Aline Blaya, sobre o povo da mercadoria, a cloroquina e a covid-19: Façamos greve no Natal!

Tempo de leitura: 5 min
Foto: Rafael Stedile, Retratos da Pandemia/UFRGS

O povo da mercadoria e a COVID-19: façamos greve no Natal

Por Aline Blaya Martins*, especial para o Viomundo

Davi Kopenawa é um xamã yanomami.

No capítulo Paixão pela mercadoria, do seu livro A queda do céu,  ele conta:

“No começo, a terra dos antigos brancos era parecida com a nossa. Lá, eram tão poucos quanto nós agora na floresta.

(…)

Mas seu pensamento foi se perdendo cada vez mais numa trilha escura e emaranhada.

(…)

Nesse período, derrubaram toda a floresta de sua terra para fazer roças cada vez maiores. Mas já não se satisfaziam mais com isso. Puseram-se a desejar o metal mais sólido e mais cortante…

Aí começaram a arrancar os minérios do solo com voracidade. Construíram fábricas para cozê-los e fabricar mercadorias em grande quantidade. Então, seu pensamento cravou-se nelas e eles se apaixonaram por esses objetos como se fossem belas mulheres”.

Em meio à realidade deste mundo distópico, em um ano inimaginável, o povo da mercadoria teve que se recolher.

O ouro ficou parado, acumulou pó.

O céu do Himalaia clareou, os animais da floresta invadiram as ruas das cidades.

Pais viram seus filhos darem os primeiros passos, aprenderem a tocar os primeiros acordes de uma bela melodia.

Mas, nem tudo foi paz, nem tudo foi bom.

Rapidamente a doença chegou, hospitais lotaram e, aturdidos, vimos centenas de corpos sendo transportados em caminhões. Vimos faltarem ataúdes.

Neste momento, nos questionamos: para que tanto ouro, se impotentes testemunhamos a fragilidade da vida?

Mas, obcecado pelo ouro há tantos e tantos séculos, o povo da mercadoria já não tinha mais condições de entender que era preciso recolher, silenciar…

E viu no desamparo e no desalento a forma de acumular mais e mais ouro, vendendo traquitanas… E convencendo que seriam as traquitanas a solução mágica para eliminar o vírus.

Não há vida sem ouro. Não se come sem ouro.

E foi assim que o povo da mercadoria vendeu cloroquina.

Foi assim que o povo da mercadoria vendeu a ideia de que não se pode parar.

Foi assim que o povo da mercadoria nos fez sonhar e acreditar que morrer era inevitável, que não precisávamos ficar em casa, tão pouco pesquisar ou fazer vacinas.

Mas, quem e onde alguém pensaria em traquitanas em meio a iminência da morte?

Difícil entender, mas a um país repleto de florestas, rios e matas, que abriga o pulmão do mundo, coube a tarefa de comprar traquitanas, cloroquinas e ivermectinas.

Coube comprar e não fazer seus próprios respiradores, coube comprar e não fazer suas vacinas.

Um país onde vivem mais de 200 milhões de pessoas, que possui recursos e riquezas incontáveis, mas que seguiu comprando, seguiu vendendo as traquitanas vindas do Norte, e viu 7.040.608 serem diagnosticadas com COVID-19.

E logo verá que 200.000 perderam suas vidas.

Neste país, periférico e dependente, que sonha com o ouro que segue na mão de povos distantes e que nos fazem todos os dias acreditar que a vida vale muito pouco.

É preciso que continuemos ocupados, perpetuando nossas chagas como a desigualdade, o racismo, o machismo, a fome e a indiferença, que estruturam nossa sociedade.

Não podemos olhar para as nossas veias abertas, para nossos pulmões que sufocam.

Precisamos trabalhar mais e mais, comprar traquitanas para que nos sintamos um pouco mais perto dos donos do ouro e um pouco mais longe da morte e da miséria humana.

O que era para durar alguns dias, virou meses, se transformou em um ano e neste um ano aprendemos a questionar.

Mas não questionamos porque não havíamos priorizado antes estar com nossos filhos ou ligar para os nossos pais.

Não questionamos outros modos de amar nem celebramos o quanto fomos capazes de nos reinventar.

Questionamos como seria possível celebrar o dia das mães sem presentes, ou o dia dos namorados sem uma roupa nova, um presente e um jantar em algum lugar bacana.

Nos convenceram que nosso valor estava em gastar nossa parca miséria e em gerar ouro para quem, no outro lado do mundo, estava isolado cuidando dos seus e esperando a vacina.

Mentira. Tudo mentira. Não precisamos de nada disso.

Pensemos. E se, e somente se, em meio a tudo isso, médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de limpeza e todos os trabalhadores da área da saúde, de unidades básicas aos hospitais entrassem em greve.

Uma greve que não silenciaria com dinheiro.

Uma greve que seria um manifesto para gritar que suas vidas estão em risco e que não há cuidado individual e coletivo, não há políticas de cuidado às vidas, que estamos todos adoecidos e moribundos, intoxicados pela indiferença e pelo ópio trazido pela sociedade de consumo das traquitanas.

