Aldemario Araujo Castro: o terraplanismo constitucional do general Heleno, que inspira Bolsonaro e os seus

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O ART. 142 DA CONSTITUIÇÃO NÃO AUTORIZA INTERVENÇÃO MILITAR CONTRA A DEMOCRACIA

Por Aldemario Araujo Castro*

Nos últimos meses ganhou visibilidade crescente a ideia esdrúxula, antidemocrática e inconsequente de intervenção militar contra a existência e o funcionamento dos Poderes da República.

As manifestações públicas dos grupos bolsonaristas, com explícito apoio do “mito”, propõem, sem nenhum pudor, o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional pela via da atuação dos militares brasileiros.

Importa lembrar que na noite do dia 13 de junho de 2020, um grupo de bolsonaristas promoveu, com fogos de artifício, um inacreditável espetáculo de “bombardeio” ao prédio do STF.

Vídeos circularam na internet com narração, em tempo real, do episódio.

Num deles, o narrador pergunta aos ministros do STF se o “recado” foi adequadamente entendido.

A fortíssima carga simbólica do ocorrido, aparentemente inédito, mostrou como um grupelho social, com apoio velado dos governantes de plantão no plano federal, trilha os caminhos das trevas.

No dia 10 de junho, imediatamente anterior, em matéria de capa, o jornal “The New York Times” registrou que existe a possibilidade de um golpe militar no Brasil para garantir a manutenção de Jair Bolsonaro no poder.

Subscrito pelos jornalistas Simon Romero, Letícia Casado e Manuela Andreoni, o texto destaca que Bolsonaro sofre pressões de todos os lados, notadamente em função do aumento nas mortes diárias provocadas pelo novo coronavírus e das investigações contra seus filhos e aliados.

Certos acontecimentos da terceira semana do mês de junho de 2020 mudaram significativamente a inacreditável “discussão”, naquela época, acerca de golpes, intervenções e fechamentos (do Congresso e do STF).

A prisão do sumido Fabrício Queiroz numa casa do advogado dos Bolsonaros praticamente retirou da pauta a pretendida (por alguns) movimentação dos quartéis.

O festival de supostos ilícitos apurados com a participação do amigo-irmão Queiroz (rachadinhas, fantasmas, lavagem de dinheiro, envolvimento com milícias, entre outros) lançou (e lança) fortes e consistentes indícios acerca da participação da família presidencial em “rolos” de vários tamanhos.

No mínimo arranhada fica a imagem (artificialmente construída) do inoxidável e indefectível “mito”.

Aparentemente, são dois os debates mais recorrentes em torno da temática da intromissão militar no funcionamento do Estado Democrático de Direito. Primeiro, as Forças Armadas, ou a maioria de seus comandantes, estão dispostos a capitanear uma aventura golpista?

Segundo, esse eventual movimento de tropas, aspecto imediatamente visível das quarteladas tradicionais, tem base jurídico-constitucional e lastro consistente na ordem jurídica brasileira?

Parece, ao menos a partir do noticiário da grande imprensa, que não existe uma dominante, ou predominante, disposição golpista ou intervencionista entre as Forças Armadas, salvo alguns setores mais assanhados das Polícias Militares.

Entretanto, algumas declarações públicas de certos generais, mesmo distantes da caserna, deixam no ar algo que pode ser claramente entendido como ameaça.

“O ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, afirmou que a interferência das Forças Armadas no sistema democrático brasileiro atual pode ocorrer. ‘O artigo 142 é bem claro, basta ler com imparcialidade. Se ele (artigo) existe no texto constitucional, é sinal de que pode ser usado’”

O próprio “mito”, entre várias declarações de intimidação ao Legislativo e ao Judiciário, cunhou pérolas como estas: “Não está arrebentando, arrebentou” (sobre a tensão com o TSE e o STF); “o momento está chegando” e “o momento é de satisfação e alegria para todo o Brasil. Nas mãos das Forças Armadas, o poder moderador, nas mãos das Forças Armadas, a certeza da garantia da nossa liberdade, da nossa democracia, e o apoio total às decisões do presidente para o bem da sua nação”.

Subsiste um curioso entendimento no sentido de que ser bolsonarista gera uma espécie de imunidade à ação do Judiciário.

