Roberto Amaral: Civilização ou barbárie, dilema diante do qual é deplorável hesitar

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Fotos: Ricardo Stuckert e Agência Brasil

Civilização ou barbárie, o dilema brasileiro

Por Roberto Amaral*

Os analistas da política, nas mais bem comportadas folhas do país e no vasto universo das redes sociais, se dividem na análise de dois temas, candentes e convergentes, pois têm origem no mesmo fenômeno, qual seja, o bolsonarismo, um movimento de massa de índole fascista.

Refiro-me à violência, que, excitada pelo próprio presidente da república, se espalha pelo país como rastilho de pólvora, e à realimentação da ameaça de um “golpe de Estado” frustrando o processo eleitoral, o que se extrai do comportamento e das declarações de alguns chefes militares, alguns deles ocupando funções cruciais, como a chefia do ministério da defesa.

Como se vê, Bolsonaro é um Midas às avessas, pois degrada tudo em que toca.

Mas de que golpe nos falam?

De há muito as definições clássicas de golpe de Estado, reproduzindo experiências passadas, deixaram de atender às formas contemporâneas dessa espécie de “assalto ao poder”.

De há muito se desprenderam, por exemplo, dos elementos surpresa e subitaneidade, emprestados pela Ciência política. Permanece, porém, a característica essencial do conceito: a ilegitimidade decorrente da devastação da soberania popular.

Essa visão contemporânea de golpe se aplica às fraturas que se operam dentro de uma mesma ordem institucional, alterando, inclusive, as próprias regras do pacto de dominação.

Consabidamente, o golpe de 1° de abril de 1964, por exemplo, teve continuidade (ou autoalimentação) numa série de “golpes dentro do golpe”, sem alterar a hegemonia militar ou a opção ideológica pelos interesses da casa-grande.

O golpe pode derivar de uma ação exógena, quando, por exemplo seu objeto é a conquista do poder ou a alteração nominal do mando. Mais frequentemente, porém, visa à manutenção ou ampliação do domínio.

Pode, ainda, pretender a alteração da natureza do poder, e pode mesmo se instaurar no bojo de mobilizações populares, como nos lembram os assaltos fascista de Mussolini e nazista de Hitler.

Hoje testemunhamos o projeto bolsonarista intentando alterar as regras do jogo eleitoral, com o fito de permanecer no poder.

Nossa história republicana já registra o golpe de Estado impingido pela coalizão governante, caso paradigmático da implantação do Estado Novo em 1937, liderado pelo próprio presidente da República em conluio com as forças armadas (o exército sobretudo), alterando substantivamente a natureza do regime, que transitava da experiência democrática da Constituição liberal de 1934 para a ditadura franca e repressiva, estatizante e intervencionista.

Esse regime é cassado, ainda pelos militares, ao final de oito anos de ditadura condominial, e novamente a natureza do poder é alterada, quando a ditadura abre as portas à democracia.

Vivemos presentemente uma nova experiência, a do golpe de Estado continuado, permanentemente expandido, acentuando seu caráter reacionário de origem.

A rigor, trata-se da segunda fase do golpe instaurado em 2016. É a fase chamada de bolsonarista, em que o pêndulo se move da direita para a extrema-direita.

O apoio que recolhe em camadas populares, ausente na primeira fase (2016-2018) aproxima-o do fascismo, mas sua sustentação advém das fileiras militares, presentes no projeto desde a concepção, e que também exercem funções governativas.

Sua pobre conformação ideológica deita raízes nas correntes mais reacionárias da extrema-direita internacional, com a qual parece se identificar o grosso da oficialidade brasileira.

Politicamente, o governo se alimenta no concurso dos setores mais anacrônicos do empresariado aqui instalado, e da associação com um Congresso pusilânime, o mais deletério desde a derrocada da República Velha.

Basta ver que seu quadro mais destacado é o sr. Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados.

Cabe ao Congresso, de baixa extração ética, com a inefável ajuda das hesitações do poder judiciário, operar, a legalidade formal do autoritarismo em marcha batida para alguma forma de fechamento do regime.

Esse projeto, elocubração de Estado-maior, considera hipóteses condicionadas pela realidade objetiva.

