Alexandra Mello: Por que as escolas têm de cumprir metas quando todos precisam de acolhimento?

Tempo de leitura: 3 min

por Alexandre Mello*, especial para o Viomundo

Essa noite eu tive um sonho.

Um sonho parecido com o sonho que eu tenho quase todos os dias, acordada. Mas numa versão mais cinematográfica.

Foi assim: a quarentena tinha acabado e eu estava andando por uma rua, quando de repente começo a escutar aquele barulho de escola, sabe?

De crianças falando por todos os poros. Logo adiante, tinha uma cerca baixinha com duas ripas brancas horizontais e as verticais, distantes umas das outras. Daquelas que a gente imagina quando conta carneirinhos pra dormir.

Dava pra ver tudo lá dentro. Estavam todos num espaço enorme e, no chão de terra batida, o rabisco do mapa mundi. Só o rabisco.

As crianças menores contornando com cores, os países.

Outras, com rolos de barbantes, estavam fazendo os meridianos e os trópicos.

Nos cantos, um monte de material.

Plaquinhas de madeira, tintas, mudinhas de plantas, um corpo humano de madeira desmontável, números, calculadoras.

Num mural, vários desenhos do tal vírus que ainda assolava outras partes do mundo. Alguns com carinha sorrindo. Outros, assustadores.

Eu fiquei ali, agachada na cerca, deslumbrada com aquela imagem. Vendo as crianças, vibrando com aquilo tudo. E, claro, acordei.

Fechei os olhos correndo pra voltar no sonho dormindo. Não consegui mais.

O jeito foi continuar o sonho acordada. Só que sonho acordada é mais comportado. Afinal, não é nada fácil misturar tantas crianças em cima de um mundo pra ver o que sai dali.

Tem o MEC.

Tem a dificuldade de administrar crianças de várias idades misturadas.

Tem as famílias que procuram a escola puxada.

Tem a medida nova que dispensa as escolas de cumprirem os 200 dias letivos, mas exige a carga horária mínima.

Tem o vestibular que espera os alunos lá no final.

Mas continuei sonhando. Imaginando.

Esse vírus colocou o mundo todo de ponta cabeça.

Não dá pra esperarmos que as escolas cumpram conteúdo. Carga horária. Provas convencionais. Não faz sentido isso. Quando as portas se abrirem, estaremos todos muito mexidos com tudo isso. Abalados.

Por que não permitir que as escolas tenham autonomia para trabalharem isso de maneira mais livre?

Mais abertas ao que encontrarão nas experiências das crianças que vão voltar cheias de coisas pra contar, pra compartilhar?

De lugares e ambientes diferentes. Não dá pra seguir com os conteúdos acadêmicos como se nada tivesse acontecido. Aconteceu. Está acontecendo.

Por que fragmentar, em disciplinas, os conteúdos que nunca estiveram tão presentes simultaneamente na nossa cara?

Formas de governo, densidade demográfica, progressão geométrica, supra renal, células, relações de trabalho, indústria, estado mínimo, liberalismo, espaço geográfico, fronteiras, farmacologia, ética, filosofia, nação, população, cultura, clima, país continental, denominador…

Muitos estão dizendo que depois disso tudo, é preciso que haja uma grande transformação na humanidade.

Eu adoraria acreditar que ela vá acontecer. Mas temo que as portas se abram e as pessoas saiam às ruas como loucas.

Primeiro, pra dar contas dos prejuízos, é claro. Mas logo após, pra continuarem vivendo como antes.

Ainda assim, quero crer que alguma revisão vai haver. De valores, necessidades e prioridades.

Há lugar mais propício pra estimular essa reflexão do que a escola? Não há.

Imagine a riqueza de debates e provocações que podem acontecer no espaço escolar depois dessa vivência tão inédita e tão profunda?

É muito triste pensar que perderemos essa oportunidade porque a escola vai ser obrigada a dar conta do que precisa dar em condições normais. Esse ano estará completamente fora das condições normais. Em todos os sentidos. Em todas as áreas.

Por que a escola precisa correr pra cumprir uma meta se todos estarão tão estressados?

Por que não acolher alunos, pais, funcionários e professores?

Ou melhor, por que não se juntar a eles já que diretores e coordenadores também estarão esgotados e apreensivos e sofrendo as consequências todas? Como todos.

É muito triste tudo que está acontecendo. Mas será ainda mais triste se as pessoas não forem cuidadas e acolhidas.

Não é hora de qualquer tipo de pressão. A quem quer que seja. Já basta o stress dos que estão na linha de frente.

Vamos focar no que podemos fazer para protegê-los. Criar ansiedade nos pais e nos educadores e nas crianças não contribui.

Claro que pode haver Educação a distância. Isso ocupa as crianças. Mas que seja de uma maneira flexível. Sem tanta exigência aos professores e aos pais.

Que sejam atividades simples. Que as crianças deem conta sem demandar tanto dos adultos. Muitos estão tentando trabalhar de casa. Muitos estão tensos.

Vamos simplificar. Vamos priorizar o bem estar e a harmonia nas famílias. Isso é mais caro do que qualquer conteúdo escolar.

Não será um desperdício crianças voltando pras carteiras escolares e seguindo com os conteúdos compartimentados e descontextualizados?

Será que dá pra acreditar em transformação da humanidade se a educação não puder aproveitar esse momento tão propício para trazer pra perto das crianças, questões éticas, filosóficas, sociológicas, políticas, de sustentabilidade, de consumismo, de desigualdade?

É por meio delas que a tal transformação se fará possível lá na frente. E desse meu sonho, eu não pretendo acordar.

PS: coincidentemente, depois de escrever esse texto, meu filho de 12 anos me disse: “mãe, MEUS NETOS vão estudar essa pandemia… “há 100 anos teve uma pandemia gigantesca….””

*Alexandra Mello é psicóloga e psicopedagoga.


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