Nestas circunstâncias, a quem pediremos socorro?

A quem nos adoece?

A quem tudo tem e tudo pode, o povo da mercadoria e seu ouro?

O ouro compra saúde e dignidade?

Não.

O ouro compra máquinas, o ouro compra remédios, o ouro pode sim trazer conforto e traquitanas.

Mas, remédio na dose errada vira veneno, e se não houver gente que saiba a quantidade certa, que se importe com gente, e que dedique sua vida ao cuidado de outras vidas, o ouro pouco valerá.

Não conseguirá comprar as vidas que se perderam inutilmente nem as vidas dos trabalhadores que, adoecidos, já não aguentam mais.

É preciso silenciar, pensar, evoluir.

Não precisamos comprar nada!

Precisamos colocar a vida, a existência humana, em primeiro lugar.

Talvez para isso seja necessário, sim, comprar, comprar vacina.

Mas, antes de tudo, precisamos silenciar e pensar sobre o que temos feito para compreender o que tem realmente valor para a existência humana.

Precisamos silenciar para honrar as vidas que se foram e que fazem falta, o sofrimento dos que ficaram, mas ficaram partidos.

Se iniciássemos hoje um minuto de silêncio por cada um dos nossos mortos pela COVID-19, teríamos que ficar mais de 130 dias sem falar uma única palavra.

Seria tempo suficiente para pensar sobre a possibilidade de construir outros modos de vida que não sejam exclusivamente pautados pelo consumo?

Será que conseguiríamos entender que é preciso lutar mais pelo direito à dignidade de todas as vidas do que pelo direito de ir às ruas para consumir traquitanas?

Que cada vida perdida inutilmente vale mais do que todas as traquitanas douradas que consumimos para suprir a necessidade que construíram em nós de consumí-las?

Fique em casa neste Natal, não se mate, não nos mate.

Esteja presente, esteja vivo. Fique em casa.

Mentiram para você.

Você não precisa dar presente, mas estar presente. E, para estar presente, não precisa estar perto, precisa ter perspectiva de estar vivo.

Nenhum presente substituirá um abraço e a certeza de mais um dia juntos, mesmo que ele demore a chegar.

A vacina chegará, precisa chegar, e logo. Para todas as pessoas!

Mas, sozinha, não nos livrará do “destino” que temos construído sem crítica.

Precisamos questionar nosso desejo insaciável por produzir “em série” o ouro alheio e nossa hipocrisia ingênua que nos faz acreditar que um dia seremos nós os donos de todo o ouro e os vendedores traquitanas.

Lembre-se de que ele não servirá para nada, se não houver outro ser humano que te estenda a mão na hora da dor, da doença.

Ele não compra o abraço apertado de quem estava ao seu lado e partiu, de quem está ao seu lado e só lhe quer bem, sem traquitanas.

Tudo o que temos de mais precioso é uns aos outros. E é a capacidade singular dessa terra e desse povo de produzir a superação das adversidades, que sufocam, desde antes da pandemia, a vida.

A vida humana e suas conexões com a terra, com a solidariedade e o afeto são nossos verdadeiros tesouros, e estes não nos escravizam nem exigem devoção e polimento.

Fique em casa e entenda que Natal é dia de celebrar alguém que nasceu em uma manjedoura e que deu a própria vida para salvar a nossa.

Essa é, sobretudo, uma boa metáfora para nossos dias, independente da expressão de religiosidade que sigamos.

E se ele tivesse feito greve?

*Aline Blaya Martins é coordenadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFRGS.

Ela agradece todos os trabalhadores do SUS que, mesmo cansados e combalidos, seguem nas trincheiras dando o melhor de si; ao médico emergencista Maurício Almeida Stedile pela provocação e concepção inicial do texto; e ao professor Alcindo Antônio Ferla pela revisão cuidadosa.


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Comentários

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marcio gaúcho

Sem palavras, diante de tão belo e esclarecedor texto. Alerta geral. Humanismo fatal.
Devemos ser muito gratos às pessoas que nos cuidam nos hospitais. Muito atentos com os cuidados que devemos ter ao nos relacionar com os nossos próximos. A vida não tem contrapartida monetária ou material. Deixemos de ser idiotas e cumpramos os protocolos, para nos proteger do vírus. Às autoridades, que mudem o discurso de “deixar morrer” e iluminem os caminhos e as mentes da nação brasileira. A realidade que estamos vivenciando, o descalabro público incentivando a mediocridade da população, o futuro cobrará muito caro a irresponsabilidade geral. A conta já está vindo!

Zé Maria

A Mídia Venal (G.A.F.E.)*, Corrupta, Comprada e Vendida,
faz Jogo Duplo em relação à Pandemia de COVID-19:
As Reportagens são Disfarces, cujas Imagens são Convites
à Aglomeração nas Praias, nas Festas Públicas e em tudo o
que pode gerar Lucro à Máquina de Acumulação do Capital.

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