A operação de escolha é a reeleição do capitão-presidente. As dúvidas crescentes quanto à sua viabilidade (extraídas das sondagens de opinião), porém, trazem à baila, como alternativa, a desmoralização do processo eleitoral.

O bolsonarismo, porém, ainda não terá gasto todas as suas fichas. Restar-lhe-á obstar a posse de Lula repetindo a experiência de 1955, quando os militares tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitscheck (no que foram frustrados).

A última opção, finalmente, será impedir a governança, como se deu contra Vargas em 1954, contra João Goulart em 1964 e contra Dilma Rousseff em 2016.

Os dias atuais assinalam o momento mais agudo desse golpe de Estado em processo, cujo objetivo, explícito, é assegurar a continuidade do bolsonarismo, preferentemente (mas não necessariamente) com a permanência de seu regente, seja qual for o preço institucional.

Vivemos, pois, a experiência de um poder subversivo de há muito carente de legitimidade, embora originário do processo eleitoral, cujas virtudes hoje nega.

Presentemente, a Câmara dos Deputados, comandada por um déspota sem escrúpulos, figura menor de político aldeão, desmonta a ordem constitucional, pois parece ser esta a única alternativa para a continuidade do bolsonarismo.

Daí medidas como o “orçamento secreto”, que põe nas mãos dos deputados governistas, em campanha, nada menos de R$ 16,5 bilhões (aos quais se somam os recursos dos fundos partidário e eleitoral), e a chamada “PEC kamikaze”, que injeta no mercado, em pleno ano eleitoral, a bagatela de R$ 42 bilhões.

Trata-se, simplesmente, do estupro da legislação eleitoral. E mesmo assim a súcia governante não se sente segura da preservação do poder.

Entram em ação as forças armadas. Seu papel, como coadjuvantes de Bolsonaro na construção do caos (fundamental para nova imersão golpista) é, de princípio desqualificar o processo eleitoral. Essa missão infame vêm sendo desempenhada ostensivamente pelos comandantes das forças, com aplicação e esmero.

Põem-se os chefes militares, e à frente de todos o ousado ministro da defesa, a semear confusão como meros porta-vozes do presidente abjeto.

A descabida proposta de apuração paralela do pleito, ademais de inconstitucional e ilegal, é mero artifício golpista.

Pois seu objetivo, exposto à luz do dia, é pôr em xeque a credibilidade das eleições, sem a qual não sobrevive a democracia representativa.

A frustação eleitoral é o caminho mais curto para o caos e a crise institucional na qual o bolsonarismo aposta, por dela depender.

Enquanto o presidente da república, criminoso contumaz e impune, dissemina o ódio e a violência — fraturando a convivência social, estimulando o confronto, fomentando o armamentismo e o desforço pessoal, apelando às raízes mais primitivas do ser humano, e ameaçando a continuidade da corrida eleitoral, instalando a insegurança e o medo – as forças armadas, autoritariamente, ao arrepio da Constituição, enxovalhando seu papel na história, extrapolando os limites de suas atribuições –, intervêm no processo, escanteiam a justiça eleitoral e se outorgam os poderes de monitorar as eleições, auditando o processo de votação e apuração.

O plano militar de insólita apuração paralela, a ser desenvolvido em oito etapas, prevê testes de integridade das urnas e totalização dos votos. Antes, seu papel, o único de que são realmente capazes, e autorizado em lei, era auxiliar no transporte das urnas, principalmente no interior do país.

O objetivo agora é outro: estabelecer o conflito entre a ordem constitucional, que prescreve a autonomia da justiça eleitoral, e a curatela da caserna, que objetivamente a revoga.

O confronto, planejado, se coloca como inevitável, pois o TSE, sob o risco do suicídio, não pode aceitar o mando dos engalanados. De provocação em provocação, de impasse em impasse, o caos vai sendo alimentado.

O pleito que se avizinha está definitivamente polarizado entre civilização e barbárie (fora daí o mais é despiste), ensejando um dilema diante do qual é deplorável hesitar.

***

Sinal dos tempos (1): O general ministro da defesa (cargo que deveria ser ocupado por um civil), que é pago para defender a segurança nacional, sugere a realização de votação paralela em cédulas de papel no dia do pleito, como forma de testar a integridade das urnas. E, assim, irresponsavelmente, despeja mais água no monjolo dos golpistas.

