Roberto Amaral: O Brasil posto à margem do desenvolvimento por conta de sua classe dominante

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Em 14 de abril de 2023, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e o da República Popular da Cina, Xi Jinping, durante cerimônia de assinatura de atos no Grande Palácio do Povo, em Pequim. Foto: Ricardo Stuckert/PR

O Brasil posto à margem do desenvolvimento

Por Roberto Amaral*

A história da humanidade desconhece exemplo de país que se tenha desenvolvido e aspirado à categoria de potência (sob qualquer título) sem antes haver investido, sistemática e pesadamente, em educação, ciência e tecnologia e desenvolvimento industrial, exatamente nesta ordem, porque sem ciência e tecnologia não há indústria nem desenvolvimento, qualquer, a começar pelo desenvolvimento social, que exige pleno emprego e distribuição de renda.

E sem desenvolvimento industrial nenhum país pode aspirar à soberania, e seu povo a algum grau de liberdade.

A industrialização proporciona aumento da produtividade, enseja criação de empregos em todos os setores da economia, em face de seu poder multiplicador, promove o desenvolvimento de novas tecnologias e inovação, além de maior diversificação econômica.

E quem não domina a tecnologia e a inovação, e não tem indústria, tampouco tem forças armadas dignas desse nome, ou seja, capazes de garantir a defesa do país, eis que terminam condenadas a fabricar o inimigo interno (a população que as sustenta) para construir o autoengano de que têm alguma razão de ser. A experiência brasileira é exemplar nesse triste sentido.

É notório o papel da Escola de Sagres para o ciclo das conquistas marítimas portuguesas.

De igual modo é impensável a revolução industrial inglesa sem a invenção da máquina a vapor, que, por seu turno, mudou as regras do guerrear até então conhecido, regras que variam a cada conflito – e os conflitos, afora o mais, servem para o teste e aperfeiçoamento dos novos inventos.

A preeminência da tecnologia como condição para o desenvolvimento econômico e a soberania, que passa pelo desenvolvimento industrial, é o testemunho dos EUA desde o século 18, e da União Europeia de hoje, que sobrevive, mesmo politicamente subalternizada, graças aos frutos acumulados de seu passado de desenvolvimento científico, tecnológico e industrial.

É de igual sorte a lição da Índia e dos “Tigres asiáticos”. Mas o modelo paradigmático de desenvolvimento acelerado e contínuo é oferecido pela China.

Os países asiáticos se desenvolveram na contramão do atraso brasileiro, persistente, porque é persistente, entre nós, a ditadura de uma mesma classe dominante, aquela que vem do engenho e da casa-grande e hoje se instala na Faria Lima para, dali, conectada com Wall Street, comandar o grande capital, o centro do poder real, desapartado da produção que gera bens e serviços.

Nos fins do século 18, quando ainda vegetávamos na colônia, avessa ao desenvolvimento, os EUA optaram pela integração na revolução industrial inglesa de 1780.

O Report on Manufactures, de Alexander Hamilton, data de 1791. Naquele então continuávamos exportadores de açúcar e das matérias-primas demandadas pela Europa, proibida, pela corte de Lisboa, qualquer iniciativa visando à produção de manufaturas.

Bem depois, já em 1864, em mais uma vitória da terra, os empreendimentos do Barão de Mauá, empresário pioneiro na industrialização nacional, conheceram a bancarrota, apressada pela má vontade de um imperador autoritário e incuravelmente reacionário, velho de senilidade precoce.

Hoje somos tão só uma expectativa de desenvolvimento na periferia do capitalismo; uma sociedade obscenamente injusta, pois arrimada na desigualdade mais profunda – que se manifesta nos planos econômico, social, racial e de gênero – e gritantes desníveis regionais.

Enquanto os EUA caminhavam para a industrialização, o Brasil, ao se apartar de Portugal, erguia um império arcaico dominado pelos senhores da terra, usufrutuários de uma agricultura predatória, explorada como latifúndio, sustentada na escravidão de negros africanos e indígenas apresados e na exploração do branco pobre.

O latifúndio, terras a perder de vista, que, pela vastidão de suas extensões dispensava cuidados, é consagrado em 1850, com a Lei das Terras, o estatuto da propriedade privada sacralizada e da agricultura de exportação, fechando o acesso à terra aos que nela queriam e precisavam trabalhar.

Como lecionava o Conselheiro Acácio, tudo tem suas consequências e elas sempre vêm depois, principalmente quando são daninhas.

Uma delas é a incômoda distância do desenvolvimento de dois países nascidos na mesma época: Brasil e EUA. O PIB do Brasil, apurado em 2022, somava US$ 1,92 trilhão em 2022; o dos EUA, US$ 26,13 trilhões.