Não custa lembrar que essa mesma turma aplaudia o STF que não paralisou o impeachment contra Dilma Rousseff, apesar das várias ações com esse objetivo propostas perante a Corte Máxima.

Comparem-se algumas das declarações militares tupiniquins com a manifestação do general Mark Milley, maior autoridade militar dos Estados Unidos da América. Disse Milley: “Eu não deveria ter estado lá [com Trump na famosa caminhada rumo a uma igreja]. Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna. Como oficial da ativa uniformizado, foi um erro com o qual aprendi. Devemos defender o princípio de um Exército apolítico que está tão profundamente enraizado na própria essência de nossa república. Isso leva tempo, trabalho e esforço, mas pode ser a mais importante coisa que cada um de nós faz a cada dia”.

Nas últimas semanas, o assunto da intervenção militar voltou aos noticiários com considerável força. Chegaram, os bolsonaristas mais raivosos, a marcar data para uma suposta quartelada: o dia 7 de setembro de 2021!

A incapacidade de lidar com as instituições democráticas e suas decisões que não agradam desperta os instintos mais primitivos, especialmente aqueles ligados ao uso da força, das armas e aniquilação física da salutar e necessária pluralidade político-ideológica.

Impõe-se, então, uma indagação crucial.

Os militares estão dispostos a “atravessar o Rubicão”, como destacou o Ministro Ricardo Lewandowski em texto publicado no dia 29 de agosto de 2021?

Para defender quem? A família presidencial? Para arquivar apurações de supostos ilícitos dos palacianos e aliados? Para satisfazer os gostos, desejos e desvarios de certos apedeutas palacianos?

Obviamente, a missão constitucional das Forças Armadas não merece tamanho apequenamento. E os militares sabem disso.

A questão jurídica em torno da inteligência do art. 142 da Constituição é, no mínimo, curiosa.

Entretanto, permite compreender algumas lições básicas de hermenêutica no campo do Direito.

Diz o referido artigo: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem./§1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas”.

De início, é importante comparar esse texto com a redação do enunciado pertinente na Constituição de 1967/1969. A redação anterior possuía o seguinte formato: “Art 92 – As forças armadas, constituídas pela Marinha de Guerra, Exército e Aeronáutica Militar, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei./§1º – Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os Poderes constituídos, a lei e a ordem”.

Percebe-se que a diferença está no papel das Forças Armadas na defesa da lei e da ordem. A Constituição de 1988 exige (a anterior silenciava) a iniciativa de um dos poderes constituídos para atuação das Forças Armadas na proteção da lei e da ordem.

Outro ponto crucial de diferenciação é a definição da edição de uma lei complementar para fixar normas gerais relacionadas com a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas.

Esse diploma legal foi introduzido na ordem jurídica brasileira como a Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999. Cumpre observar que a referida lei complementar, mesmo com alterações posteriores, limita-se a explicitar atribuições subsidiárias, além das constitucionais.

Nada nesse diploma legal permite identificar alguma competência relacionada com o fechamento de algum Poder da República ou supressão da ordem democrática.

Afinal, o Estado Democrático de Direito, proclamado no artigo primeiro da Constituição, está assentado no funcionamento regular de todos os Poderes e das instituições da sociedade civil, no exercício dos mandatos eletivos em curso e observância efetiva dos direitos fundamentais.

Façamos um exercício mental.

Vamos admitir a atuação (intervenção) das Forças Armadas para o fechamento do Supremo Tribunal Federal (e outros tribunais?) e/ou do Congresso Nacional (e parlamentos estaduais e municipais?).

Os Governadores e Prefeitos também seriam atingidos?

Registre-se que estamos tratando do fechamento físico e da paralisia operacional do exercício das competências exercitadas por centenas e centenas de instituições e respectivos membros.

A primeira indagação. Quem decidiria e como seria o procedimento para adotar esse posicionamento?

Onde está posta a regra de competência dessa autoridade ou colegiado para adotar tal decisão?

Reconheço, aqui, com todas as letras, a minha ignorância.

Em mais de 30 (trinta) anos de estudo e trabalho com o direito brasileiro, jamais encontrei ou tive notícia da existência de enunciados normativos sobre o assunto.

