vem, historicamente, substituindo os partidos políticos em algumas de suas funções tradicionais, como a construção da agenda pública (agenda setting), geração e transmição de informações políticas e fiscalização das ações do governo.”

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