O outro lado desses números: enquanto nos EUA a indústria participa com 25% da formação do PIB, no Brasil seu peso, em queda, está em 10%.

Por fim, enquanto no Brasil a produção agrícola responde por algo próximo de 40% da balança comercial, no Grande Irmão do Norte seu peso varia entre 10 e 15%.

Neste século, tardiamente libertada do imperialismo inglês (1947), a Índia, devassada por lutas fraticidas e movimentos autonomistas, dividida em castas, dialetos e crenças religiosas, parecia mais uma civilização inviável.

Hoje está no topo do desenvolvimento industrial. É uma potência nuclear e um exemplo de desenvolvimento industrial em curto prazo.

E não há “milagres” a registrar – pois eles não existem na história –, senão investimentos maciços e continuados em ciência e tecnologia, a que o país se dedicou no último decênio. A qualidade de sua classe dominante, vis a vis a nossa, faz diferença e também vai explicar o desenvolvimento da Coreia do Sul.

O tigre asiático é hoje um país altamente industrializado, e seu povo desfruta, de modo geral, de boas condições de vida. Mas há poucas décadas, ao fim da guerra de 1950-53 que o partiu ao meio, era um país devastado, contando algo contando milhões de vítimas do conflito fratricida. Atualmente, é o maior exportador de chips do mundo.

Na história não há “milagres econômicos”. Mas igualmente não há acaso, nem fenômeno sem causa.

Anualmente, a Coreia do Sul forma 80 mil engenheiros (em uma população de cerca de 52 milhões), a Índia forma 200 mil e a China, aquele antigo país de camponeses até a segunda metade do século passado, forma 300 mil engenheiros.

O Brasil, que nos anos 1940-50, na tradição do varguismo, investia em seu processo de industrialização, e que nos anos 1960 festejaria uma indústria automobilística que nunca veio a lume, forma apenas 20 mil engenheiros, em uma população.

E, mercê dos governos que se seguiram ao golpe de 2016, padece a inexistência de estratégia tecnológica, de inteligência artificial, de biotecnologia e cibernética; no governo do capitão, que impôs dieta de recursos à universidade pública, cerrou as portas do único embrião que possuíamos para a fabricação de chips, também a única iniciativa conhecida na América do Sul.

As experiências de nossos países se encontraram nos idos de 1970. Quando a ditadura castrense cantava loas ao “milagre” dos números delfinianos, o então presidente da FINEP, José Pelúcio Ferreira, um homem honrado, recebeu uma comissão de altos dirigentes do governo e executivos sul-coreanos, que, projetando sua entrada na indústria automobilística, queriam conhecer a experiência brasileira.

Após competente exposição de Pelúcio, os coreanos revelaram sua frustração, pois o projeto que os animava era, realmente, o de uma indústria automotiva nacional, e não, como se revelava o caso brasileiro, de um conjunto de montadoras estrangeiras de máquinas projetadas e produzidas no exterior.

Este relato me foi passado pelo professor Wanderley de Souza, presente à citada reunião.

Ao final, passados cerca de 50 anos, o Brasil conhece apenas um número elevadíssimo de montadoras estrangeiras, inclusive sul-coreanas, e nenhuma marca nacional.

Em pouco mais de meio século a China, subdesenvolvida, país de camponeses, meio ambiente ingrato, entre geleiras e terras áridas, desindustrializada, devastada por guerras e invasões seculares, realizou, em ritmo de maratona, o percurso da pobreza aguda para a disputa da hegemonia política mundial, graças ao alto desenvolvimento científico.

Essa China tampouco é fruto do desígnio de Deus, senão da perseverança de um projeto nacional, que, deitando raízes em 1949, seria formulado em 1975, por Deng Xiaoping: “A chave para conquistar a modernização é o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. E a menos que prestemos especial atenção na educação, será impossível desenvolver a ciência e a tecnologia”.

Nenhum membro da classe dominante brasileira seria capaz dessa formulação, mas o projeto nela implícito fez com que a China superasse o que, naquela ocasião, o mesmo Xiaoping identificava como vinte anos de atraso em relação aos países desenvolvidos em ciência, tecnologia e educação.

Hoje, a China é o maior centro científico-tecnológico do mundo e o maior exportador de manufaturados.

Do Brasil importa grãos, carne e minério de ferro in natura que devolve como trilhos. Dela importamos quase tudo, mas principalmente produtos tecnológicos e automóveis, bem como fábricas de automóveis e caminhões.

Os chineses prometem nos ceder a tecnologia dos motores elétricos, o país que não teve a competência de registrar uma só patente de motor a explosão, essa próxima relíquia tecnológica.