Vamos a segunda questão. Se a “medida” não atingir todos, quais os critérios previstos na ordem jurídica para estabelecer as exceções?

O Presidente da República seria mantido no cargo? Qual a motivação, prevista em lei, para manter o Chefe do Executivo na condição de intocável?

Em suma, onde estão escritas, na forma de textos normativos, as hipóteses jurídicas para alguns sejam alcançados pela “intervenção” e outros não?

Agora, a terceira questão. Quem substituiria as autoridades afastadas? Qual a condição ou status jurídico das autoridades “destituídas” (prisão, garantias, remunerações, etc)?

Onde a ordem jurídica brasileira dispõe acerca dessas substituições como decorrências de intervenções supostamente baseadas no art. 142 da Constituição?

Como as competências, particularmente as colegiadas, seriam exercidas por esses “substitutos”? Quais comandos normativos regulam essas atividades nesse contexto “interventivo”?

Ademais, o art. 5o., inciso XLIV da Constituição, qualifica como “… crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.

Não faz o menor sentido lógico-jurídico ou político que as Forças Armadas, instituições estatais permanentes comprometidas por expressão disposição constitucional com “a garantia dos poderes constitucionais”, possam realizar de forma legítima aquilo que o constituinte definiu como crime (inafiançável e imprescritível) quando operado por grupos armados, civis ou militares.

Ainda num exercício prospectivo, impõe-se perguntar como seria tratada a liberdade de imprensa. Todos ou só alguns órgãos de imprensa seriam “fechados”? Como seria operacionalizado esse movimento?

A internet no Brasil seria “derrubada” ou “controlados” certos sites ou redes sociais? Onde estão postos os textos normativos reguladores dessas ações estatais?

Os desdobramentos políticos, econômicos e jurídicos no plano internacional seriam múltiplos, profundos e nefastos. Numa frase, dita e repetida com frequência, a nação brasileira seria considerada e tratada como um verdadeiro pária na sociedade internacional.

Dito isso, é relativamente fácil concluir que a ordem jurídica brasileira não é compatível com uma hermenêutica que admita qualquer espécie de intervenção militar para afastar o funcionamento ou exercício pleno das competências das mais importantes instituições desenhadas pela Constituição.

Trata-se, é disso que se trata, expressão muito usada por certo ministro do STF, de golpe ou ruptura inconstitucional da ordem democrática obnubilado pela nomenclatura de intervenção.

A ausência de respostas para as perguntas antes postas denunciam um quadro jurídico aberrante, num plano meramente teórico ou hipotético, para a tese da movimentação institucional pretoriana contra Poderes da República.

Em outras palavras, trata-se de um verdadeiro terraplanismo constitucional, na bem cunhada expressão que circula nos meios jurídicos. A chamada “interpretação absurda” subjacente não se sustenta por inapelável falta de lógica, fundamento técnico-jurídico e sentido.

*Advogado, Mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional


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Comentários

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Zé Maria

Na realidade, o que esse Militares Fascistas pró-Bolsonaro,
Herdeiros do General Nazi-Golpista Silvio Frota (1910-1996),
querem é manter o Debate Político e Jurídico restrito ao
âmbito de atuação das Forças Armadas como se fossem
reguladoras do Poder Civil e, portanto, como Instâncias
Máximas de Interpretação das Normas Constitucionais,
suplantando até mesmo o Supremo Tribunal Federal (STF),
e, a partir daí, arrogando-se irregularmente o direito de ditar
todo o Regramento Legal, inclusive interferindo no Processo
Legislativo e nas Decisões do Poder Judiciário, mantendo as
Instituições Políticas e Judiciais, sob constante Ameaça.
De fato, é uma Ditadura Militar disfarçada de mantenedora da
Ordem Democrática que ampara as Ações Inconstitucionais
de um Presidente da República absolutamente Descontrolado,
Desonesto e Criminoso.
Desse modo, caberia ao Poder Legislativo ou ao Judiciário,
esses sim, invocar o Artigo 142 da Constituição Federal de 1988,
para restaurar o Estado Democrático e de Direito no Brasil, até
mesmo para recuperar o Poder Civil expropriado pelo Executivo.

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