Sinal dos tempos(2): devemos considerar como normal, e até alvissareira, a matéria de Exame(https:/exame.com/brasil) segundo a qual o presidente do Senado recebeu em almoço o ex-presidente Lula, e declarou-lhe que quem vencer as eleições (terá ouvido antes os generais?) será empossado. E poderia ser diferente em uma República? Entre nós, sim.

A história não se repete, mas no Brasil ela é recorrente: Em 1902, Campos Salles (presidente da república entre 1898 e 1902) definia o parlamento brasileiro como “um ajuntamento de homens de negócios tratando de interesses particulares”. Que época!

Cinismo e sinceridade: o fascistoide John Bolton, ex-assessor de Trump recebido com loas por Bolsonaro, que lhe rendeu inclusive uma continência, sinal militar de obediência, confessa que participou de golpes de Estado em países periféricos como operador dos EUA. Quais? Não revelou. De outra parte o secretário de Estado Blinken fala, sem corar, a propósito do apego dos EUA aos princípios que regem a Carta da ONU, como o respeito à autodeterminação dos povos, aos direitos humanos e à liberdade.

E la nave va.

*Com a colaboração de Pedro Amaral

Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. Atualmente, é professor, cientista político e jornalista.


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Zé Maria

Róża Luksemburg revolve-se na tumba no
Zentralfriedhof Friedrichsfelde em Berlim.

RosaLux jamais imaginou que, em Pleno
Século 21 no Terceiro Milênio, o seu Lema
“Socialismo ou Barbárie”, em princípios do
Século 20, seria Substituído por outro que
reivindica não os Preceitos do “Manifesto
Comunista” do Século 19, mas os Ditames
da “Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão” do Século 18, no Segundo
Milênio, da Era Cristã.

https://www.conseil-constitutionnel.fr/sites/default/files/2018-06/1789%20DDHC%20Gallica%201.jpeg

Art.1.º Os Homens nascem e são livres e iguais em direitos.
As distinções sociais só podem fundamentar-se na
utilidade comum;

Art. 2.º A finalidade de toda associação política é a
conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do
Homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade,
a segurança e a resistência à opressão;

Art. 3.º O princípio de toda a soberania reside,
essencialmente, na nação.
Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer
autoridade que dela não emane expressamente;

Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que
não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos
naturais de cada homem não tem por limites senão
aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade
o gozo dos mesmos direitos.
Estes limites apenas podem ser determinados pela lei;

Art. 5.º A lei proíbe senão as ações nocivas à sociedade.
Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado
e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela
não ordene;

Art. 6.º A lei é a expressão da vontade geral.
Todos os cidadãos têm o direito de concorrer,
pessoalmente ou através de mandatários, para a sua
formação.
Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger,
seja para punir.
Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente
admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos
públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção
que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos;

Art. 7.º Ninguém pode ser acusado, preso ou detido
senão nos casos determinados pela lei e de acordo
com as formas por esta prescritas.
Os que solicitam, expedem, executam ou mandam
executar ordens arbitrárias devem ser punidos;
mas qualquer cidadão convocado ou detido em virtude
da lei deve obedecer imediatamente, caso contrário
torna-se culpado de resistência;

Art. 8.º A lei apenas deve estabelecer penas estrita e
evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido
senão por força de uma lei estabelecida e promulgada
antes do delito e legalmente aplicada;

Art. 9.º Todo acusado é considerado inocente até ser
declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo,
todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa
deverá ser severamente reprimido pela lei;

Art. 10.º Ninguém pode ser molestado por suas opiniões,
incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação
não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei;

Art. 11.º A livre comunicação das ideias e das opiniões é um
dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode,
portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo,
todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos
na lei;

Art. 12.º A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita
de uma força pública; esta força é, pois, instituída para fruição
por todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é
confiada;

Art. 13.º Para a manutenção da força pública e para as despesas
de administração é indispensável uma contribuição comum
que deve ser dividida entre os cidadãos de acordo com suas
possibilidades; …

Íntegra:
https://www.conseil-constitutionnel.fr/le-bloc-de-constitutionnalite/declaration-des-droits-de-l-homme-et-du-citoyen-de-1789

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