É de suas bases, e com seus foguetes, que o Brasil, que não tem foguete nem base, esta cedida aos EUA, lança os poucos satélites da linha CBERS, fabricados com cessão de tecnologia chinesa, e sofrendo embargos do Departamento de Estado dos EUA.

Nosso atraso, porém, pode tornar-se irreversível. O Brasil pode, no futuro muito próximo, passar o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação às mãos do Centrão, a choldra que exige o governo (e nele as verbas públicas) para permitir que o presidente eleito pela vontade popular possa governar.

O IBGE tem novo presidente – Marcio Pochmann é um dos mais importantes pensadores brasileiros, na companhia de Luiz Gonzaga Belluzzo e João Manuel Cardoso de Melo, seus colegas no Instituto de Economia da Unicamp, e na missão de pensar o Brasil.

Neste ponto palmilha os caminhos antes percorridos por Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares, ao associar a reflexão teórica à intervenção na vida pública – a missão do intelectual orgânico, na melhor tradição gramsciana é transformar o mundo, para melhorá-lo.

Professor titular de Economia, pesquisador visitante em universidades da França, Itália e Inglaterra, articulista, conferencista de primeira água, foi Secretário de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da cidade de São Paulo e presidente do IPEA, onde levou a cabo notável trabalho de reorganização institucional, após haver atuado na Organização Internacional do Trabalho (OIT), no Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL).

Para o conforto da inteligência brasileira, Pochmann foi nomeado presidente do IBGE. As críticas à sua nomeação, vindas de onde vêm, e nos termos em que são formuladas, mais justificam a escolha do presidente da República.

Um Banco contra o país – Cai a inflação, já vivemos em regime de deflação, mas o BC impõe o priapismo dos juros. Roberto Campos Neto apenas cumpre o mandato de seu DNA.

Nossas forças armadas – Desequipadas para suas funções, tanto do ponto de vista ideológico quanto tecnológico, 80% dos gastos militares de nossas forças são destinados a salários, aposentadorias e pensões.

Setenta anos de bravura – Cuba acaba de celebrar o 70º aniversário do assalto aos quarteis de Moncada e Céspedes, marco inaugural da revolução que triunfaria seis anos depois, derrotando a ditadura de Fulgêncio Batista, sustentada pelos EUA, e marcando para sempre a história mundial.

O fracassado ataque, que custou prisão, tortura e morte a dezenas de guerrilheiros, vale uma reflexão sobre como, na roda do processo histórico, derrotas podem trazer, em seu bojo, o germe de vitórias futuras.

E também o inverso: como interpretar, por exemplo, o êxito brasileiro em receber o aplauso de uma agência de risco do mercado financeiro?

O que há de positivo, para a nossa coletividade, nas loas à autonomia do BC e às reformas trabalhistas e previdenciária que nos legaram Temer e Bolsonaro?

A pergunta que não pode calar: Quem mandou matar Marielle Franco, a vereadora que completaria 44 anos neste 27 de julho?

*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. Atualmente, é professor, cientista político e jornalista.

* Com a colaboração de Pedro Amaral.

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Fernando Safatle: A política do Banco Central está em contradição total com o programa do governo Lula


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Comentários

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Zé Maria

Sobre Covardia e Subjugação Voluntária

“O grande receio das classes dominantes sempre foi que os governos do PT
cumprissem com suas propostas de promover uma mudança mais efetiva
em nosso sistema de tributação.
Tratava-se de introduzir elementos que reduzissem o grau de regressividade
e injustiça do modelo vigente, apontando para tributação de fato sobre
rendas elevadas e sobre patrimônio.

E o interessante é que boa parte de tais mudanças não necessitam
nem mesmo de mudança constitucional.
Bastariam, por exemplo, uma medida provisória eliminando a injustificável
isenção de lucros e dividendos, uma portaria do Ministério da Fazenda tributando a exportação de minério de ferro, petróleo e soja, além um projeto de lei complementar [PLC] disciplinando o Imposto sobre Grandes Fortunas.”

PAULO KLIASS, no Vermelho, pelo Viomundo
https://www.viomundo.com.br/politica/paulo-kliass-o-subito-e-inusitado-encantamento-dos-endinheirados-com-haddad.html

Zé Maria

Excerto

Sobre a Elite do Atraso Econômico Histórico do braZil

“Os países asiáticos se desenvolveram na contramão
do atraso brasileiro, persistente, porque é persistente,
entre nós, a ditadura de uma mesma classe dominante,
aquela que vem do engenho [Monopolista do Coroné]
e da casa-grande [Escravocrata] e hoje se instala
na Faria Lima para, dali, conectada com Wall Street,
comandar o grande capital, o centro do poder real,
desapartado da produção que gera bens e serviços.”

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